Por Guilherme Machado
João Antônio
Guaraciaba nasceu no dia 20 de setembro de 1850. Preto, alto, forte, viveu
grande parte de sua vida em Magé, Estado do Rio de Janeiro, onde morreu velho,
enrugado e de carapinha branca com seus bem vividos 126 anos. Gostava de andar,
mas seus passos ficaram lentos denunciando o peso da idade, o reumatismo e as
“oito picadas de cobras que levou na perna direita, de tanto viver nos matos”,
apesar de “lúcido e ainda enxergando bem para longe e sem sofrer de surdez”.
Filho de mãe angolana que o teve aos quinze anos, e o Barão de Guaraciaba “um
mestiço fazendeiro comprador de escravos negros na África onde conheceu sua mãe
Angelina, então negra forte e bonita”. Depois de engravidá-la, prometeu
buscá-los em outra viagem, trazendo-os assim para o Brasil num veleiro
negreiro. João tinha apenas quatro anos de idade. Registrado em Magé, onde
“tirou certidão com testemunha e tudo”, como filho do barão e Angelina Maria
Rita da Conceição (nome cristão), “por que naquele tempo não tinha disso não, a
data do nascimento passava de boca em boca, de parente para parente”.
Quando foi para Mauá, então Guia de Pacobaíba freguesia de Magé, João tinha 17
anos, levado pela mão de Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá “para
tirar (procriar) raça de crioulo escravo para o Imperador, que conheceu aquele
preto forte na fazenda do Barão de Guaraciaba, onde passou uns tempos e pensou
até que ele era escravo. Chegou a querer comprá-lo, mas o pai disse que não
vendia, por que João era seu filho”. Ao chegar a Pacobaíba, na barca do Barão
de Mauá aquele negro de “mãos de dedos longos, braços fortes, capaz de segurar
com força as mulatas e crioulas da fazenda”, viu pela primeira vez “o trem
vomitando fogo e fumaça” e apesar de não ter sido escravo, “trabalhou no porto
onde os barcos veleiros atracavam”. Viu diversas vezes o Imperador desembarcar
no cais de Pacobaíba e pegar o trem para Raiz da Serra onde embarcava na
charrete até Petrópolis. “Era um homem sempre com o rosto limpo e bem tratado”.
Ficou em Pacobaíba fazendo alguns serviços para o Barão até “despois que
apanhei idade é que fui escolhido para tirar raça. Na minha fazenda só tinha eu
de reprodutor”. Segundo suas próprias palavras, ele só foi levado para as
fazendas de Petrópolis e Correias com 23 anos de idade quando assumiu sua nova
“obrigação”.
Guaraciaba afirmou que deixou mais de 300 filhos: 100 para D. Pedro II e 200
para o Barão de Mauá, fora os que teve com as mulheres da fazenda de seu pai em
Campos, ainda adolescente. “Ficou nessa vida de reprodutor deitando com duas,
três, quatro mulheres por dia nas senzalas em que o Barão e o Imperador
mandavam até os 38 anos, quando a Princesa Izabel aboliu a escravidão” A
história registra que quando João nasceu em 1850, a Lei Eusébio de Queiroz
confirmava a Lei de 1831extinguindo o tráfego de escravos, punindo com penas
severas os infratores. Seguiu-se a Lei dos sexagenários de 1855. A Lei de 1869
libertando os servos que fossem para a guerra do Paraguai. A Lei do Ventre
Livre de 1871, e finalmente a Lei da Abolição de 1888. João se lembrava que
depois que surgiu a Lei do Ventre Livre, todos continuaram escravos, “agregados
às fazendas sem outro ganho que não a casa e comida simples”. Foi escolhido
para ser reprodutor por que “era preto de Angola”. Os senhores queriam pessoas
bem fortes para esse serviço. “Se nhô quer saber: nas fazendas que eu ficava
aquelas que não panhavam prenhez comigo eram vendidas para outros fazendeiros.
Os donos tinham muito interesse em mulher que reproduzisse, pra ter mão-de-obra
barata, pra trabalhar a cana, o café e a mandioca”.
Achava a “atividade” legal por que “era premitido”. Ele gozava de regalias que
o resto da negrada não tinha. “Jamais entrou no chicote, nem foi açoitado no
tronco ou acorrentado. Nunca levou bolo de palmatória ou teve pés e mãos
amarradas no instrumento de tortura chamado “vira mundo”, onde muito escravo
morreu. Às vezes morriam com gangrena, de tanto esfregarem os braços nas
correntes para se soltarem cortando a carne que infeccionava”. Com ele foi
diferente, embora trabalhasse com os escravos do Imperador, ajudando na lavoura
quando podia, tanto que era aposentado pelo Funrural e recebia mensalmente por
um banco de Magé Cr$ 300,00. “É muito pouco” dizia ele “não dá pra viver não.
