Material do acervo do pesquisador Raul Meneleu Mascarenhas
Essa estória
da história de Virgulino Ferreira da Silva, é a estória comum até os dias de
hoje, onde infelizmente não progredimos como é desejado por todo homem e toda
mulher que vive nesse país. Infelizmente ainda impera o poderio da riqueza,
muitas vezes amealhada pela injustiça de alguns ao povo pobre e sofrido,
principalmente ainda no sertão dos poderosos e ainda vivos coronéis, vestidos
com o manto de políticos.
Foi-nos
relatada por um dos maiores estudiosos do cangaço, em especial a Lampião,
mostrando-nos que se tivesse havido justiça naquela época, não haveria Lampião.
Que não nos enganemos em achar que ele era um herói, ou um bandido. A meu ver
era uma mistura desses dois adjetivos, pois quando leio os livros de
pesquisadores honestos em expor o cotidiano de lampião e os atores de sua vida,
admiro-o pelo senso de justiça e ao mesmo tempo, critico-o pela selvageria e
falta de respeito em determinadas ocasiões de sua vida.
Esse é um
relato bem próximo da vida de Lampião e como começou o 'emparedamento' para ele
tornar-se um fora-da-lei, para que seu principal inimigo, o primeiro, o número
um, que começou tudo, completasse a sua vingança. Por mais que se tente
desculpar ou mesmo aliviar a inimizade deles, nós poderemos ver que a inveja é
a mãe da injustiça e pela história vemos sua perversa perseguição a esta
família de pobres trabalhadores, acuados no sertão pernambucano.
Tomemos a
pesquisa feita pelo Padre Maciel, autor de uma das maiores
obras sobre o cangaceiro. Não irei tecer comentários finais do artigo do
Padre Maciel, para que o leitor possa tirar suas próprias conclusões.
E nós neófitos,
aprofundemos nosso conhecimento dos fatos pesquisados por 30 anos pelo autor de'LAMPIÃO, Seu
Tempo e Seu Reinado - As Origens' em
seu livro Um, da sextologia no capítulo 7:
ZÉ SATURNINO,
O INIMIGO № 1 (1915-1917)
Os atores
Ao pé da Serra Vermelha, distendiam-se, outrora, três fazendas homônimas, que
se distinguiam pelo nome de seus proprietários* 1: Serra Vermelha de Manuel
Ferreira de Lima, Serra Vermelha de João Nogueira e Serra Vermelha de Cândido
Martins José.
A do primeiro
crescia nas vistas e se avantajava das mais em toda a ribeira: mais de
oitocentas cabeças de gado, criações sem conta, engenho de madeira, moente e
corrente, para o fabrico de rapadura. Manuel Ferreira de Lima, vulgo
"Ferreira Catendo", era fazendeiro incansável e empreendedor.
Comprara muitos chãos aos Pereiras, já em decadência por razões de lutas com os
Carvalhos (cfr. cap. 6, Adendo 1, A, 4, b). Evidentes suas qualidades morais de
honestidades e honradez. Casou-se em segundas núpcias com D. Joana Lopes,
"D. Joaninha", tia pelo lado materno dos irmãos Ferreiras. Vizinhos
seus, de um lado - João Nogueira. Homem completamente diferente do primeiro.
Soberbo e ambicioso: queria Ser o maior fazendeiro daquela ribeira e com
pretensões à chefança política da mesma. Daí por que, criminoso, mandara matar
o Padre Pereira que lhe frustrara os intentos (cfr. cap. 4 e 5). E se mordia de
inveja e despeito diante da crescente prosperidade de seu vizinho, com quem
jamais pôde brigar, dado o bom senso e tenência do próprio Manuel Ferreira
de Lima.
* A
fazenda Serra Vermelha, de Manuel Ferreira de Lima, media 400 braças de largura
por uma légua e meia de comprimento. As fazendas Serra Vermelha, de João
Nogueira (400 braças x 11/2 légua), a Pedreira, de Saturnino Alves de Barros
(400 braças x 1 légua), contavam para mais de mil cabeças de gado. José
Ferreira possuía na Ingazeira apenas umas trinta reses. Seu forte era a
elmocrevia.
