Por Sálvio
Siqueira
Como tantos
outros mistérios envoltos na historiografia cangaceira, principalmente em face
do cangaço lampiônico, 1918/19 a 1938, a morte de Benjamin Abrahão Calliu
Botto, o árabe que teve a façanha de registrar um bando de cangaceiros
chefiados por Lampião em plena caatinga, também é um mistério. Ninguém, nenhum
pesquisador, trouxe-nos até o momento, e nessa altura do tempo o certo é que
jamais saberemos o nome da pessoa que assassinou o sírio nem tão pouco o
mandante, coisa mais provável que possa ter ocorrido.
Benjamin, ao
longo de sua vida aventureira, tapeação e mentiras, isso só referindo o pós
1934, depois da morte do Padre Cícero, criou uma ruma de inimigos de ‘grande
porte’ tais como o comandante José Lucena, o ‘coronel’ Audálio Tenório, Lampião
o “Rei do Cangaço” e outras várias pessoas que também se tornaram inimigas
ferrenhas dele.
Botto, para
conseguir o consentimento de Lampião para filmar e fotografar sua ‘cabroeira’
em seu habitat, logicamente que fizera determinado acordo sobre a divulgação e
data desses registros. Virgolino Ferreira era vaidoso, isso é fato, porém,
também era inteligente e sabia que uma divulgação fora de época e em massa,
faria com que as autoridades ficassem mais ativas quanto a sua perseguição. Em
1936/37, o cangaço já estava mais do que encurralado e, após as filmagens feitas
pelo sírio do bando de cangaceiros, produção cinematográfica que balançou os
pilares do Palácio do Catete, na ocasião exibido em seção única em um cinema na
Capital cearense, pois em seguida é apreendido pela censura federal, na época,
o arrocho tornou-se maior ainda. No entanto, a imprensa, através do jornal
Diário de Pernambuco, já havia feito divulgação de determinadas fotografias
referentes aos bandidos em escala nacional e internacional. Na Europa,
especificamente na França, e isso foi o fiel da balança que deixou o governo
federal mal visto diante da população. Determinado a exterminar de uma vez por
todas com aquela ‘epidemia’ no sertão nordestino, o banditismo rural, Vargas dá
a ordem direta para que acabasse com Lampião, chefe cangaceiro de maior renome
dentro do Fenômeno Social Cangaço, custasse o que custasse, doesse em quem
doesse. A ordem foi sendo repassada de ‘cima para baixo’ na cadeia de comando e
as reponsabilidades, logicamente, idem.
O sírio,
segundo o escritor Pernambucano de Mello, era um empreendedor dono de uma
“empresa” na Juazeiro do Norte, CE, ‘Benjamin Abrahão & Cia’, depois de
estar prestando serviços para a Aba-Film, essa última sendo quem forneceu o
material cinematográfico e fotográfico. O árabe toma emprestado a algumas pessoas
na cidade cearense de Juazeiro do Norte, para gastar na viagem e nas suas
noitadas nos cabarés e jogatinas, alguns mil réis, os quais pagaria com o que
ganhasse com a divulgação e venda da produção.
Com a apreensão da fita cinematográfica, o tiro saiu pela culatra e o sírio fica devendo muito. Ele tem uma nova ideia ao saber de uma ocorrência interessante no sertão pernambucano: Um coiteiro ‘arrependido’ resolve emboscar alguns cangaceiros e mata-los. Após as mortes, os participantes do embate são encorajados por um fotógrafo amador a registrarem o fato: “Em dias de 1935, o prefeito de Mata Grande, José Campos Uchoa, fotógrafo amador, cedera a um amigo a chapa com que registrara o massacre de quatro cangaceiros importantes do bando de Lampião, na fazenda Aroeira, lá mesmo do município, a 19 de setembro, em cilada bem urdida por certo Antônio Manuel Filho, o Antônio de Amélia. Um coiteiro que se declara arrependido, mãos tintas de sangue, e pede o amparo do governo em decorrência dos riscos em que incorrera, findando por ser alistado na polícia de Pernambuco como sargento. Atraído pelo lado moral da história de regeneração de alguém que se transforma em martelo contra seus antigos benfeitores, o amigo do prefeito monta uma cena fotográfica em que figuram em corpo inteiro, além de Amélia já metido na farda, os cadáveres horrendamente golpeados dos cabras Medalha, Suspeita, Fortaleza e Limoeiro, eis os vulgos das vítimas, disso resultando a impressão de um cartão-postal que foi vendido como banana entre Alagoas e Pernambuco.” (MELLO, pg 263, 2012).
