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sábado, 26 de outubro de 2013

A infância, juventude de Virgulino Ferreira da Silva (Lampião)

Por: Jair Eloi de Sousa
Jair Eloi de Souza

Numa retrospectiva das causas determinantes da transformação de um vaqueiro, artífice em couro e matuto almocreve, em uma mítica personagem com alcunha de Lampião, um verdadeiro lobo do Cinzento, o epílogo da morte do seu pai, José Ferreira, é bem verdade que não se constituiu como causa exclusiva, para que aquele venha assumir o álibi em definitivo de cangaceiro. 

José Lucena - assassinou o pai de Lampião

Mas, o relato da tragédia, cuja sanha assassina de José Lucena, permitiu-se além da execução sumária de um ancião, deixar ao deus dará, o cadáver insepulto e duas crianças, Ezequiel e Anália, testemunhas mudas do crime, abandonadas e amedrontadas na caatinga espinhenta, encontradas famintas e em choque emocional já quase na hora vesperal, por João Ferreira e suas irmãs, faz uma leitura para Lampião, o Lobo do Cinzento, de que não mais havia retorno a vida de sitiante, de artesão em couro e de coadjuvante na almocrevaria ao lado do seu pai. A notícia foi levada aos Ferreiras, a pedido do irmão João, por um ancião no dia seguinte, conduzindo este um bilhete em seu matricó, por baixo de algodão.

 
 João Ferreira da Silva - irmão de Lampião

O sepultamento havia ocorrido pela manhã do dia 30 de junho, e teve o patrocínio do Delegado Maurício de Barros de Mata Grande, pois, a vizinhança com medo de represália do Tenente Lucena, não se aproximou do falecido para amortalhar e sepultar. De bem verdade os irmãos Ferreiras, embora resistissem, e isso é fato, à vida à margem da lei, já estavam na condição de proscritos e vivendo em cristalina clandestinidade, em razão de que participavam de escaramuças e fogos ao lado de Antônio Matilde, precisamente por iguais razões, e posteriormente perfilados ao lado daquele que foi o único chefe de Lampião, Senhor Pereira, com lustro beligerante entre os anos 18 a 22.

 

Esse engajamento dos Ferreiras com este último, ainda num estágio não efetivado no cangaço, supunha-se também como um gesto de solidariedade a causa dos Pereiras, que enfrentavam uma luta fratricida com os Carvalhos, estes ligados aos nogueiras de Serra Vermelha e aos Saturnino da Pedreira, seus inimigos.

Zé Saturnino - Inimigo nº 1 de Lampião

O Menino Virgulino nascera na fé cristã. Batizado a tempo. Primeira comunhão também. No ano de l912, aos quatorze anos de idade é devidamente crismado. Obediência a liturgia da construção de bom católico lhe fora ofertada. No plano de reflexões sempre presentes as orações noturnas ao dormir. Não estava escrito que Virgulino e seus irmãos pudessem de uma hora pra outra, desenhar um roteiro de violência, mas, sobretudo arvorados às condições de verdadeiros guerrilheiros, ante a destreza de sobreviver num mundaréu cinzento, cuja soalheira de dia, tinha como sucedânea a cruviana madrugadenha, precedida de canto de galo sinistro, pois, fora de hora e num Nordeste adormecido. Além disso só a recomendação de defuntos pelas incelências, peroração pela salvação das almas penadas.

 
Lampião jovem

O clã dos Ferreiras de índole provinciana, sitiante na expressão mais típica, exímios no adestramento de poldros e burro brabo, no pastoreio dos gados e manejo das miunças . Também oficiava na almocrevaria, principalmente Lampião que passara pelo desasnamento do mestre-escola, pegando um adjutório da Escola na Fazenda Serra Vermelha , um salto de ema para a Passagem das Pedras de José Ferreira da Silva. A ocorrência de batizados, a celebração dos festejos tradicionais, os “toques” puxados à concertina ou fole de oito baixos, promoviam a convergência dos ramos familiares de Dona Maria Lopes e de José Ferreira da Silva. Esse o mundo de Virgulino Ferreira. Na devastadora seca de l915, completa este 17 anos de idade, faz alistamento eleitoral e vota pela primeira vez. Essa foi uma era de travessia difícil. A quadra chuvosa não se apresentou, frustração de safra e os campos se encheram de carcaças de gado, ao sertanejo restava como último gesto desatar as amarras dos chocalhos e estender o olhar pesaroso de derrota para o animal que jazia. As cacimbas no alvéolo do Riacho São Domingos, que rasga a fazenda Passagem das Pedras, se enterravam de chão adentro. Sobrosso não só de mortandade dos animais, mas, também dos viventes dos sertões do Pajeú. Grassara uma primavera seca, ardente, voraz, sem colheita de algodão naquele ano.