Se não fosse os amigos não sei o que seria”. João também lembrava das canções
cantadas no eito pelos escravos. Trocando branco por baranco ou furta por
fruta, cantava o “Lundu do Pai João” que falava de justiça: “Baranco dize:
preto fruta / preto fruta com razão; / Sinhô baranco quando fruta / quando
panha casião; ./ O preto fruta farinha / fruta saco de feijão; / Sinhô branco
quando fruta / fruta prata e patacão; / Nego preto quando fruta / vai pará na
correção. / Sinhô baranco quando fruta / logo sai sinhô barão”.Ele era o único
na fazenda que não pagava no pesado. Boa alimentação e descanso, quando nas
senzalas as escravas já o esperavam. “Era uma de cada vez na cama”. João sorri
mostrando seus dois únicos dentes amarelos. “De vinte que entravam, quinze
pegavam filho”. Quando seu pai o entregou ao Imperador, sabia que ele iria ser
“cobridor de mucamas”.
Sua descendência se espalha pela Baixada e na Serra, incluindo parentes do
Barão de Guaraciaba, “mas quase não vejo”. Antigamente subia a serra até
Petrópolis de trem, mas desde que o Presidente Castelo Branco extinguiu a
ferrovia Mauá-Petrópolis por ser antieconômico, raramente ia de ônibus.
“Companheiro do Aleixo, no mundo acho no mundo deixo” dizia ele repetindo um
ditado popular de seu tempo. Mesmo numa época em que a Igreja vigiava o
comportamento sexual das pessoas, muita negra teve filho de senhores e muita
senhora amaldiçoou seu marido. Gostou de algumas escravas, mas como lembrar do
“jeito” delas se o tempo passou. Muitas já morreram. O que sabe é que tem
filhos espalhados “pela aí” de setenta, oitenta anos e que seus traços estão no
olhar e no requebro de alguma mulata de hoje, nos ombros largos e nariz afilado
de algum crioulo descendente afastado de alguns de seus trezentos filhos.
Naquele tempo, não bebia nem fumava “pra não estragar o corpo”. Gostava de
festas: São João, São Pedro, Santo Antônio, São Jorge, São Marcos, e São
Sebastião. Gostava de ver capoeiras darem os botes. Cantava e pulava até de
Madrugada. Gelados nem pensar, tiram a potência do homem. “Esses gelados
pareceu depois da Abolição, não servem pra nada. Só pegou no Brasil por que faz
muito calor e o pessoal gosta de refrescar, mas eu conselho a juventude evitar
gelados, sorvetes”.
Negro João fica meditando quando é indagado sobre quilombos. Fala sobre o da
Vila de Marcos da Costa e o da serra de Santa Catarina, perto de Petrópolis.
E os capitães do mato iam lá ?
- Iam o que sinhô, então eles eram bestas? Eles se escondiam em barrancos,
faziam emboscadas para as tropas, espalhavam armadilhas onde elas caiam.
O preto velho que comandava o quilombo Marcos da Costa, mesmo doente de cama
dava ordens: “vai catar o milho, vai cuidar dos porcos. Eles tinham de tudo,
campos de gado, plantação de milho”. João conheceu muito crioulo que fugiu para
esse quilombo “onde tinha um santo que veio da África e era o padroeiro do
lugar, foi trazido pela fazendeira D. Inês, da Fazenda da Glória”. Cansados de
verem tanta “malvadeza dos brancos” com seus irmãos de cor, a ponto de
preferirem suicidar-se a continuarem escravos, a fuga era uma forma de se
libertarem. Em Pacobaíba viu chegar muitos negros e muita negra mina natural de
Angola. Uns destinados às fazendas, outros eram anunciados no “Jornal do
Comércio” do Rio de Janeiro pelos agentes de escravos para serem vendidos em
praça pública. Esse jornal publicava desde 1827 todo o movimento de navios com
saída e chegada no porto. Compra, venda, aluguel e fuga de escravos,
aconselhando que chamassem a polícia para capturá-lo e oferecendo recompensas a
quem o levasse ao seu dono. João afirmava que escutou muita história de negros
jogados no mar durante a travessia da África para o Brasil, “pelos comandantes
que não queriam ser apanhados em flagrante fazendo tráfico de escravos. Abriam
o porão e pronto, todos os escravos morriam afogados ou eram comidos pelos
tubarões”.
Os velhos falavam que era assim, coisa de gente muito ruim “Diz o preto reprodutor que nunca leu jornal, nem no Império nem agora, pois é
analfabeto”.
“Guaraciaba ainda se lembra que a fazenda de Pedro II era ali em Mauá, perto do
lugar conhecido por Ipiranga dos Remédios. Naquele tempo era católico, mas
gostava de macumba. Hoje é Batista, vai aos cultos sábados e domingos”.
Faz algum tempo, trabalhava no transporte de bananas com uma carroça e uma égua
de sua propriedade, depois, passou a emprestar o animal ao compadre carroceiro
para continuar o serviço, “por culpa de um reumatismo, principalmente no
inverno, quando as dores aumentam”. Sobre os “feitores de escravos”, nem
gostava de relembrar. Falava sobre a maldade e tortura contra os negros,
crianças, mulheres e homens, amarrados no tronco e açoitados. Outros feridos a
bala pelos senhores que experimentavam armas ou exercitavam a pontaria.