É de se notar
que nessa inveja e nesse despeito de João Nogueira se encontram as raízes ocultas
que estimularam Zé Saturnino a abrir questão e fazer sustança dela com os
Ferreiras. O vizinho do outro lado, ao nascente — José Ferreira da Silva, ou
simplesmente "Zé Ferreira", da fazenda Ingazeira. Com trabalho e
esforço seu e a ajuda de Manuel Ferreira de Lima, botou nela prosperação: umas
trinta reses, alguns animais, abastança de miunça, roçados de algodão-mocó e de
legume, e sobretudo uma tropa de doze fortes burros, bem arreados, de
almocrevar. Tudo isso dava mantença, aumentação e melhoração a uma família de
onze pessoas, marido, mulher e nove filhos.
Pegada com a Ingazeira, pelo lado do norte, a fazenda Pedreira, acrescida com a
fazenda Maniçoba. Pertencera ao finado Saturnino Alves de Barros, ou
"Saturnino da Pedreira", casado com D. Alexandrina, "D.
Xanda". De seus dois filhos, um se tornaria célebre — José Alves de
Barros, conhecido por Zé Saturnino.* Alto, magro, esperto, trabalhador. Mas,
segundo testemunhos fidedignos de familiares seus e de quem com ele lidaram,
era "prepotente e arreliado", "gostava de provocar e afrontar os
mais", "de pisar no cangote". "De maus bofes", era
"odiento e vingativo", "jamais lhe conseguindo a própria mãe
moderação nas contendas e dificuldades mais comuns". Inda hoje, encanecido
e pisado pelo tempo e pelas lutas, por remorsos e pavores, se trai no ódio
sopitado e insatisfeito contra os irmãos Ferreiras, apesar de mais de trinta
anos já mortos! Indubitavelmente, servindo também de instrumento à inveja e
ambição de seu sogro, João Nogueira, foi ele, como se verá, o causador da
transformação do vaqueiro-almocreve Virgulino no cangaceiro Lampião.
* Rodrigues de
Carvalho, natural de Carnaíba, na ribeira do Pajeú, no seu livro "Serrote
Preto", p. 99, escreve: "José Saturnino era um indivíduo de instinto
perverso, espírito tacanho... Desde que viu o vizinho (José Ferreira da Silva)
prosperando, não pôde mais esconder o seu despeito, demonstrando a propósito de
tudo a mais sórdida inveja". Nertan Macedo, em "Capitão Virgulino
Ferreira Lampião", primeira edição, p. 160, transcrevendo o trecho
supramencionado do "Serrote Preto", endossa, com muitas testemunhas
de vista e contemporâneas, o conceito geral da personalidade negativa de Zé
Saturnino, que José inhamuns chama de "maldito homem". Cedo adquiriu
Zé Saturnino o apelido de Zé Muié, confirmado por seu cunhado Vicente Moreira
(cfr. cap. 10, Diário de Guerra e nota 14), no episódio da Favela, em Floresta
(cfr. cap. 32) e pela voz geral de soldados, de cangaceiros e até de
autoridades, segundo Davi Jurubeba e outros entrevistados.
A afoiteza de
Zé Saturnino estava antes na cobertura que lhe davam os cabras que possuía: Zé
Guedes e seu irmão Antônio Guedes, vulgo "Batoque", Tibúrcio, os três
Beneditos (Olímpio, Manuel e José), Zé Caboclo... e mais que todos, os dois, Zé
Cipriano e Vicente Moreira, cangaceiros (vindo o primeiro do grupo de Sinhô
Pereira) e, depois, cunhados seus pelo casamento com suas irmãs,
respectivamente Sinhá e Mariquinha.
O drama
A questão,
começada e sustentada por Zé Saturnino contra 'os irmãos Ferreiras, não se
originou de uma causa única, de um "chocalho", como simploriamente
houve quem dissesse. Mas de uma longa série de causas ou co-causas que se
encadearam num entrecho crescente até o rompimento definitivo, com suas
funestas consequências para toda a região do Nordeste.
Já conhecida a
causa oculta, íntima e estimulante — a inveja e ambição de João Nogueira. Resta
saber agora as causas manifestas, ou melhor especifi-cando:
— Qual a causa
primeira?
— Quais as causas subsequentes?
— Qual a causa determinante?
É o que se
verá daqui por diante, a modo de três atos apresentados dentro de uma seqüência
cronológica. De primeiro, eram muito cordiais as relações entre os Ferreiras e
Zé Saturnino. Chegou mesmo José Ferreira a escolher D. Xanda para madrinha de
apresentação no batizado de Virgulino. E, quando rapazes, Virgulino e Zé
Saturnino compareceram juntos, em São Francisco, como testemunhas do casamento
de Amélia (filha de Salvador) com o moço Emídio Germano, feitor das terras de Manuel
Ferreira de Lima.
