Por Honório de
Medeiros
“Quem tudo
compreende, tudo perdoa” (Leon Tolstoi).
No dia 9 de junho de 2017, a partir das nove horas da manhã, em Mossoró, no
Fórum Municipal, atuei como advogado de defesa no júri simulado, sob a
presidência do juiz Breno Valério Fausto de Medeiros, que julgaria Jararaca.
Era a comemoração do aniversário da defesa de Mossoró ante o ataque do bando de
Lampião. A acusação ficou a cargo do advogado Diógenes da Cunha Lima.
Terminados os trabalhos o Conselho de Sentença houve por bem inocentá-lo por
seis votos a um (6X1). Segue, abaixo, o texto que norteou minha participação.
1. Esta é uma
história de perdão, não de julgamento. “Quem tudo compreende, tudo
perdoa”.
2. Antes,
entretanto, peço permissão às senhoras e senhores para mergulhar nas águas do
meu próprio passado.
3. Pois foi
aqui mesmo, nesta Mossoró libertária, que eu nasci e cresci, ao lado da Igreja
de São Vicente.
4. Ali ficava
a casa de Rodolpho, depois a de Alfredo, e em frente, a dos Hollanda. Do lado,
a de Joaquim Perdigão. Atrás, a de Pacífico Almeida. No final, a de Ezequiel
Fernandes. Era o chamado Bairro Novo, escassamente povoado. A todas essas casas
dominava a Igreja, à sombra da qual jogávamos bola e brincávamos de
bandeirinha, no mesmo chão que foi pisado pelos cangaceiros, dentre eles José
Leite de Santana.
5. Por que
estiveram ali? Por que atacaram Mossoró?
6. Por que
atacaram Mossoró?
7. Compilei
quatro teorias. José Leite de Santana é fundamental para que se entenda a
quarta teoria. José Leite de Santana, Ferrugem e Mormaço disseram que Lampião
nunca pensou em invadir Mossoró. José Leite de Santana abriu o jogo para Lauro
da Escócia. José Leite de Santana quis falar com Rodolpho Fernandes e não
deixaram. José Leite de Santana por isso mesmo foi morto.
8. Mas como
falar em José Leite de Santana sem falar no cangaço?
Como falar no cangaço sem
falar da época no qual o cangaço aconteceu? Como falar daquela época sem
recordar as condições de vida do sertanejo nordestino, fonte de onde o cangaço
emanou? Como falar dessa fonte sem entender a crucial diferença entre os
resignados e os que não se submeteram? Como abordar essa questão sem perceber
que dentre os que não se submeteram estão aqueles que tomaram o caminho do mal,
enquanto outros, o do bem? Como não compreender que nem sempre a opção pelo
caminho do mal foi algo ao qual se pudesse resistir, tamanha a incapacidade de
se ter, nas próprias mãos, o próprio destino?
9. Esses são
os outsiders, os irridentes, os insubmissos, os irresignados, os diferentes, os
revolucionários. Esses são o sal da terra, para o bem ou para o mal. Trágico
quando é para o mal, como no caso de José Leite de Santana; sublime, quando o é
para o bem, como no caso de tantos aos quais devemos nosso avanço enquanto
espécie.
10. O cangaço
é a história de rebeldes. Podemos subjugar rebeldes. Podemos condenar rebeldes.
Podemos matar rebeldes. Mas não podemos impedir que a memória de suas
existências acicate o nosso repouso envergonhado. O cangaço é a história de
homens que resolveram se vingar; de homens que não aceitaram serem escravos; de
homens que optaram por sobreviver SEM LEI E SEM REI, nos mesmos moldes dos
desbravadores dos nossos sertões, numa liberdade absoluta, uma liberdade de
fera, a liberdade da qual nos falou Hobbes em O Leviatã. O cangaço foi o último
suspiro dos desbravadores do Sertão, aqueles mesmos que disputaram a terra com
os índios ferozes, palmo a palmo, sangue a sangue, numa guerra contínua e
esquecida do resto do mundo. A guerra dos bárbaros.
11. José Leite
de Santana foi assim. Percebemos isso em seu olhar na célebre fotografia tirada
na prisão em Mossoró. Passei muito tempo olhando para a fotografia. Ali não
estava apenas o olhar de quem está ferido. Ali estava, muito mais que isso, o
olhar de quem foi subjugado à força, mais uma vez. É o olhar de uma fera de
quem tiraram sua liberdade. É o olhar de quem vai morrer.