Benjamin então manda imprimir milhares e milhares de fotografias que havia registrado dos cangaceiros do bando de Lampião. A Aba-Fim se encarrega da impressão e envia para o sírio no sertão pernambucano. Após receber a encomenda, Botto chama algumas pessoas e as mostra. Notando o grande impacto e admiração daquelas pessoas, contrata alguns empregados e os envia para o sertão alagoano, a fim dos mesmos venderem o ‘produto’. Ora, com o aperto que as autoridades estaduais vinham sofrendo do governo federal, ao ficarem sabendo de tais divulgações, se irritam e ordenam seu confisco. “Pelo meado de outubro, em maços ou isoladas, há fotografias de cangaceiros por todo o sertão, distribuídas por seis auxiliares escolhidos por Antônio Paranhos para o velho amigo Benjamin.” (MELLO, pg. 263, 2012).
O comandante do II Batalhão da PMAL, locado em Santana do Ipanema, AL, major José Lucena, na época, é o que mais se irrita e, imediatamente, ordena que seus comandados façam o confisco das mesmas, não só na cidade de Santana, mas nas circunvizinhas. Além das imagens dos cangaceiros, aquelas fotografias vinham dizer à população que não era tão difícil assim chegar aos bandoleiros como ditavam as autoridades já que um estrangeiro o fez. Lucena estava com a corda no pescoço devido Lampião estar agindo há muito tempo no território sob seu comando. O comandante geral da PMAL, na ocasião o coronel Teudureto, já o havia chamado em Maceió e dando-lhe um grande aperto, cobra-lhe resultados.
Benjamin ao saber que suas fotografias foram confiscadas a mando do major José Lucena, um frio lhe escorre pela ‘espinha’, ao saber que tinha feito mais um inimigo perigoso, pois sabia que se tratava de um homem que não era de brincadeiras e mandava matar, ou mesmo matava uma pessoa sem cerimonia alguma. Estando em terras pernambucanas, manda chamar os auxiliares e recolhendo o que sobrou, pega os pacotes que ainda estavam guardados tacando fogo em tudo. “Quem comprou, comprou; quem não comprou, não compra mais. Melhor a vida!” (MELLO,pg. 264, 2012).
O medo de Benjamin era tanto do comandante alagoano que ele corre à Capital pernambucana e, indo à sede do jornal Diário de Pernambuco, solicita do mesmo uma espécie de credencial referindo que estava naquela região, da Vila do Pau Ferro, município de Aguas Belas, PE, a serviço do mesmo. Logicamente, com tantos furos, através das fotografias, que o sírio cedeu ao jornal, seu pedido foi aceito e a autorização para usar o nome do jornal concedido.
Achando que esse problema estava resolvido, Benjamin retorna ao interior com a perspectiva de filmar, na fazenda do coronel Audálio Tenório, pela primeira vez, uma vaquejada. A visão do árabe, realmente, era muito boa, ele conseguia ver além do presente. O coronel determina que o evento ocorra em novembro daquele ano, 1937. Mandam avisar seus amigos, fazendeiros, familiares, vaqueiros e outras pessoas que ficam sabendo os quais chegam aquela data a pequena Vila do Pau Ferro, que estava totalmente ornamentada, a caráter, para aquela ‘Festa de Apartação’. Entre os convidados estavam figuras ilustres da força pública de Pernambuco e Alagoas, sendo do primeiro o coronel João Nunes e do segundo, o major José Lucena.
O coronel Audálio Tenório era um homem com uma estatura de 1:80 metros, apresentando-se em cima de uma montaria de pelo branco, saúda a todos e dá as boas vindas aos vaqueiros que participarão da ‘apartação’. “... os oitenta vaqueiros ouvem a saudação de um coronel Audálio montado em quartau branco impecável, metido nos couros dos pés à cabeça, traje completo de campeador das caatingas. Quebrando no chapéu de couro rebatido, no guarda-peito, no gibão, nas perneiras, nas luvas, nas esporas de prata do finado coronel Chico, seu pai, nas botinas vermelhas de couro de veado e na ligeira, passada no punho a modo de peia-de-mão.” (MELLO, 2012)
A presença de Lucena deixa o árabe um pouco preocupo e apreensivo, no entanto, balança o dedo pra cima e registra momentos magníficos e eternos para a história, os quais saem em edições futuras do Diário de Pernambuco. Após esses registros, Benjamin fará novamente registros inéditos nas terras da fazenda Barra Nova, do coronel Audálio, e onde se realizou a festança de gado. Botto consegue filmar vaqueiros correndo atrás de ‘barbatões’ e novilhas na mata da Mata Branca. De volta à pequena Vila, onde os comes e bebes eram servidos durante quase toda a noite, Calliu marca mais um momento para posteridade, registra o coronel Audálio Tanório, um dos maiores acoitadores de Virgolino Ferreira, o cangaceiro Lampião, a desfilar de braços dados por entre as ‘ruas’ improvisadas pelas barracas com um de seus maiores inimigos em território alagoano, o major José Lucena, os quais, ainda estavam ladeados pelo coronel João Nunes e o fazendeiro Gerson Maranhão, esse último parente de Lucena.