Cercas das
divisas
Infalivelmente
zonas de atrito os limites de terras. Entre nações por causa de contrabandos,
entre propriedades por invasão de animais, até de quintal- para quintal por
qualquer nada.
O arame
farpado, fator de direitos (delimitando as propriedades), do segurança
(evitando depredações e estragos) e de paz social, era desconhecido. Apareceu
no sertão somente a partir de 1920. Antes, as propriedades eram cercadas
somente com paus e varas. Uso, aliás, continuado até os dias que são hoje pela
facilidade de matéria-prima disponível no próprio terreno e economia de
mão-de-obra.
Na variedade
da tessitura dos tipos de cercas*, condicionados à segurança e duração
requeridas, mostram-se os cerqueiros extremamente hábeis, exibindo interessante
arte rústica nos quadros rurais da paisagem sertaneja. Com o tempo, porém, a
madeira, ressequida ou apodrecida, torna a cerca vulnerável, especialmente aos
terríveis caprinos. O bode fura, a ovelha pe-netra, a rês derruba, o animal entra,
destiorando semeaduras e roçados. Coisas justificáveis por parte dos
proprietários da Ingazeira e Pedreira, compreensivos e amigos. E, no caso de
sério prejuízo, as compensações se realizavam dentro do clímax das boas
relações existentes. "Oxente! O diaga é bicho. Ninguém pode dá juízo a
bicho..."
* Há vários
tipos de cercas: — de pau-a-pique: vertical, de madeira grossa ou varas; — de
faxina: varas finas e flexíveis entrecruzando com outras mais grossas; —
deitada: com varas horizontais; — de ramo: horizontal entrelaçada de
garranchos; — de pedra: onde abundam pedras soltas; — meia-cerca: metade
inferior de pau-a-pique ou pedra, completada com arame farpado; — de arame:
arame farpado. O arame farpado foi introduzido no sertão em 1920. Dado o seu
custo, não é acessível senão a bolsas privilegiadas. Faz-se, essa última cerca,
de nove arames para não deixar passar nada. Os primeiros quatro arames de 15 em
15 centímetros, para não passar bode, ovelha e miunça; o quinto arame com 20
centímetros; o sexto com 25; e os três últimos a 30 centímetros para o gado não
meter a cabeça. Usam-se para estacas de sustento do arame esticado: aroeira,
angico, catinga de porco, imburana... Sousa Barros, no seu livro "Cercas
Sertanejas", apresenta 25 tipos.
Origem da
questão: um romance de amor (1915)
O velho Terto
de Inajá costumava contar*, na sua feitura de sertanejo probo, que fora uma
questão de amor que dera origem às divergências entre os Ferreiras e Zé
Saturnino. Quando no viço de seus dezessete anos, gostara Virgulino de uma
jovem, Santina Lopes da Silva, a quem chamaria — "sua prenda querida"
e "flor mimosa do sertão", em famosos versos de fina sensibilidade
amorosa (cfr. cap. 6). O porém da história foi ter aparecido uma avança, da
mesma idade de Virgulino e parente de Zé Saturnino, o qual se tomou de paixão
encegueirada pela mesma donzela, apesar de não correspondido e até mesmo de ter
levado vários cortes de repulsão. Num dia de sol ipiaça, arado pela roedeira do
ciúme, foi ele esperar Virgulino, que ia desprecatado em caminho do bebedouro
da fazenda. Todo raposeiro, fez-lhe perguntas ciumentas e, por que tal e por
que vira, arrepiou-se amolestado para dar-lhe. Não foi de sorte nem de sustança
na empreitada, apanhou muito de incoiar de queda e de arroxear no tapa-olho.
Por esse
motivo, ficaram os parentes do moço apanhado (e provavelmente o próprio Zé
Saturnino) queixosos, ressentidos, abafados. Os recalques nos sertanejos se
acentuam, com o isolamento em que vivem. Seu campo de imagens é- reduzido ao
pequeno e invariável mundo que os cerca. Donde a facilidade de fixação de
lembranças, principalmente de fatos quentes. Não esquecem, seja o bem, seja o
mal. De uma faúlha tudo pode ser fatível: Mesmo de dentro da cinza pode gerarem
incêndios. Questão apenas de oportunidade, somente.
