Transcrito do
“Diário de Pernambuco” – 23/01/1938 por Antonio Correia Sobrinho
Henri KAUFFMANN
(Para os “Diários Associados”)
- Como foi a viagem?
Ao formularmos a pergunta banal, quando a poucos dias, Claude Eylan desembarcou
de Pernambuco, esperávamos, de certo, alguns detalhes pitorescos, observações
justas e profundas palavras amáveis.
Nossas previsões, porém, foram de muito ultrapassadas e verificamos mais uma
vez que ver e ouvir não são apenas sentidos. São dons, e dons raros. Todo mundo
registra uma vista ou um som; somente os privilegiados recebem das visões e dos
sons a emoção que, segundo os casos, se transforma em obra de arte, página de
literatura ou “impressões” no sentido mais completo e mais elevado da palavra.
Claude Eylan manifesta sua alegria.
- Tenho tantas coisas para lhe contar – dia a jornalista e escritora francesa.
– Pensava até telefonar-lhe, não que eu julgasse ter novidades para contar
sobre uma terra já muito visitada, mas porque quero agradecer publicamente a
fidalguia com que me trataram no Recife e no sertão, todas as atenções que
recebi de todos, desde o governador até o mais humilde dos caboclos.
A escritora da “Revue des Deux Mondes” pronuncia com amor essa palavra
“caboclo”, e um ligeiro sotaque, a par da ternura da voz, dão a essa palavra
nossa o sabor inesperado e raro d’uma fruta da selva num ambiente de luxo.
Havíamos preparado algumas perguntas, mas deixamo-las de lado.
O entusiasmo da Baronesa de Boccop (verdadeiro nome da escritora) externa-se de
tal forma – calor e sinceridade – que toda tentativa no sentido de canalizá-lo
entre os paredões dum questionário lhe prejudicaria a espontaneidade.
A GENTE PERNAMBUCANA
Holandesa, pelo seu casamento, Claude Eylan não podia deixar de ligar a visão
de Pernambuco a certo período de seu passado:
- Compreendendo – assevera – porque os holandeses sentiram a atração dessa
região que recorda suas paisagens: os canais, frequentemente o próprio céu,
lembram o ambiente dos Países Baixos. Não falarei, porém, da paisagem tantas
vezes descrita, mas sim da gente pernambucana, pouco conhecida, ao que me
parece, e injustamente mal apreciada. Disseram-me, quando preparava minha
viagem, que o Norte não progredia e que faltava ao nortista o espírito
empreendedor e o gosto do trabalho. É absolutamente falso, pois, somente
encontrei em Pernambuco, gente ativa e trabalhadora.
- Conheci as cidades e percorri o interior; estive em contato com intelectuais
e operários, homens políticos e gente do sertão, ricos usineiros e modestos
empregados, e encontrei em todos as mesmas características que revelam uma
civilização várias vezes centenária; uma atividade que não é febril nem
espalhafatosa, mas que repousa na vontade de vencer e encontra motivo de
satisfação nas realizações do passado, nos empreendimentos do presente e nos
planos para o futuro.
Outra característica de Pernambuco, e isso também se aplica a todas as classes,
é a educação. Mesmo em pleno sertão, entre três caboclos e a natureza ainda
rebelde, a gente se sente num ambiente de fidalguia. O pernambucano é um
“gentleman”.
EXCURSÃO À CACHOEIRA DE PAULO AFONSO
Claude Eylan, a todo momento, fazia referência ao sertão e aos sertanejos.
Visivelmente, nosso interior impressionou-a, e seu entusiasmo desperta nossa
curiosidade. Perguntamos onde foi, quando e como.
- Por iniciativa de um grupo de amigos, foi organizada uma excursão à cachoeira
de Paulo Afonso. Acompanhou-me o escritor pernambucano Mario Melo, grande
conhecedor do sertão e dos índios da região.
Partimos de automóvel, com um itinerário que incluía uma visita a várias vilas
do interior e a diversos acampamentos de índios. Passamos a primeira noite em
Caruaru, uma cidadezinha que achei muito interessante, mais pitoresca, para
nós, que as do Sul, porque conservou seu caráter e dela emana a tradição do
passado e da civilização pernambucana.
A escritora continua:
- Daí fomos a Garanhuns, onde tivemos a sorte de chegar num dia de feira,
espetáculo curioso em que aparecem ao olho do estrangeiro muitos detalhes que
são outras tantas revelações sobre os usos e costumes.
Que vida e que cores! Como teria gostado de ser pintora e poder fixar essa
visão. Bem entendido, não fugi às praxes turísticas; comprei uma porção de
coisas que achei curiosa e também, por uma espécie de pressentimento (podemos
ter uma pane – disse ao doutor Mario Melo) adquiri uma rede.
- Seguindo viagem, paramos em Águas Belas, onde fica um acampamento de índios.
O que o governo faz para adaptar os silvícolas à nossa civilização é admirável.
É uma grande obra, mas não esconderei que o espetáculo desses índios, na fase
transitória em que se encontram, me deixou uma impressão de tristeza, já não
são mais índios e ainda não são nossos iguais, quanto à civilização. Perderam
sua personalidade, estão se desfazendo de suas características, mas não são
assimilados; deixaram seus costumes e não adquiriram outros. Não podem ser
defendidos, porque ainda não se definiram.
