A poesia de
Canudos vista por outro ângulo
A abordagem da
poesia de Canudos para além dos pontos de vista de Euclides da Cunha abre para
a análise outros horizontes de interpretação. Lidos em sua inteireza e na
seqüência verdadeira das quadras, os versos coletados e anotados naCaderneta de
Campo expressam idéias que são perfeitamente inteligíveis. Os textos das
quadras expressam o ponto de vista dos sertanejos com relação aos
acontecimentos da Guerra, aos adversários e aos valores em confronto.
No primeiro
abecê, encontra-se, de saída, uma avaliação negativa acerca da derrubada da
Monarquia e a implantação do regime republicano. Seguindo o ensinamento do
Conselheiro, os sertanejos acreditavam na investidura divina do poder
monárquico. Assim, a República é vista como uma "desordem" que deverá
ser corrigida pelo poder divino. Decorre disso a oposição recorrente no texto:
a Monarquia representava a lei de Deus, enquanto a República representava a lei
do ‘cão’ (designação corrente de diabo, personificação do mal, na linguagem
sertaneja). Registram-se nos versos a consciência de que os republicanos eram
influenciados por idéias estrangeiras, a crítica ao cunho militarista do novo
regime, a censura aos padres e doutores que o apoiavam. Há, na seqüência, uma
recusa veemente à implantação do casamento civil. Uma maldição é lançada aos
republicanos:
Queimados seja
aquele
Que a Deus não der lovor
do Ceo não espera nada
no Inferno acabarão.
Em seguida,
registra-se a esperança na vitória da "lei de Deus", com a chegada de
D. Sebastião com seus regimentos, para promover o restabelecimento da ordem. Há
ainda um lamento e um pedido de perdão dignos de nota: (23)
Tanta gente
que siassigna
nesta lei da falcidade
Xamemos por Jesus
que tenha de nós piedade
[...]
A meus Amo
Brasileiro ?
perdão quero pedir
Isto tem de acontecer
não tem p.a onde fugir?
O segundo
texto, intitulado ABC das incredulidades (24), narra, do ponto
de vista dos sertanejos, eventos e detalhes da Guerra, dando ênfase aos reveses
sofridos pela expedição comandada por Moreira César e reafirmando a disposição de
luta dos canudenses, como se observa na seguinte estrofe:
Treis mil e 50
prassas
q. vinheram batalha
toudos vieram
a Bello Monte
i muitos poco
ha de conta
porq. só quem
pode he Deus
q. então
perder não há
Definitivamente,
não eram apenas "pobres papéis" sem valor. Tratava-se, na verdade, de
fontes para uma visão histórica da Guerra, segundo a ótica dos vencidos. Os
textos, produzidos no calor das batalhas, reafirmam, na forma e no conteúdo, os
traços culturais sertanejos, constituindo-se como um discurso de resistência.
Com efeito, os versos dos canudenses assumem uma posição frontalmente contrária
aos valores republicanos que Euclides da Cunha defendia em nome da civilização,
do progresso e da cultura "superior". Embasados não em pressupostos
considerados válidos, mas sim na crença religiosa rústica, afiguravam-se ao
ensaísta como tendo valor apenas por serem prova do atraso e da incultura dos
sertanejos. Assim, no seu julgamento "valiam tudo" para a demonstração
de suas teses, porque "nada valiam" em termos culturais. Conclui-se,
desse modo, que a visão de Euclides ficou muito condicionada em decorrência de
sua postura de análise e de sua crença nos ideais republicanos como expressão
do progresso e da civilização, como um valor intrinsecamente positivo. Sua
visão, embora crítica e fraturada pela tomada de consciência diante do crime
perpetrado contra os sertanejos, está comprometida e determinada pelos valores
da cultura oficial do século XIX. E isso é compreensível, uma vez que o
ensaísta fazia parte dessa cultura e no seu contexto assumia lugar como
intelectual e pensador.
O ponto de
vista de Euclides da Cunha: algumas considerações
Quando
Euclides da Cunha toma Canudos para tema de seus escritos, colocando-se no
debate aberto em função da intervenção militar na vida do arraial sertanejo, o
faz na condição de intelectual de formação militar e partidário do regime
republicano recém-implantado. Como intelectual, era representante da cultura
oficial, do espaço litorâneo, com uma formação embasada nos paradigmas da
cultura européia de que o pensamento brasileiro era tributário. Como
republicano, defendia o novo regime que considerava uma marca positiva de
progresso e civilização. Como militar, tinha-se afastado da ativa por reforma,
devido a algumas posições dissidentes em relação aos rumos e métodos
militaristas da facção republicana florianista ou jacobina que assumira o
governo do país.