A imagem dessa
jovem de tal modo se fixou durante quinze anos no coração de Virgulino que
jamais, todo esse tempo, amou nenhuma das tantas mulheres, machão que ele era,
com quem palpitava até deixando filhos. Somente em 1930 iria encontrar em Maria
Bonita a réplica de sua Santina numa identidade de beleza com a imagem
estereotipada no seu espírito que o desconcertaria no momento da primeira
impressão. Para se ligar a ela chegou a modificar a estrutura do cangaço! E
dedicou-lhe sinceramente fidelidade de amor a toda a prova (cfr. cap. 45).
* Esse fato
foi também relatado por Pedro Rosa de Morais, conhecedor da vida de Lampião, o
qual se hospedava em sua casa toda a vez que passava pelo Espírito Santo.
Nasceu ele, Pedro, nessa vila, criou-se em Olho D'água do Coxo, situada perto
da fazenda Beldroega. Assassinado, em dias do carnaval, no mês de fevereiro de
1938, em Pão de Açúcar, AL.
Prisão do
morador de Zé Saturnino
O tio materno
dos irmãos Ferreiras, Manuel Lopes, ainda moço e muito disposto, fora nomeado
inspetor de quarteirão, cargo equivalente hoje ao de comissário de polícia.
Autoridade sem vantagem financeira. Estendia-se sua jurisdição pelas fazendas
daquela ribeira: Matinha, Pedreira, São Miguel... Sua função: dirimir questões
de terra, resolver problemas por causa de cacimbas, de cerca fora dos
limites... E, também, repressiva contra malfeitores, principalmente ladrões de
bode, apelidados de "onças de dois pés". Vez por outra, saía em
diligência, sempre por iniciativa própria, em face de denúncias, ou para
proteção de sua propriedade e família. Não dispondo de milicianos, fazia-se
acompanhar de um ou mais sobrinhos seus, armados de rifles calibre 44, muito
comuns. Corria o mês de agosto dessa era de 15 de grande seca. Um solão brabo vigorando
no céu escampo, diáfano, sem azul, esturricando as cacimbas e secando os pés de
pau. Os bichos berrando de desespero nos apertados da fome e da morte.
Levas de
retirantes, esmulambados e famélicos, no arrasto penoso da vida, varando o
sertão, sem destino e sem um derréis, o coração desarriado das esperanças e o
olhar parado ante a visagem apavorante da seca. Começaram os Ferreiras a
estranhar o sumiço danado de bodes e cabras. Supondo tratar-se, não de
necessitados por fome, que eram sempre acolhidos e atendidos, mas de
aproveitadores do alheio, Manuel Lopes, valendo-se de sua autoridade e na
qualidade de também prejudicado, resolveu, acompanhado de seu sobrinho
Virgulino e dois cabras, fazer uma diligência à cata dos possíveis ladrões e
dos caprinos.
Após
infrutíferas batidas pelas redondezas e atendendo a várias denúncias de outros
também prejudicados, incursionou pela fazenda Pedreira, dando um cerco num
grupo de casebres de moradores de Zé Saturnino. Na de Zé Caboclo, depois de
acurada busca, Virgulino deu de fé que a terra, sob um enorme pilão de braúna,
na cozinha, estava revolvida de fresco. Retirando, com um ferro de cova, ou
cavador, as primeiras camadas de terra, encontrou grande quantidade de peles de
bode enterradas, verificando pelo sinal das orelhas tratar-se de animais
desaparecidos da sua fazenda e pertencentes a seu pai e a seu tio.
Manuel Lopes
prendeu Zé Caboclo e o negro criminoso, de nariz achamurrado, chamado Tibúrcio*
indigitados responsáveis, conduzindo-os sob escolta para a Ingazeira. Onde os
manteve detidos e amarrados no tronco por um ou dois dias, ao cabo do que, a
pedido de José Ferreira, os mandou embora, advertindo-os de que, no caso de
fazerem por onde, de reincidência, tomaria medidas severas.
* Esso negro
Tibúrcio, mais tarde, juntamente com outros dois, Batoque e Zé Guedes, todos os
três moradores de Zé Saturnino, foram à fazenda Serra Vermelha, da viúva 1),
Joaninha Ferreira, e roubaram o paiol de milho, juntas de bois mansos,
queijos... o lovarion para a fazenda Pedreira! (Lampião deu fim a ele — cfr.
cap. 20).