- O pior fazendeiro que conheci foi Antônio Nicolino, um homão de quase três
metros de altura que comprava 100 escravos de três em três anos. Com três anos
de trabalho a negrada estava arrebentada de tanta surra. Aí ele mandava comprar
aguarrás, fazia uma fogueira e matava aqueles mais fracos.
- Eles pagavam os réis (impostos), e eram donos dos negros. Mas Deus é justo e
Nicolino morreu pobrezinho e ninguém chorou (aí Guaraciaba fala sorrindo) por
que todo mundo odiava ele.
Nesse tempo João era rapazinho e esses crimes foram testemunhados na Fazenda do
Morro Seco, em Vassouras, propriedade de Nicolino.
- Tinha escravo que também era capataz e se juntava com os brancos para bater
nos pretos, cercavam a negrada na mata e mandavam bala. Nhô não sabe, mais
tinha fazendeiro que se desconfiasse que algum escravo roubou, matava, que era
pru mode de não panhar costume.
O velho Guaraciaba está cansado de falar e pára para tomar o café, servido na
casa dos compadres onde concedeu essa entrevista. Bebe de um só gole e estala a
língua. Perguntado se nunca teve mulheres firmes com quem viveu, diz que sim, a
Maria Olina, a Maria Madalena e a Olícia Maria do Carmo, esta com quem, teve
uma filha agora com 33 anos, Laura, que mora em Nova Iguaçu, casada com um
comerciante português.
“Os moradores de Mauá sabem de sua última mulher, Maria Olícia, que ele diz ser
a mãe de Laura, morreu há três anos, com 50 anos. Aí o velho ficou mesmo só,
dando suas caminhadas, mas ainda com vontade de caçar negas por aí”.
Acordava de manhãzinha com o cantar dos galos e dormia às oito da noite. Só
sabia das horas orientando pelo sol. Não tinha relógio. Perguntado se gostaria
de conhecer Angola, país onde nasceu, disse que “gostaria, mas só se fosse de
navio”, pois “acho bonito o mar”. São quatro horas da tarde e o velho
Guaraciaba quer ir embora pra casa, “hoje não foi almoçar com seus outros companheiros
crentes, comeu arroz, feijão e peixe aqui mesmo na casa do compadre Jorge
Carroceiro. Quer ir descansar”. Aceita uma carona. Está chovendo e a tarde vai
antecipando a noite. Indica a estreita estrada de barro rasgada no mato, que
João conhece bem, levando a um pequeno barraco de estuque com quintalzinho nos
fundos, onde uma bananeira ao lado da porta tomba com o peso do cacho. Ao
saltar do carro gemeu, ao botar a perna direita das oito picadas de cobras e
pisar no chão com lama que agarra nos sapatos. Casebre acolhedor, mas que ele
desejava melhor, pois nem porta firme tem, embora não se preocupe com ladrões,
não há ali nada para roubar.
“Ficaram de me dar uma casa, mas acho que estão esperando eu morrer, diz
brincando com um sorriso, pitando seu cachimbo de barro deixando um cheiro de
fumo no ar. Na sua pureza ainda acredita em almas do outro mundo, rezando muito
para elas não aparecerem em sua vida, principalmente quando vai a Piabetá a pé,
sozinho pela estrada, chegando lá ao anoitecer”.
Dentro do barraco somente uma velha cama com colchão de palha forrada com
trapos e algumas panelas sobre um armário. Seus bens mais preciosos cabiam
dentro de uma lata vazia de leite em pó. Ali eram guardados a certidão de
nascimento e um folheto evangélico, nada mais. “Quando quiser escrever uma
carta (e pretende pedir uma casa ao Governo), recorrerá à dona Maria e ao seu
Miguel, os compadres crentes”.
- O senhor sabe o nome atual do Presidente da República?
- Não sinhô.
- Quais o que o senhor se lembra?
- O Hermes da Fonseca, o Floriano Peixoto.
“Para ele o mundo era ali. O radio da vizinha irradia ao longe o jogo
Fluminense e Olaria transmitido do Maracanã. Um avião quadrimotor passa baixo
em direção ao Galeão. Vem de longe também música no rádio, ouvindo-se Jards
Macalé cantando “Hei Cantareira” de Jackson do Pandeiro”.
Ali, naquele fim de mundo “Guaraciaba não tem luz, gás, telefone, campainha,
porteiros, síndicos, cobradores, talvez nunca tenha sido recenseado pelo IBGE,
os Correios não sabem seu endereço. Mas dorme com canto de grilos nos matos,
olhando as estrelas nos céus das noites limpas sem poluição”. Na chegada da
noite chuvosa, despediu-se dos repórteres desejando boa viagem e perguntando se
sabiam seguir pela estrada até Magé. Agradecidos, eles prometeram voltar para
atender o seu pedido:
- Trais uns agasaios pra mim, viu? Aqui faz muito frio.
https://www.facebook.com/search/top/?q=guilherme%20machado%20historiador%20machado
http://blogdomendesemendes.blogspot.com