Material do acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
COMO SE FORJA
UM CANGACEIRO
MASSACRE EM
QUEIMADA
Invasão do
Arraial – Lampião Protege um Sargento – Matança de “Macacos” – Conversa Secreta
Antes de Partir.
APESAR da
união existente entre os componentes do bando, muitas coisas que se passavam
entre nós, até hoje, ainda são um verdadeiro mistério para mim. Lampião não
gostava de nos deixar cientes de tudo que fazia ou pretendia fazer. A
subsistência do bando era um desses mistérios. É verdade que eu não desconhecia
o objetivo empregado, o que eu não sabia era como o plano era traçado, pois na
maioria das vezes eu não tinha oportunidade nem de ver os intermediários.
Não era sempre que Lampião obrigava o bando a praticar a pilhagem nos povoados.
Ele gostava mais de mandar pedir aos fazendeiros uma certa quantia de dinheiro,
o que raramente era recusado. A quantia pedida variava sempre de cinco a vinte
contos de réis, conforme as posses da vítima.
Quando havia recusa, o fazendeiro pagava caro a “ousadia”. E se Lampião não
conseguisse chegar à fazenda, vingava-se nos empregados, era cortando dedos e
até as mãos dos infelizes. Se conseguisse entrar na fazenda, liquidava os que
lá estivessem, salvo as mulheres e as crianças.
O que me intrigava, porém, era que certos fazendeiros não davam dinheiro e
viviam em com Lampião. Em certas fazendas, nós nem chegávamos perto. Só ele
mesmo ia lá. A memória, porém, falha-me agora para recordar os nomes desses
coiteiros, e eu creio que isso suceda pela pouca atenção que na época eu dava
ao fato.
A “CARIDADE”
DE LAMPIÃO
DINHEIRO, no
bando, só entrava pelas mãos de Lampião, e ele então dava aos “cabras” o que
julgava conveniente. Não guardava dinheiro em banco, e o que tinha estava todo
em dois bornais que não largava nem para dormir. O dinheiro e as armas estavam
sempre com ele. Eram pacotes de notas de conto de réis e que muitas vezes
ultrapassavam a casa dos duzentos contos! Quando Maria Bonita entrou no bando,
dada a confiança que ele depositava nela, permitia-lhe carregar parte do
“tesouro”. As notas menores, de cem e duzentos mil réis, ele as trazia nos
enormes bolsos das calças e do dólmã. Quando encontrava um pobre coitado
passando necessidades, gostava de meter a mão no bolso e, sem contar, trazê-la
cheia de notas pequenas e entrega-las ao infeliz. Fazia isso ostensivamente, na
frente de todos, e gostava que o tivessem na conta de caridoso. Quando qualquer
um de nós precisava de dinheiro, não se recusava a dar, salvo se a importância
fosse exagerada. Mas a verdade é que nunca houve briga por causa disso entre os
componentes do bando, visto que o dinheiro sempre foi abundante para nós.
Mas Lampião não era tão protetor dos pobres assim. Às vezes gostava de fazer a
caridade à custa dos outros. Se entrava num povoado e não simpatizava com certo
negociante, abria as portas a casa e mandava os pobres invadi-la e saqueá-la.
A verdade é que Lampião tinha muita coisa de misterioso e, conquanto naquela
época isso não me importasse, hoje me intriga. Houve um fato que até agora não
pude explicar direito a mim mesmo. Foi quando entramos em Queimada, no
município baiano de Bonfim.
Queimada estava fácil para ser tomada por nós, pois, como sempre, chegamos de
surpresa. O rio do Peixe, que banha a localidade, estava na enchente, razão
pela qual tivemos de atravessá-lo de canoa, e entramos na cidade sem o menor
embaraço. Ninguém tentou deter-nos, e a população, ao ver-nos, fugia assustada
e trancava-se em casa.