A escritora francesa teve visivelmente a sensibilidade despertada, e sua
admiração pelo esforço gigantesco e pelas realizações tinge-se de piedade. Mas
a narrativa é como a viagem: uma pequena pausa e, novamente, a marcha rumo a
outros horizontes.
A SOMBRA DO FACÍNORA
Passaram a segunda noite da excursão ao sertão num pequeno hotel, cuja dona,
segundo a expressão de Claude Eylan, a recebeu “como uma dama”.
No dia seguinte, chegaram à Cachoeira de PAULO Afonso. Espetáculo grandioso, em
que a escritora se esforçou por não ver a usina.
- Aprecio demasiadamente a natureza – explica.
O regresso foi cheio de peripécias.
- A estrada não era das melhores – diz Claude Eylan com indulgencia – e,
durante a noite, veio a inevitável “pane”. Estávamos em pleno sertão, e nas
povoações que havíamos atravessado disseram-nos que Lampião estava nas
proximidades. Que perspectiva, mas que bela reportagem. Aliás tudo bem pensado,
esse “bandido” não deve ser muito perigoso: a gente sertaneja é tão amável.
- Mesmo assim, eu e minha rede abandonamos o carro e depois de uma hora de
marcha, ao luar, encontramos uma choupana. Estendi a rede e dormi uma das
minhas noites mais belas. O luar sobre o sertão, as carícias do ar. Mesmo assim,
a ideia de Lampião voltava por vezes a me preocupar, tanto mais que havia um
pássaro, ou uma ave (cujo nome esqueci), que, de vez em quando, fazia “hou..
hou... hou...” com uma vez igual a das pessoas quando se chamam umas às outras.
Com certeza era pessoal de Lampião – pensava eu – mas não fazia mal, não; a
gente do Norte é gente tão boa. Aliás que venha o Lampião. Tenho na bolsa o
recorte duma entrevista que dei a O JORNAL. Ele a lerá.
Compreenderá que sou uma jornalista estrangeira e não deixará de me tratar bem.
É capaz até de me pedir para publicar sua fotografia na “Revue des Deux
Mondes”.
Creio que será difícil; eles lá são muito conservadores. “Hou... hou...” dizia
a ave; a lua projetava, em feitios estranhos, a sombra dos cactos sobre o
deserto; os passos do chofer, que chegava do carro à busca de ferramentas,
ressoavam no silêncio da noite sertaneja. Mas Lampião não apareceu. É pena
teria gostado de encontra-lo; não deve ser tão ruim quanto dizem. Não há gente
ruim no Brasil. E com esse pensamento consolador e reconfortante, tornei a
dormir até o romper do dia.
OUTRA PARADA INVOLUNTÁRIA
- Mal tínhamos começado a nova etapa, houve outra pane. Mas uma vez abandonamos
o carro e caminhamos à procura de uma habitação. Dessa vez a casa era de um rico
caboclo, casa de luxo para o lugar. Ofereceram-me tudo quanto havia e foram
procurar tudo quanto podia ser encontrado de frutas e verduras para não me
fazer infringir meu regímen vegetarinário.
Claude Eylan percebe nosso sorriso.
- Sei, vegetarianismo no sertão...
E sem transição:
- Vivi pensando no Portinari. Não podia ver caboclo algum ou negro sem pensar
no retrato que Portinari teria feito dele. Aprendi muita cousa com Portinari,
principalmente a ver. Assim como há escritores que nos fazem descobrir nossos
próprios sentimentos, assim os pintores como Portinari abrem literalmente
nossos olhos sobre o mundo. Conheci-o em Ouro Preto; foi uma revelação:
entendi, então, as formas e as cores.
RECIFE
Indagamos das impressões da escritora quanto à cidade do Recife.
- Uma capital em pleno desenvolvimento – respondeu – grande centro de
atividade, com exata noção dos valores, inclusive da do tempo. Notei, com
prazer, que a cultura francesa era ali muito de perto acompanhada. O
pernambucano, aliás, ficou muito latino; a civilização americana não o atingiu
tanto quanto ao brasileiro de outras regiões. Admirei, sem dúvida, os belos
edifícios modernos, os parques e os jardins, as usinas com seus
aperfeiçoamentos, o “Hospital de Crianças” grande realização médico-social. A
curiosidade de viajante fez, porém, com que me detivesse mais nas velhas
construções, nas casas-grandes e nos mocambos. Já conhecia umas e outras
através da literatura brasileira e da pintura. Os mocambos surpreenderam-me
pelo seu asseio e pela satisfação de seus moradores por ali residirem: água bem
pertinho, peixes à vontade. Visitei, também, muitas igrejas que contêm tesouros
de arte, e muito apreciei as casas revestidas de azulejos, que transportam a
gente três séculos atrás, embora frequentemente estejam entre dois prédios
modernos.
Nome quase masculino, uma vida ativa de jornalista como poucos homens a têm,
Claude Eylan não deixa, por isso, de ser mulher.
Assim concluiu nossa conversação e suas impressões do Recife:
- E isso, hein? (apontava o elegante tailleur de linho azul, que trajava com
chique). Pois foi feito no Recife, meu caro senhor. Mandei fazer três outros. E
vou usá-los em Paris, sabe?
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