por José
Gonçalves do Nascimento
O drama da
fome está presente em obras importantes da literatura brasileira, em especial
aquela produzida por intelectuais nordestinos. Em algumas obras, o tema chegou
a inspirar cenas que, por sua força e dramaticidade, tornar-se-iam
verdadeiramente antológicas:
Em “O quinze”,
de Raquel de Queiroz, o personagem Chico Bento, após esfolar uma cabra que
encontra pelo caminho, e estando cego de fome, leva à boca os dedos sujos de
sangue, comprazendo-se no “gosto amargo da vida”. No romance “Vidas secas”, de
Graciliano Ramos, a cachorra Baleia, há dias esfomeada, sonha com um mundo
povoado por muitos e gordos preás. Em “A bagaceira”, de José Américo de
Almeida, João Troculho, em diálogo com Lúcio, revela seu maior desejo: “comer
até matar a vontade”.
Muito antes,
Rodolfo Teófilo, ilustre humanista nascido na Bahia, mas radicado no Ceará, já
havia tratado da temática, produzindo obras que se tornariam importantes peças
de denúncia contra o terrível flagelo, caso do romance “A fome”, publicado em
1890.
Todavia, foi
com Josué de Castro que a fome adquiriu estatuto científico, político e moral,
não sendo encarada apenas como consequência de fatores climáticos e naturais,
mas também, e sobretudo, como algo “provocado pelo homem contra outros homens”,
a partir de ações políticas sistematicamente deliberadas.
Médico,
geógrafo, cientista social, escritor, Josué de Castro é umas das figuras mais
proeminentes do pensamento brasileiro. Pernambucano, nascido em 1908, dedicou a
vida inteira ao estudo da fome e da nutrição, escrevendo sobre o tema obras de
elevadíssimo valor científico e literário. Uma delas é “Geografia da fome”,
publicada em 1946, ao fim da segunda guerra mundial, e tida por Alceu Amoroso
Lima como “livro-chave da realidade brasileira”, comparável apenas ao “Os
sertões”, de Euclides da Cunha.
O livro foi
pioneiro no sentido de trazer à baile a problemática da fome e suas implicações
políticas e sociais no momento em que o tema era considerado um tabu. O próprio
autor classificará o assunto como algo “perigoso e delicado”, afirmando haver
“uma verdadeira conspiração do silêncio em torno da fome”. “Será por simples
obra do acaso – indagará ele – que o tema não tem atraído devidamente o
interesse de espíritos especulativos e criadores do nosso tempo? Não cremos. Trata-se
– continua – de um silêncio premeditado pela própria alma da cultura: foram os
interesses e os preconceitos de ordem moral e de ordem política e econômica de
nossa chamada civilização ocidental que tornaram a fome um tema proibido, ou
pelo menos pouco aconselhável de ser abordado publicamente.”
Ao lado disso,
há que se acentuar também a existência de certo sentimento de grandeza e
ufanismo que fez com que a elite política e intelectual do Brasil ignorasse por
tanto tempo o problema da fome, optando por destacar apenas elementos que
pudessem enaltecer o nome do país, ainda que de forma maquiada. “A ‘Geografia
da fome’ – assevera Barbosa Lima Sobrinho – veio desmistificar a ideia de que
não havia fome no Brasil.”
Fatores de
ordem política, econômica, social e cultural, como a concentração da terra e da
renda, o abandono do campo, a urbanização desenfreada, a centralização do
poder, a chamada “política de fachada” – sem esquecer, obviamente, a
indiferença com que o fato sempre foi tratado – são aqui apontados como as
principais causas do problema da fome ou da deficiência alimentar.
O livro divide
o território brasileiro em cinco diferentes áreas alimentares, possuindo cada
uma delas características específicas e níveis diversos de nutrição e
subnutrição, tudo isso condicionado por particularidades históricas,
geográficas, econômicas, sociais e culturais. São elas: 1) Área Amazônica; 2)
Nordeste Açucareiro ou Zona da Mata Nordestina; 3) Sertão Nordestino: 4) Centro
Oeste e 5) Extremo Sul.
Das cinco
regiões que formam o mapa alimentar brasileiro, três são consideradas “áreas de
fome”: a Amazônica, a da Zona da Mata e a do Sertão Nordestino. Segundo o
estudo, estas são áreas onde pelo menos metade da população apresenta “nítidas
manifestações de carência nutricional”. É onde, segundo o autor, revela-se a
"chamada fome oculta, na qual, pela falta permanente de determinados
elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações
se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias”. Conforme
vem definido, fome oculta é aquela caracterizada pela deficiência de ferro,
cálcio, sódio e de vitaminas do complexo B, dentre outros. É a fome tipicamente
de “fabricação humana”, nas palavras do próprio autor.
Josué de
Castro morreu nos anos setenta em Paris, onde se encontrava exilado por força
da ditadura militar, instalada em abril de 64. Morreu de infarto após tentar
sem sucesso voltar ao Brasil e retomar a luta contra o terrível flagelo, que
mais e mais se acentuava. Mas sua obra, em especial “Geografia da fome”, ainda
haveria de render muitos e bons frutos, inspirando ações de solidariedade,
assim como políticas de governo. Alguns exemplos:
Nos anos
oitenta, o então arcebispo de Olinda e Recife, Dom Hélder Câmara deflagra amplo
movimento de combate à fome, objetivando erradicar o problema até o ano 2000.
No início dos anos noventa, o sociólogo Herbert de Souza cria o movimento da
“Ação da Cidadania”, que mobilizou parte expressiva da população e tirou da
fome extrema muitos milhões de brasileiros. O movimento acabou sendo assumido
pela agenda oficial, tornando-se política pública. Anos depois, seria
implantado o programa federal “Fome zero” que deu origem ao atual “Bolsa
família”, o qual tem enormemente contribuído para a melhoria da qualidade de
vida de parcelas consideráveis do povo brasileiro, concorrendo assim para a
redução da miséria que ainda assola nosso país.
Não obstante
os avanços até aqui obtidos, as mazelas apontadas há setenta anos ainda não
foram superadas. O problema do latifúndio e da concentração de renda, apontado
como principal responsável pela fome, continua a persistir e de modo cada vez
mais acentuado. De modo que o livro “Geografia da fome” chega aos nossos dias
mais atual do que nunca.
Enviado pelo professor, escritor pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso.
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