Como se sabe,
os primeiros escritos de peso sobre a questão de Canudos foram os dois artigos
publicados no jornal O Estado de São Paulo (14 mar. e 17 jul. 1897),
intitulados "A nossa Vendéia". Nos artigos, escritos sobre o impacto
dos reveses das primeiras expedições militares, Euclides toma o partido do
Exército, critica o presumido objetivo de restaurar a Monarquia atribuído aos
canudenses e manifesta a convicção de que "serão desbaratadas as hostes
fanáticas do Conselheiro" pelos soldados da República, "admiráveis de
bravura e abnegação" (25).
Em um dos
artigos, "Canudos (Diário de uma expedição)", escrito a
bordo do navio Espírito Santo, em 7 de agosto de 1897, e publicado em O
Estado de São Paulo (22 ago.), Euclides realça, com uma notável disposição
militarista, a mesma convicção dos artigos anteriores, afirmando: "Que a
nossa Vendéia se embuce num largo manto tenebroso de nuvens ... Rompê-lo-á,
breve, a fulguração da metralha, de envolta num cintilar vivíssimo de
espadas". E conclui o artigo com uma frase de efeito que é bastante
expressiva do seu estado de espírito: "A República é imortal" (26).
Logo depois,
Euclides chega ao local do conflito, como correspondente de Guerra do jornal
paulista, e manifestará de forma crescente em seus textos uma mudança de ponto
de vista. Walnice Nogueira Galvão rastreia essa transformação na seqüência dos
textos enviados ao jornal, mostrando que a perplexidade de Euclides, no choque
com a realidade, foi responsável pela mudança de sua ótica:
Destarte,
tornam-se perceptíveis para o leitor os sucessivos choques que para Euclides
implicou a tomada de contacto com a feia realidade da guerra, agravada pelo
fato de ser uma guerra entre concidadãos. (27)
Assim, como
afirma a ensaísta:
A sexta
correspondência, datada de 16 de agosto, assinala um momento de crise de
consciência. Duvida do rápido término da campanha e começa a se interrogar
sobre a razão que preside à resistência, inquebrantável ao mesmo tempo que
suicida, dos jagunços. ... Nas dúvidas e nas interrogações, entremostra-se o
perfil de um homem honesto, que quer descobrir a verdade, mesmo que ela lhe doa
e lhe custe a confiança que tem no mundo que o cerca. (28)
Cinco anos
após o final do conflito, Os sertões foi publicado registrando os
eventos de Canudos, em que, ao lado da análise do fenômeno à luz das teorias
cientificistas, o autor denuncia a intervenção militar como "um crime da
nacionalidade". Assim, o seu discurso se constrói num jogo retórico de
antíteses, em que as imagens positivas e negativas se justapõem e se
entrechocam, como marcas dos seus impasses ideológicos e metodológicos, diante
das imposições do rigor científico da abordagem e, ao mesmo tempo, diante da
necessidade de formular uma denúncia eficaz.
Com efeito, a
análise dos eventos de Canudos, dentro dos pressupostos filosóficos e
científicos em voga, faz com que Euclides veja os canudenses como uma
comunidade em atraso cultural, num estádio retrógrado de civilização, em estado
de ignorância. Dentro dessa ótica, a civilização brasileira desenvolvida tinha
o seu lugar na faixa do litoral, enquanto o sertão conservara-se à margem do
processo civilizatório, ficando "fora da cultura". Contudo, do ponto
de vista etnográfico, Euclides considera o sertanejo como uma sub-raça
resultante do tipo de miscigenação mais adequada à formação da raça brasileira.
Isto porque o homem do sertão seria o resultado da miscigenação do índio,
considerado raça autóctone da América, com o europeu português, considerado a
raça evoluída em grau superior de cultura e civilização. O sertanejo é visto
como um elemento que estaria fora da cultura e que deveria ser integrado à
nacionalidade, é visto como uma raça inferior, degenerada pela miscigenação,
mas também como sub-raça viável para a definição etnológica da identidade nacional.
