Por Rangel Alves
da Costa*
Ao avistar um
casebre, uma choupana, uma tapera erguida no barro e cipó, talvez a pessoa
enxergue apenas a pobreza, a fragilidade da moradia, a situação de abandono e
sofrimento. Tudo se apresenta com tais características. Mas poderá avistar
muito mais, bastando ultrapassar a soleira.
A feição já
diz tudo. Não deve ser muito diferente lá dentro quando a penúria se mostra do
lado de fora. Não deve haver uma mesa farta quando a janela de madeira se
mostra apodrecida, não deve haver louça reluzente se a porta está caindo aos
pedaços, não deve haver mobiliário com o barro despencando da parede.
Ninguém espere
encontrar um copo de água gelada onde há dificuldade até de adquirir um pote
novo, filtro ou moringa. O cachorro magro não é porque o mesmo rejeita as
muitas sobras colocadas à sua frente. É pela falta de comida mesmo. O olhar
entristecido, a tez de profunda aflição, não é por nostalgia ou saudade. E sim
de sofrimento pela desvalia da vida, de angústia pelas carências tantas.
Não há pai ou
mãe que não se encha de agonias ao perceber que logo o seu filho dirá que está
com fome, pedirá qualquer alimento, e o vazio da resposta desafiará toda a
existência. O adulto suporta a fome e um tanto grande de sede, a maturidade
traz consigo a compreensão e o suportar os padecimentos, mas com criança é
diferente. Ela apenas pede e espera que os seus pais estendam a mão. Ou o
prato.
Difícil
ocorrer o contrário, mas quase sempre a fachada e arredores retratam com
fidelidade a feição exterior. Depois do espelho a verdade. Dificilmente a
estrutura empobrecida, com barro despencando aos poucos ou fendas de passagem
para chuva e sol, guardará um aspecto muito diferente nas suas entranhas, nos
seus vãos ou desvãos.
Não será
impossível, contudo, de acontecer o inusitado. Gente há que mal tem onde se
abrigar, onde estender uma cama, mas prefere roupa nova e cara, televisão
moderna e modismos luxuosos a ter uma panela no fogo, um alimento à mesa.
Prefere viver com fingimento a reconhecer seus limites. Passa fome, mas
materializa o irreal com endividamento.
Assim, ao
avistar uma casinha de barro toda carcomida, já com marcas profundas do tempo,
com jeito de que não ficará em pé depois de uma tempestade ou ventania mais
forte, que não se espere avistar mobiliário vistoso, despensa farta e feições
sempre sorridentes lá dentro. Certamente que os semblantes dos moradores
estarão serenos, vez que acostumados com a situação.
E coisa
estranha acontece em situações assim. Quanto mais o povo é empobrecido mais se
mostra contagiante, cheio de vivacidade, transbordando encorajamento. Nenhuma
camada social recebe e acolhe melhor que aquela vivente em situação de extrema
dificuldade. Sempre haverá um gesto de afeto, um olhar de satisfação pela
visita, o oferecimento do que houver no momento.
Tudo muito
contrastante com a realidade. O visitante logo fica sem entender como uma gente
lastreada na miséria e no sofrimento consegue manter tanto afeto, placidez,
contentamento. E também pouco entenderá sobre sua fé incontida, sobre sua
esperança alentada, sobre sua força para ir enfrentando tantos desafios na
estrada. E a indagação maior surgindo ao querer saber como consegue sobreviver
em meio ao quase nada.
Ao menos no
meu sertão, as durezas da vida são logo avistadas ao longe, desde a paisagem
entristecida, passando pela cancela caída e chegando perante a parede que ainda
esteja em pé. Mas a realidade mais profunda está sempre lá dentro, após a porta
de entrada, que pode ser apenas qualquer coisa que divise os poucos aposentos
do mundo lá fora.
É atrás da
porta que a realidade se mostra na sua inteireza maior, na sua contundência
mais profunda, sem meio termo ou talvez. O que se avista é o que é, o que se
encontra é o que se tem, o que ali emoldurado não pode ser retocado. O que
engana é a barriga grande da criancinha, que está cheia de verminoses e não de
comida. O que ilude é a criança mastigando, que é o barro do pé da parede e não
pedaço de pão.
Acaso o fogão
esteja sem panela por cima é porque não houve nada para ser assado ou cozido.
Acaso o pote não esteja suado na parte de baixo é porque não há mais nem um
pingo d’água. Acaso o menino esteja chorando sem parar é porque a fome já
chegou, já foi embora, retornou e não há nada que pareça comida. Mas os acasos
vão se repetindo de tal modo que logo se tornam em situações costumeiras.
Assim, a
realidade sem retoques está dentro das quatro paredes. O lado de fora pode até
enganar, mas dentro da casa não há como encobrir a nudez da desvalia. É como se
fosse a representação exata do ser humano. Mesmo que a aparência permita ser
imaginado diferente, basta exteriorizar seus instintos e as verdades surgirão
sem disfarces. Daí que da soleira da porta em diante tudo se revela, ainda que
a moldura carcomida já dissesse do retrato em preto e branco.
Poeta e cronista
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