Quem organizou as barraquinhas para venda de comidas e bebidas havia sido Benjamin Abrahão. O coronel Audálio havia fornecido a grana para que o árabe pudesse comprar a comida e as bebidas a serem vendidas na festa, além de ter emprestado dinheiro para a compra dos filmes e outras coisas. A festança é ótima para os participantes, porém, para Benjamin não o fora. O apurado não chega, nem de longe, com a quantia que tinha que pagar ao coronel. Pela quantidade de transeuntes, participantes, o árabe chega a desconfiar do pessoal que estava auxiliando ele. Num momento crítico, chama um deles de ladrão. Era um homem de cara dura e marcada com sequelas de bexiga que tinha vindo da região de Mariana e, acusando-o de ter-lhe roubado o apurado, ou parte deste, arranja mais um inimigo perigoso, pois era uma ofensa imperdoável nas quebradas do sertão nordestino. Pois bem, o patrono do evento festivo manda chamar o aventureiro árabe e cobra-lhe o que havia lhe emprestado. Sem ter saída, Botto pede alguns dias ao coronel para ir à Capital, Recife, levantar e trazer a quantia devida.
No Recife moravam vários parentes de Benjamin, no entanto, acreditamos por já terem levado calote, não emprestam nem um réis a ele. O sírio está mais do que apertado, pois havia determinado uma data para vir e prestar contas, pagar, ao coronel e resgatar as promissórias assinadas. Em vez disso, passa a adiar o pagamento referindo que arranjará emprestado com seus amigos em Juazeiro do Norte, CE. Nada feito, ninguém estava doido para emprestar dinheiro e perde-lo. Logicamente o coronel deu-lhe um ultimato, colocando sua vida em risco. Mais um grande inimigo que o aventureiro sírio acabava de arrumar, e esse de peso pesado.
Lampião, com a determinação de Getúlio Vargas, ver as portas se fecharem. Sem o apoio dos fornecedores nenhum grupo de bandoleiros sobreviveria por muito tempo.
A divulgação das imagens do bando feita por Benjamin havia agitado, e muito, as autoridades em cada Estado nordestino. Planos novos foram feitos e ações novas foram determinadas quanto aos colaboradores. Alguns correram e entraram no meio do mundo, outros foram presos, muitos mortos e uma boa parte muda de lado. A vida de cada um estava em jogo. E a grande e eficiente malha formada pelo “Rei do Cangaço” começa a se quebrar em vários pontos. O fim do cangaço estava se aproximando. Nos meses subsequentes, Virgolino, por medida de segurança e cautela, mantem-se mais no Estado sergipano. Certa feita, conversando com o cangaceiro Candeeiro, na ocasião um daqueles que fazia sua guarda pessoal, referindo-se a Benjamin, detona: “- Ele foi falso comigo, levando de mim para contar aos oficiais.” Virgolino acreditava que Botto o havia traído. Além dessas imagens na pequena Vila de Pau Ferro, no município de Aguas Belas, PE, onde aparece o major Lucena e da divulgação, através da venda, de suas imagens, ele consegue registros inéditos e históricos em Jeremoabo, BA, e outros lugares, de comandantes inimigos ferrenhos de Lampião, como a imagem do comandante Manuel Flor, o tenente Zé Rufino e outros.
Sabedor de que o retratista encontrava-se na vila de Pau de Ferro, Virgolino levanta acampamento em Sergipe e vai em direção a Pernambuco via Alagoas. No dia anterior ao do assassinato de Benjamin, Lampião encontrava-se acampado há mais ou menos 9 km, légua e meia, de onde se encontrava o árabe.
Segundo o sociólogo/pesquisador/professor e escritor Frederico Pernambucano de Mello, nas entrelinhas do livro “Benjamin Abrahão - Entre Anjos e Cangaceiros”, 1ª edição, o sírio teria feito, ou tentado fazer chantagem com algum coronel coiteiro de Lampião, o coronel Audálio por exemplo, devido a localidade em que se encontrava ou algum outro de seus colaboradores de renome na sociedade, por ter informações secretas sobre ele e o cangaceiro: “A pelo menos um amigo revelou não ter levantado sequer a metade do dinheiro que tinha de pagar, mas que estava pensando em cotar a peso de ouro o seu silêncio, depois das semanas de convívio no bando de Lampião em 1936. Em que se assenhoreara de informações tanto mais delicadas quando mais incômoda se mostrava para a elite sertaneja a situação de suspeita generalizada em que estava mergulhando o país.” O escritor refere-se ainda ao ‘aventureiro’ como “o colecionador de inimizade”.