TOMADA DO
QUARTEL
FOMOS
diretamente ao quartel, onde surpreendemos um soldado cochilando numa cadeira e
um sargento deitado na rede. Com o barulho que fizemos, o sargento deu um pulo
da rede e, vendo Lampião, bateu marcialmente os calcanhares e disse, mais teso
do que jau: - “Pronto, seu Capitão. Entrego o serviço sem alteração”. Achei
graça na palhaçada, mas Lampião não riu e mandou-nos logo segurar o soldado e
desarmá-lo. O sargento, mesmo se ele mandasse tirar as armas, não era preciso,
pois estava de pijama. Mas o fato é que ele não mandou sequer prendê-lo, e isso
começou a intrigar-me.
Calmamente perguntou ao sargento quantos soldados havia no arraial.
- São oito, contando com aquele ali, disse, apontando para o que estava sendo
vigiado por nós.
- E onde estão os outros sete? Quis saber Virgulino.
- Basta dar três apitos de alarma e aparecem todos aqui, seu Capitão, respondeu
o sargento.
Lampião mandou que ele apitasse, e em poucos minutos estávamos com os oito
soldados trancafiados no xadrez do arraial. Lampião tirou os presos da cadeia e
mandou que eles vigiassem os soldados. Aliás, se não me engano, na cadeia só
havia dois presos.
Lampião mandou que todos apanhássemos bastante armamento e munição e ordenou ao
sargento que fosse trocar de roupa e o encontrasse numa determinada casa.
Durante todo esse tempo, a população não veio à rua, preferindo permanecer
trancada em casa.
Quando o sargento voltou, eu pensei que havia chegado a hora de mata-lo, pois
ele nada mais era do que um “macaco” graduado. Qual não foi a minha surpresa,
porém, ao ver o sargento fardado entre nós e Lampião ainda entregar-lhe um
rifle, dizendo: “Pra você não andar desarmado por ai...”
CARNIFICINA
A ESSA altura
eu e os demais “cabras” já estávamos sem entender nada, com aquele tratamento
tão cortês... À tardinha, nós bebíamos alegremente nessa casa, quando Lampião
disse que ia à cadeia, mandando que Luiz Pedro e José Baiano o seguissem. Lá se
foram os três, e dentro de uns dez minutos começamos a ouvir tiros. Corri à
janela e, vendo que vinham da cadeia, fui para a rua e fiquei observando à
distância. Na cadeia, Lampião punha um por um os soldados na rua, a pontapé e
bofetão, e, assim que cruzavam a porta, Luiz Pedro e José Baiano matavam-nos a
tiros de fuzil. Os pobres soldados saíam de braços para o ar, escorraçados por
Lampião, e levavam bala na cabeça e no peito. Quando os oito estavam mortos na
porta da cadeia, Lampião saiu e ordenou que Luiz Pedro e José Baiano
providenciasse o enterro, voltando ao local onde nos encontrávamos à sua
espera.
Quando cruzou a porta, um dos “cabras” disse: “Nós já íamos, lá, capitão.
Ouvimos tantos tiros...” Lampião respondeu, zangado: “Matei todos os ‘macacos’
por causa de um deles, um negro sem-vergonha. Negro nunca foi gente! Negro é a
imagem do diabo! Me disse umas grosserias e mandei matar a “macacada” toda...”
O que o soldado de cor lhe dissera ninguém soube jamais. O sargento ouviu tudo
sem dizer nada, e é preciso que se diga que ele era mulato escuro... Não gostei
da cara do sargento, e resolvi saber até onde ia a “proteção” de Lampião.
Fingi-me aborrecido e, agarrando o sargento pelo braço, falei para todos: “Já
que os soldados morreram, agora é a hora do comandante...”
Lampião, rápido, tirou o sargento das minhas mãos e gritou: “Quem tocar neste
sargento eu arrebento os miolos! Se vocês não sabem de nada, não se metam a
falar...” Compreendi que qualquer tentativa para liquidar o sargento poderia
ser o meu fim. O homem era mesmo protegido dele, e até hoje não descobri por
quê. Antes do anoitecer saímos do povoado e Lampião conversou bastante com o
sargento na hora da partida. Mas conversaram longe de nós, e ninguém pôde ouvir
nada.
Próximo
capítulo: Ferrugem Mata Gavião
CONTINUA...
Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa Sobrinho
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