12. José Leite
de Santana já nasceu subjugado, e contra essa subjugação lutou até o último
instante: nasceu bastardo, pobre, preto e desvalido. Um infame. Infame antes
mesmo de ser um homem mal.
13. Não se
trata de dizer que o meio fez a escolha dele. Não podemos cair nessa armadilha.
Ele escolheu seu caminho. Outros fizeram opções diferentes. O comum dos mortais
escolheu vergar sob o peso da escravidão diária. Pagou por isso. Mas antes
mesmo da escolha, o destino já o tinha jogado na lata de lixo dos dejetos
humanos.
14. Como julgar
José Leite de Santana com os nossos olhos? Um homem que não tinha o que comer,
se não chovesse, e não chovia; não tinha médico; não tinha dentista; não tinha
transporte; não tinha estudo; não tinha dinheiro; não tinha passado, não tinha
presente, não tinha futuro, não tinha nada.
15. Pois foi
este homem, refugo da vida, que nos permitiu levantar um pouco a cortina, o véu
que esconde a verdade dos fatos, morreu violentamente e o povo o transformou em
herói e o santificou.
16. Herói por
que ousou a coragem da loucura ou a loucura da coragem de viver sem lei e sem
rei, os últimos deles.
17. Santo por
que intercede, lá entre os acolhidos pela infinita bondade de Deus, pelos que
sofrem, para assim purgar as dores que causou neste mundo de miséria e
sofrimento.
18. Não é
possível ver-se nas intercessões dessa alma torturada a quem o julga lá no
Alto, em defesa dos que ficaram para lhes minorar a dor, um pedido de perdão
por todo o sofrimento que causou quando vivo?
19. Não é ele
um dos cainitas, dos quais nos falou Herman Hesse, um dos escolhidos por Deus
para ser as trevas que valorizarão a luz?
20. Por que
não podemos perdoá-lo, se perdoamos São Paulo; Pe. Cícero; Santo Agostinho;
Maria Madalena; São Longino, o chefe dos soldados romanos que, no caminho para
a crucificação de Jesus, perfurou o peito dele com uma lança?
21. Somente a
Santa Igreja pode, pelo Princípio Petríneo das Chaves, dizê-lo oficialmente
santo. Mas assim como Padre Cícero, para o povo, ele já o é.
22. Se o
condenamos hoje, condenamo-lo novamente; se o absolvemos estamos a ele
ofertando o nosso perdão.
23.
Reconstituamos os últimos dias de José Leite de Santana: 13 de junho, final da
tarde: é ferido; 14 de junho, pela manhã: é traído por Pedro Tomé; à tarde:
concede a célebre entrevista a Lauro da Escócia; o ordenança do sargento Kelé
tenta lhe arrancar o dedo, para ficar com um anel; 15 de junho: identifica os
cangaceiros na foto de José Octávio; 16 de junho: o Tenente Laurentino de
Moraes viaja para Natal; 17 de junho: o Tenente Laurentino volta de Natal; 18
de junho: o laudo cadavérico é assinado pelo Juiz Eufrásio Mário, pelo Tenente
Laurentino de Moraes e por Dr. João Marcelino; 19 de junho: manda pedir para
falar em particular com Rodolpho Fernandes; 20 de junho, naquela noite
tenebrosa, às 23 horas, mais ou menos, é assassinado sob a vista dos Tenentes
Laurentino de Moraes, Abdon Nunes e João Antunes; Sargentos Pedro Sylvio, João
Laurentino Soares, Eugênio Rodrigues; Cabos José Trajano e Manoel; soldados
Militão Paulo e João Arcanjo; motorista Homero Couto.
24. Coube aos
soldados o trabalho sujo, como coube quando mataram Lampião, na degolação de
Maria Bonita ainda viva. As volantes eram semelhantes ou piores que os
cangaceiros.
25. Dirá
depois Luiz da Câmara Cascudo: “Ferido de morte, acuado como uma fera entre
caçadores, impassível no sofrimento, imperturbável na humilhação como fora em
sua existência aventurosa e abjeta, herói-bandido, toda a valentia física e a
resistência nervosa da raça de índios e dominadores dos sertões, reviviam nele,
empoçado no sangue, vencido e semimorto. Aquela força maravilhosa, orientada
para o crime, dispersava-se lentamente..."
26. Absolvamos
o cangaço e perdoemos José Leite de Santana. Ou, melhor, perdoando José Leite
de Santana, absolvamos o cangaço.
Jararaca,
preso e ferido, na Cadeia Pública de Mossoró, algum tempo antes de ser morto
pela polícia, no cemitério de Mossoró, na noite de 20 de junho de 1927.
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