Assim, ao mesmo tempo em que define uma identificação etnológica com relação ao
mestiço sertanejo, demarca, em seu discurso analítico, o seu distanciamento
etnocêntrico como integrante do grupo cultural litorâneo, ao julgar
negativamente as manifestações culturais dos canudenses. Entretanto, ao
presenciar a ação dos republicanos que cometem um genocídio contra os
sertanejos, suas convicções se abalam e tornam problemática a sua identificação
com o lugar cultural litorâneo. O homem e intelectual Euclides encontra-se,
dessa forma, ao mesmo tempo, condicionado pelo aparato conceitual que norteia o
seu pensamento e tocado pela aguda consciência adquirida ao presenciar a Guerra
e conhecer a realidade sertaneja de perto. Dessa forma, a visão de
Euclides acerca de Canudos torna-se complexa e problemática. A compreensão
desse problema é sistematizada por Roberto Ventura, ao analisar a situação de
Euclides diante do seu objeto de estudo. Segundo o ensaísta, a radicalidade
do autor de Os sertões reside na preservação de um etnocentrismo
elementar na abordagem da sociedade sertaneja e na concomitante ruptura com
seus parâmetros iniciais, impedindo o retorno à cultura original, de extração
liberal-republicana. Essa experiência de choque transforma em problema a constituição
de identidade nacional, por meio da oscilação entre identificação etnológica e
distanciamento etnocêntrico e pela dificuldade em estabelecer, através de
positividades e negações, as margens de seu próprio campo semântico e cultural. (29)
Como já se
afirmou, o discurso de Euclides da Cunha é ambíguo, marcado por um torneio
retórico de antíteses, em que Antônio Conselheiro, seus seguidores e Canudos
emergem da análise num jogo de contradições, ora positivados e admirados, ora
negativados e execrados. Isso mostra o impasse de Euclides diante da realidade
observada, diante da dimensão humana do conflito e diante das limitações do seu
método de análise. Todavia, pode-se considerar que o seu distanciamento
cultural se mantém em todo o percurso do ensaio. Em toda a extensão de seu
discurso, verifica-se que ele fala do lugar litorâneo, ainda que de uma
perspectiva problemática, condicionado pelas teorias que limitam o alcance de
sua visão.
Eduardo
Hoonaert assevera que "todo discurso humano é relativo a um determinado
lugar, não existe discurso senão situado", pois "o lugar entra na
própria constituição do discurso proferido pelo homem" (30). Assim,
ao debruçar-se sobre o episódio de Canudos, Euclides o faz, e não poderia ser
diferente, a partir da perspectiva do lugar litorâneo, seu espaço de inserção
ideológico-cultural. O seu instrumental analítico era inerente à cultura
oficial e diante da insuficiência desses pressupostos e sob o impacto da
experiência pessoal, ele soçobra num profundo impasse. O resultado disso
exprime-se na dicção angustiada do seu texto, quando o seu impasse torna-se
expressão, estilo e retórica. Ao avaliar os fatos e suas motivações, ele
confronta a realidade do espaço litorâneo, desnudando os equívocos e limitações
da cultura oficial, com o espaço sertanejo, analisando as razões dos
"atrasados" e o impacto de sua resistência. Assim, como num jogo de
espelhos, todos os juízos desfavoráveis a Canudos do ponto de vista da
abordagem cientificista tornam-se favoráveis do ponto de vista ideológico, como
parâmetros que levam a considerar a intervenção militar como um crime
perpetrado pelo grupo litorâneo contra os sertanejos.
Euclides
poderia ter relativizado ainda mais suas posições sobre Canudos? É
uma questão difícil de responder, embora se conheçam posições mais favoráveis
de outros intelectuais da época como Machado de Assis, Rui Barbosa e Afonso
Arinos. O fato é que as teses da loucura progressiva, do atavismo exacerbado,
da psicose coletiva, dos estádios diferenciados de civilização das raças
pesaram muito sobre sua análise, condicionando-a a julgamentos apriorísticos
que diminuíram a possibilidade de uma avaliação mais equilibrada de Canudos.
Por uma questão de coerência analítica, ditada pelos pressupostos
teórico-metodológicos, ele deixa de ver outros aspectos do arraial de forma
mais ampla: a sua vida comercial e seu cotidiano, por exemplo. Os aspectos
selecionados e o vezo de demonstrar as formulações científicas levam-no quase
sempre a fazer avaliações negativas e o comentários desqualificantes, embora
não pudesse deixar de registrar sua perplexidade diante do desenlace da Guerra.