O cangaceiro Antonio Silvino

Por esses tempos corria notícia de atuação de grupos isolados de cangaceiros. Havia quase um ano, o lendário Antônio Silvino deposto as armas. Estava a cumprir as penas de seus crimes na Casa de Detenção, no Recife. Fato que alimentava a verve de vates cantando as suas façanhas, em versos nas feiras de todos os quadrantes do Cinzento Nordestino. Segundo nossos ancestrais, o xique-xique era consumido em larga escala, a polpa de macambira ribeirinha, servia para fazer cuscuz n’água e sal. As aves da caatinga como o urubu, o carcará, faziam a festa no carniçal e nos animais que viviam os últimos estertores, tendo aqui e acolá de forma permeada, o aparecimento de seriemas de ecos secos e babélicos, a flagelar répteis da flora espinhenta, como o cascavel, a jibóia, e alguns lagartos de pequeno porte. Nessa era tinham lugar as rezações noturnas em casas dos mais devotos, espécies de beatos paroquianos, homens adereçados de rosários, muitos deles trazidos do Juazeiro, tidos na comunidade como possuidores de fé diferenciada, em razão de preconizarem como adivinhos fatos do futuro, como seca, enchentes, pragas, doenças epidêmicas em animais e nas gentes desvalidas daqueles sertões bravios. As rixas por vezes dissipadas por juízes arbitrais, papel desempenhado pelos valentões, ou por coronéis de bom senso, usando da resina da amizade com as partes em conflito, ou da força feudal, com prejuízo para o não simpatizante de sua posição política. Não só nos Sertões do Pajeú, mas em todos os quadrantes das terras nordestinas, o sertanejo frustrara-se com os sinais que prenunciavam a quadra chuvosa. A barra quebrando , naquele ano, trouxera o mesmo sinal; o vermelhão quão lavras vulcânicas incandescentes. E o vento do norte começara a sibilar, era prova que o período invernoso havia se furtado às terras do Cinzento, não passava de permeados chuviscos coados, tocando seco na pele. O caburé de orelha, pequenino, mas, de uma simbologia ímpar para prenunciar as primeiras chuvas, quando externava o seu piado de forma incontrolável, continuava mudo. O canto choco dos anus pretos, não aparecia. As enxuís não mudaram a entrada dos seus ninhos, e suas cachopas continuavam abotoadas de mel. A velha e agourenta acauã continuava reclusa e em canto compassado, uma mudez permeada de pios tristonhos, era um mistério. Principalmente para as gentes da caatinga, que nunca deixara de avistá-la nas tardes dezembrinas ou no quarto crescente lunar, quando em noites estreladas. A paciência se esgotava, forragens minguadas nas áreas ribeirinhas. Umbuzeiros desfolhados e sem floração, seus tubérculos secos e laxados pela ação do homem sedento. As festas natalinas já não ocorreram, ficaram nos limites de rezações suplicantes. As águas de março e o abril chuvoso eram uma visão tão longínqua e imaginária, que só as lágrimas de mulheres e homens famintos, regavam o livre pensar e o longo penar. Esta a descrição dos sertões naquele ano de quinze.




Nota do autor: O texto supra, é fragmento da Obra em gestação "Lampião o Lobo do Cinzento", Uma Saga de Violência Mítica no Nordeste Brasileiro.
Desse velho escriba dos Sertões do Seridó."

Enviado pelo professor e pesquisador do cangaço Francisco Borges de Araújo - Jardim de Piranhas

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