Com dias, numa
feira, em Vila Bela, comunicou Manuel Lopes, pessoalmente, o ocorrido a Zé
Saturnino e pediu-lhe expulsasse elementos tão indesejáveis. Zé Saturnino
manifestou, de logo, o seu desagrado em torno do acontecido, negou expulsar
seus "homens de confiança", achando se efetivara uma "invasão
indébita" de sua propriedade com prisão de moradores sem sua licença;
coisa que implicava em grave ofensa à sua reputação e à sua honra. Manuel Lopes
recusou essa interpretação errônea. dos fatos, havendo entre os dois forte
alteração, terminando, porém, sem maiores consequências em face da intervenção
de pessoas amigas. Todos em casa dos Ferreiras, no entanto, acharam que o
incidente não estava encerrado.
Realmente,
desse fato inicial outros foram se sucedendo e somando até chegar a resultados
trágicos. Socorrendo-se da política, conseguira Zé Saturnino a demissão de
Manuel Lopes do cargo de inspetor de quarteirão. E, em consequência da falta de
autoridade, estabeleceu-se, para começar, a má vizinhança. De quando em vez,
apareciam cabras surradas, bodes de orelhas cortadas, ovelhas com perna
quebrada, carneiros de roncolho...
Era o bicho de
uma propriedade penetrar na outra adversa e acontecer tudo isso, de parte a
parte; sem que ninguém visse, mas se sabia e adivinhava quem.
A primeira
briga
A 8 de
setembro, véspera da tradicional festa da Padroeira de Vila Bela, Nossa Senhora
da Penha, todo engangento desprecatado, fora Antônio Ferreira, no seu
esquiparador melado de estampa, buscar um parelho que mandara costurar por
Anízia Novais (casada com João Araújo Cavalcanti, conhecida por Anízia da
Ipueira, sítio localizado na mel sido do caminho entre Pico e Nazaré.
De volta, numa
curva do caminho, ainda perto da casa costureira, vinha, em sentido contrário,
o cabra Zé Cabloco, também a cavalo. Assim que viu Antônio, deu um urro medonho
e partiu a galope para cima dele, se atracando os dois, mesmo amontados,
descendo agarrados e rebolando pele numa luta feroz. Em dado momento, Zé
Cabloco conseguiu sujicar Antônio, montando-lhe em cima.
E quando deu de garra da pajeuzeira para sangrar Antônio, este,
reunindo, num esforço supremo, as forças todas juntas do instinto de
conservação, danou um supetão , no cabra, que, despregado, caiu ao lado, de
borco, afocinhando o chão e quebrando-se a faca numa pedra. Antes que tivesse
dado tempo a Antônio de puxar de sua faca, e alarmado, também com os gritos de
mulheres ali chegados, Zé Caboclo, num de repente, pulou feito gato, no osso de
seu cavalo e correu, embrenhando-se na catinga.
Antônio pegou a roupa e pisou para casa. Em chegando, avoou o liforme em cima
da mesa e disse não ir mais à festa. Entrou no quarto e saiu limpando o rifle e
botando bala. A mãe interrogou a causa e o por que daquilo tudo. O filho lhe
contou apressado o acontecido e saiu vexado no rumo da casa da avó para ver o
irmão Virgulino, modo de pegar o cabra. Em vão esgravetaram e fizeram indagação
por todos os cantos.
—
"Sujeito chia e titica! Se encafedeu!" — gritava Antônio.
José Ferreira,
ao chegar, tratou de abrandar o ânimo afuleimado de Antônio, dizendo e
convencendo não ter havido desfeita. E resolveu que naquele ano ninguém iria à
festa. Essa a primeira briga que um dos irmãos Ferreiras tivera. Contava
Antônio vinte anos de idade.
A política no
meio
Sempre juntas
no sertão: seca, questões e política. Deflagrada a campanha para sucessão ao
governo do Estado. No páreo: Dantas Barreto para reeleição e Manuel Borba na
oposição. Os Carvalhos de cima, no situacionismo. Seguidos por João Nogueira e
Zé Saturnino. Os irmãos Ferreiras, com seu pai José Ferreira e seu tio Manuel
Lopes, acompanhavam Mário Alves Pereira Lira* votando na chapa borbista. Aliás,
era a primeira vez que Virgulino, Antônio e Livino votavam, exercendo assim um
direito civil de cidadãos. Zé Saturnino e seu sogro não viram com bons olhos
essa votação dos Ferreiras no partido oposicionista. Assim, não deixou de haver
motivação política na questão entre os dois adversários.**
* Mário Alves
Pereira Lira, de Recife, fixou-se em Vila Bela, casando-se com uma Carvalho.