Assim, os impasses despontam no texto como sinal positivo da evolução de seu
pensamento. Euclides da Cunha mostra-se sempre um intelectual preocupado em "pensar" o
Brasil de forma problematizadora, em face daquele momento histórico e do
complicado processo de formação de uma sociedade que fosse capaz de integrar os
diversos grupos humanos (litoral e sertão) na definição da identidade nacional.
Enfim, independentemente da perda de sua vitalidade conceitual, a permanência e
a atualidade de Os sertões se devem à veemência de sua denúncia, à
sua pertinência histórica e à sua excelência literária, o que o sustenta como
um marco fundamental da cultura brasileira.
Notas
. 1. CUNHA, E. Os
sertões. São Paulo: Secretaria de Estado da Cultura/Brasiliense, 1985.
. 2. Idem, p.
206-7.
. 3. Neste
particular, Alfredo Bosi destaca a diferença da visão de Euclides da Cunha em
relação à de Nina Rodrigues na abordagem dos aspectos considerados negativos ou
degenerescentes peculiares à mestiçagem: "Em Nina Rodrigues, médico, a
atenção a esse aspecto patológico e delinqüente dá o tom do enfoque, que em
Euclides, seu discípulo, é compensado por uma franca admissão do valor pessoal,
da energia física e expressiva dos sertanejos observados de perto em
Canudos." Cf.: BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992. p.332.
. 4. CUNHA,
op. cit., p. 217.
. 5. Idem,
p.221.
. 6. Idem,
ibid.
. 7. Idem, p.
227.
. 8. NOGUEIRA,
A. Antônio Conselheiro e Canudos.: revisão histórica/A obra manuscrita de
Antônio Conselheiro e que pertenceu a Euclides da Cunha. São Paulo:
Nacional, 1978. p. 23.
. 9. Id., loc.
cit.
. 10.
NOGUEIRA, op. cit., p. 170-4.
. 11. Idem, p.
175-82.
. 12. Idem,
p.176.
. 13. Como se
sabe, a deposição do monarca, a adoção do voto, a instituição de impostos nos municípios
e a criminalização da celebração do casamento religioso antes do civil
constituíam os pontos básicos da divergência de Antônio Conselheiro que, assim,
via na República um regime de incrédulos que queriam acabar com a religião.
. 14. NOGUEIRA,
A., op. cit., p. 181-2.
. 15. CUNHA,
op. cit., p. 249.
. 16. Idem,
ibid.
. 17. Idem, p.
250.
. 18. CUNHA,
E. Caderneta de campo. São Paulo: Cultrix, 1975.
. 19. CUNHA.
E., 1985, op. cit., p.250.
. 20. Idem, p.
780.
. 21. Idem, p.
251.
. 22. Título
dos artigos publicados em 14. mar. e 17 jul. 1897, em O Estado de São
Paulo, em que os sertanejos são comparados aos camponeses da Vendéia,
França, que se bateram contra a Revolução Francesa. Cf.: GALVÃO, W. N. (Org.). Euclides
da Cunha. São Paulo: Ática, 1984. p. 76-84.
. 23. CUNHA.
E., 1975, op. cit., p.58-9.
. 24. Idem,
p.59-61.
. 25. CUNHA,
E. A nossa Vendéia. In: GALVÃO, W., op. cit., p. 84.
. 26. Idem, p.
86.
. 27. GALVÃO,
W. N. De sertões e jagunços. In: ___. Saco de gatos: ensaios críticos. São
Paulo: Duas cidades, 1976, p. 70.
. 28. Idem, p.
71.
. 29. VENTURA,
R. "A nossa Vendéia": Canudos, o mito da Revolução Francesa e a
formação de identidade cultural no Brasil (1897-1902). Revista do
Instituto de Estudos Brasileiros,( São Paulo), n. 31, p. 129-45, 1990. p.
144.
. 30.
HOONAERT, E. Discurso evangélico e discurso colonialista. In: ___ et al. História
da igreja no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1983. v.II/1.
Aleilton
Fonseca é professor do Departamento de Estudos Lingüísticos e Literários da
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Cursa Doutorado na Universidade de
São Paulo.
Enviado pelo
escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com