Quando estava na Vila de Pau Ferro, Benjamin costuma se alojar numa pensão. Dessa vez dividia um quarto com o amigo Antônio Paranhos, aquele que arranjou os seis auxiliares para venda das imagens dos cangaceiros, que não sai do quarto. Benjamin troca de roupas e vai passear nas ruelas da Vila. Benjamin era um namorador nato. Citam alguns autores que ele estava apaixonado por uma mulher casada, por isso a insistência de permanecer num local tão perigoso para ele. Encontrando com alguns conhecidos, vão para um boteco tomar cervejas. O tempo passa e a noite cobre com seu manto negro aquela pequena povoação no interior pernambucano. Após o ocaso algumas luminárias são acesas através da força elétrica de um gerador. Algum tempo depois, Botto despede-se dos conhecidos e ruma no sentido da pensão. Após dobrar uma esquina, as luzes são apagadas, algum defeito no gerador? Talvez. Porém, para o que ocorreu em seguida, notadamente, o motor foi desligado. Estando o vilarejo em total escuridão na noite do dia 7 de maio de 1938, de repente alguém começa a gritar, pedindo socorro, por estar sendo esfaqueado. Na sequência, em fez de escutar-se pedidos de socorro, passasse a escutar gemidos de dores, os quais vão diminuindo até sumirem por completo. O amigo de Benjamin, Antônio Paranhos, logo após as luzes terem se apagado, passa a escutar alguém pedindo socorro. Reconhecendo o timbre da voz, tem certeza de que se trata do amigo sírio. Rapidamente deixa a pensão e vai ao sentido em que os gritos o levam, no entanto, antes de chegar perto, das sombras vem uma voz que lhe diz: “-Arreda, cabra, que é encrenca!” (MELLO, 2012)
Imediatamente
Antônio, sabidamente, retorna para o quarto da pensão e fica a esperar ouvir ou
saber de alguma coisa. A noite é longa. As horas não passam e a ansiedade
aumenta. Só quando o dia amanheceu é que se começa a escutar um zom zom danado
vindo de algum local na vila. Havia um paraplégico, José Rodrigo Lins,
conhecido pela alcunha de Zé de Rita, que morava ali perto. Os moradores se
dirigiam para a casa desse paraplégico, pois lá, dentro da casa, encontrava-se
um corpo inerte, de barriga para cima, com 42 punhaladas no corpo, era o
aventureiro árabe que um dia foi secretário do Padre Cícero. O deficiente
físico era casado com dona Alaíde Rodrigues de Siqueira, e foi por ela que o
sírio havia se apaixonado. Segundo autores, essa paixão jamais foi
correspondida.
Além de ter um
defeito físico, vemos, notamos que Zé de Rita aparentava ter outro problema de
saúde, alguma coisa não batia bem em seu cérebro, ao lermos a cena descrita
pelo pesquisador Pernambucano de Mello: “A um canto, sobre um tamborete, Zé de
Rita se mantém impassível, pernas encolhidas, pés sobre o tampo, comendo o
tutano que retira lentamente de um osso grande, lambendo dedo a dedo, parecendo
fora de si. “Mais vida tivesse, eu matava”, repete sem cessar.” Com certeza não
era só de defeito físico que o coitado Zé de Rita sofria. Agora o mais
incrível, é que esse cidadão, paraplégico e com problemas mentais, é
considerado o matador de um homem forte, novo, saudável e de um porte físico
acima de mediano.
“A 17 de maio,
passados somente dez dias da ocorrência, o delegado corre a se livrar da batata
quente: fecha o inquérito policial no segundo distrito de Águas Belas,
apontando nominalmente o casal como responsável único pelo homicídio, segundo
noticia o Diário de Pernambuco de 19, renovando o lamento pela perda do “nosso
colaborador especial” que fizera constar do registro de morte, saído na edição
de 10, com direito a fotografia.
O delegado joga o jogo das aparências forjadas. Que mais lhe restava fazer ante
um assassinato de desvendamento impossível nas circunstâncias, a unir em sorte
comum o policial de ontem ao historiador de hoje?
No sétimo dia da tragédia, absolutamente só, o padre Nelson de Barros Carvalho
reza a missa pela alma da vítima. Ele e Deus. Nem o coroinha dá as caras na
capela.” (MELLO, pg.272 a 273, 2012)
Evidentemente
que, sabedores do possível mandante do crime, a população não se arriscou para
ir, pelo menos rezar, por aquele aventureiro de outras terras... nas quebradas
do sertão pernambucano.
Fonte/foto
“Benjamin Abrahão – Entre Anjos e Cangaceiros” – MELLO, Frederico Pernambucano
de. 1ª Edição, São Paulo, 2012
cariricangaco.com
O Canto do Acauã – FERRAZ, Marilourdes. 4ª Edição Revisada e Atualizada.
Recife, 2012.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com