Político influente, eleito prefeito municipal no período 1916-1920.
** Antes de
Manuel Lopes, Luis do Tiú (Tiú localidade entre Vila Bela e Serra Vermelha)
fora nomeado inspetor de quarteirão; instigado e acompanhado por seus
correligionários, os Nogueiras, da política dos Carvalho, esteve em diligência
através das propriedades dos Ferreiras, prendendo moradores, apreendendo armas,
ocasião em que Manuel Ferreira Lima foi conduzido à casa do velho João
Nogueira.
Fatos
subseqüentes (1916-1917).
Cada dia mais
aumentando a tensão entre as partes adver-sas, passando as hostilidades a ter
um caráter ostensivo, de atritos pessoais.
a) Ninguém no
Pajeú como Antônio Ferreira para mestrar cavalo e botar passo de esquipa, de
baixo, de meio, de trote, de galope 'em animais.
Certa vez, botava ele pisada
ou carrego no seu bonito cavalo, quando, de passagem, Zé Saturnino, pilhérico e
ofensivo, lhe fez indagação:
— "Quanto
quê pela grélha?" Antônio, abodegado, respondeu ao insulto:
— "Grélha é a mãe!"
b)
Ocultamente, Neneco Nogueira, solteirão, filho de João Nogueira fez
capação-de-volta numas grelhas de escancho deixando-lhes os culodinos,
atrofiados. Os animais pertenciam à Ingazeira. Os Ferreiras descontaram
cortando pelo cotó as caudas e crinas dos cavalos da Pedreira.
c) De novo
eleições. Desta vez para prefeito do município. Saindo eleito Mário Alves
Pereira Lira para o período de 1916 a 1920.
Pela segunda
vez os irmãos Ferreiras votaram acompanhando o candidato vencedor.
d) 1917.
Zé Saturnino
tirou uns chocalhos dos burros dos Ferreiras. Estes, notando a falta, tiraram
chocalhos das vacas e cabras dele. Voltou Zé Saturnino, retirou os seus
chocalhos e saiu amassando quanto chocalho encontrava nos animais dos
Ferreiras.
Desta vez
houve discussão forte e quase se pegavam. E como resposta à sua reclamação
acusando aos Ferreiras pelo desaparecimento de chocalhos, Zé Saturnino,
sofreado e estarrecido, ouviu de Virgulino:
— "Ladrão
é você que roubou os chocalhos de nossos burros!"
e) Não foi
difícil a Zé Saturnino arranjar sua nomeação para o ambicionado cargo de
inspetor de quarteirão. Tendo conhecimento de que os irmãos Ferreiras estavam
ausentes, aproveitou a ocasião para, acompanhado de cachimbos, correr e
desarmar o velho Zé Ferreira. Encontrou apenas um bacamarte ou clavinote de
festejar São João, uma espingarda lazarina de caçar e um facão de usar no mato.
Era dia de São Pedro.
E assim por
diante, numa progressão perigosa e imprevisível de consequências. O certo é que
ninguém queria ficar por baixo. E a situação não explodiu, mais cedo, em graves
hostilidades por viverem os Ferreiras muito por fora, carguejando.
Fundação de
Nazaré
Resolvera o
velho professor Domingos Lopes Soriano de Sousa criar um povoado na chã de sua
fazenda Algodões, à margem esquerda do riacho Carqueja, assim chamado o riacho
da Ema naquele trecho.
Lugar bem
assentado, mesmo na confluência do dito com o seu afluente Ipueira e favorecido
pelo caminho que liga Vila Bela a Floresta, ausente de oito léguas exatamente
entre as duas.
A
moradia-escola da fazenda, construída ao sul do local escolhido, serviria de
esquadro, na direção norte, para o riscado das duas linhas perpendiculares,
longas de cento e vinte metros, e paralelas, separadas por vinte metros, que
formariam o arruado. No fim do traçado, ficaria a capela com a porta da rua
olhando para a casa do professor. Entusiasmado com a iniciativa e sendo
solicitado, o vigário de Vila, Bela, então regendo Floresta, Padre Zacarias
Paiva, batizou a futura localidade com o nome de Nazaré.*
* O Padre José
Kehrle, vigário de Floresta, levou da Matriz para a capela de Nazaré uma imagem
de. Nossa Senhora das Dores. Diante dos protestos dos florestanos -n imagem
voltou e em seu lugar foi comprada a de Nossa Senhora da Saúde, que lá está.
O professor
sabia o que queria. Por isso, valendo-se de seu tato e respeitável prestígio de
mestre-escola, conseguiu interessar os amigos no projeto. Assim, Antônio Gomes
Jurubeba, da fazenda Jenipapo, Pedro Tomás, da Lagoa do Mato, Raimundo
Nogueira, do Pico e outros, logo no início de agosto, começaram a construir
suas casas no cordeamento, muito embora nelas não residissem e as ocupassem
somente nos dias de feira e de Missa.
A família
Ferreira, de pronto, aceitou o convite do professor, seu grande amigo,
tornando-se co-fundadora de Nazaré. Vieram fixar-se no incipiente arruado: João
Ferreira, da fazenda Batata, Cândido Ferreira, da fazenda Caibros e D.
Joaninha, da fazenda Serra Vermelha, assim que, em fins de novembro de 1917,
enviuvara de Manuel Ferreira de Lima.*
A minúscula
feira estabelecida em 1919, sem paga de imposto, às quartas-feiras, funcionava,
debaixo da latada de mato junto da quixabeira em frente à casa de Florisbela,
da fazenda Olhões, chamada vulgarmente Zolhões. Com a feira vieram os
comerciantes de Floresta, João Novais e João Gominho, se estabelecer com
pequenas lojas filiais de fazendas e miudezas.
* Quem
primeiro se transferiu para Nazaré foi D. Joaninha (Nanã). Seguida,
sucessivamente, de Cândido, Noberto e João.
Nazaré ia
crescendo devagarinho e tranquila.
Causa
determinante (12 a 15 de outubro de 1917)
Enquanto isso,
na ribeira do São Domingos, a questão levantada e conduzida por Zé Saturnino
chegava ao desfecho. Mandara fazer Zé Saturnino em sua propriedade uma broca no
mato, cercando-a para situar um roçado. O caso, porém, é que, na construção da
cerca, foram sobraçados bons tacos de terra da Ingazeira — o primeiro passo da
invasão para a predeterminada tomada da fazenda.
Os Ferreiras,
certos de seu direito de propriedade, desmancharam a cerca, encoivararam a
madeira e tocaram fogo. O gado da Ingazeira, pastoreando por essa fronteira
aberta, invadiu a broca de Zé Saturnino. Isso, na terça-feira, 12 de outubro.
Zé Saturnino
tendo ido ao campo vaquejar notou as reses dos Ferreiras. De volta, todo
arrebatado e no seu modo ríspido de falar, recomendou ao cabra, seu morador,
Olímpio Benedito: — "Quando os Ferreira vinhé juntá o gado na broca, chame
o Chico Morais Arves (outro morador) e infinque bala neles. O rifle tá aqui no
canto cum a cartucheira". No dia seguinte, 13, pelas seis da manhã, os
três Ferreiras, encourados em trajes de vaqueiro e desarmados, chegaram para
rever o gado.
Olímpio, que
estava trabalhando de foice na broca, correu, deu garra do rifle e chamou Chico
Morais, que não quis ir. Olímpio deu três tiros, de mesmo, com o objetivo de
atingir os rapazes, não acontecendo porque era a primeira vez que atirava de
rifle.
No outro dia,
14, os Ferreiras, desta vez armados, vieram vaquejar. Ao avistarem alguns
moradores de Zé Saturnino, meteram fogo neles, que saíram correndo.
No dia 15 de
outubro, sexta-feira, os três Ferreiras, agora seguidos de um seu agregado,
Luís Gameleira, vieram, na mesma hora, seis da manhã, de novo armados e
prevenidos, para a faina diária de recolher o gado. Foram vistos, de longe, ao
passarem o aceiro da broca, por um morador da Pedreira, que correu a avisar Zé
Saturnino, o qual estava batendo tijolo para sua casa. Zé Saturnino disse a
seus cabras: — "Vamos dá uns tiro naqueles mocó?" (chamara os
Ferreiras de mocós). Entrou em casa e retirou armamento com munição para Zé
Caboclo, os três Beneditos (Olímpio, Manuel e José), 'Paizinho e Dionísio
vaqueiro.
Aos quais se
uniram João Nogueira e seu filho Zé Nogueira, presentes na ocasião.
Emboscaram-se num serrote da Lagoa D'Agua Branca, ao pé da serra Vermelha, nos
limites da Pedreira com a Ingazeira. Quando os Ferreiras estavam na mira de
suas armas, fizeram fogo de surpresa, ficando, de início, Antônio Ferreira
ferido com um balaço, que lhe pegou na região do apêndice e saiu na reata da
calça, na altura dos rins. O tiroteio rompeu violento e rápido, durante apenas
dez a quinze minutos, retirando-se os Ferreiras sem que os inimigos tivessem
coragem de lhes seguir no encalço.
Pela primeira
vez na vida, os irmãos Ferreiras atiraram em gente! Antônio com vinte e dois
anos de idade, Livino com vinte e um e Virgulino com dezenove. Enquanto Livino,
com o agregado, voltava para casa, Virgulino levava seu irmão ferido para a
residência do tio Manuel Ferreira de Lima, na fazenda Serra Vermelha. Adonde, o
genro deste e tio daqueles, Antônio Matilde Ferreira, entendido de ferimento,
cuidou do sobrinho durante vinte dias, tempo que levou para ficar bom.* Nisto
foi ajudado pelo jovem. de quinze anos João, irmão do baleado, que ensinava a
carta de abe a seus primos, filhos do dono da Serra Vermelha.
* Antônio
chegou todo melado de sangue na fazenda Serra Vermelha.
Seu "tio"
Ferreira Catendo, inteirado do ocorrido, mandou imediatamente chamar Antônio
Matilde, na Mutuca. Este desinfetou a ferida com álcool e ácido fênico; com uma
navalha flambada cortou a ferida em cruz: queimou um sacatrapo (rosca da vareta
de espingarda) e com ele retirou a bala. Para sarar: fez uma papa 'de azeite
doce com a baba (selva) do cipó de cobra ou tripa de galinha; melou essa
mistura em uns fiapos do linho; xiringou (seringou) água fenicada no orifício;
introduziu no furo os fiapos melados até o fim, deixando-os aí; diariamente a
mesma operação; limpa a ferida vai ela sarando de dentro para fora até fechar
sem necessidade de pontos.
Nesse ínterim,
José Ferreira tomou um burro e foi à Vila Bela dar parte e instaurar processo
contra as sucessivas provocações e ameaças de Zé Saturnino, culminadas com o
baleamento de seu filho. Ora, o delegado regional tinha um irmão querendo se
casar com uma irmã de Zé Saturnino. Por isso, todo abusado, mal ouviu o
queixoso, e terminou dizendo, com sarcasmo e menoscabo, que não se metia na
encrenca, pois, conforme o ditado, "entre duas pedras catolé".
A justiça,
subalterna ao mais forte, também fugira de atender a um justo reclamo de sua
alçada e que poderia dar cabo de tais malquerenças e estabelecer paz em
definitivo.* Diante do fracasso, voltou José Ferreira para casa, humilhado,
desfazido, sofrido, e sem tino para encontrar solução.
"A
besta-fera se soltou" — exclamava D. Jacosa.
É quando os
Ferreiras compreenderam que tinham diante de si um "terrível inimigo"
— o inimigo número 1 — Zé Saturnino!"**
Numa estrofe,
sincera e sentida, Lampião lamentou as imposições do destino:
"Mas, o
destino impiedoso,
Foi cruel para
comigo.
E a sorte
caprichosa
Me impôs este
castigo.
Quando eu não
esperava
Nem em tal
coisa pensava
Tinha terrível
inimigo!"
* "A Paz
é Fruto da Justiça" (Pio XII). Houvesse "Justiça" e não haveria
Lampião... Das instituições humanas a mais falha, quando deveria ser a mais
perfeita, porque básica. — "A lei a gente espicha como quer!" — dizia
certo juiz de direito. A justiça — sempre com letra minúscula, porque maiúscula
só a divina, — é jogo de esgrima: vence o advogado mais atilado. Para libertar
o criminoso, a que chamam de "constituinte", não tem escrúpulo o
causídico de empregar a mentira. Isto porque a falta de consciência não lhe
traz remorsos. A corrupção e subserviência de certos "íntegros",
escudados na intocabilidade, transformam o título das peças e processados
jurídicos em farsa. Se não se justifica a atitude de Lampião ao fazer justiça
pelas próprias mãos, a carência de justiça, entretanto, a explica.
** Zé
Saturnino é chamado de "inimigo n. 1" porque foi o
"primeiro" e não o "maior", nem o mais importante. Entre os
maiores contam-se José Lucena, que assassinou seu pai, levando-o daí ao cangaço,
João Nogueira com sua ambição, Manuel Neto, por sua tenacidade e crueldade,
José Pereira, de Princesa, que ele chamava de "perverso, falso o
desonesto"...
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