Por Denis Russo Burgierman, de Canudos
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:O_combate_em_Canudos_entre_as_tropas_legaes_e_os_fanaticos_de_Antonio_Conselheiro._Morte_gloriosa_do_bravo_capit%C3%A3o_Salom%C3%A3o_defendendo_uma_pe%C3%A7a_de_artilharia.jpg
Após trinta
anos sob a água, o cenário da Guerra de Canudos ficou meses exposto. A SUPER
foi lá entender a dimensão do conflito e o papel de seu líder
Os urubus eram
tantos que formavam nuvens negras e nem assim davam conta de devorar os
milhares de cadáveres. Muitos secavam ao sol, impregnando o sertão de um cheiro
indescritivelmente podre. Cachorros, cujos donos também jaziam mortos por ali,
acostumaram-se a comer carne humana e apavoravam os poucos desavisados que ousassem
visitar a região. Do arraial, restavam escombros, onde antes havia duas
igrejas, e montes de cinza, no lugar das casas de barro.
Cento e dois
anos depois, a paisagem é certamente menos aterrorizante, mas tão desolada
quanto a daqueles dias depois de 5 de outubro de 1897, quando Canudos foi
destruída. Em setembro passado, a falta de chuvas secou o açude que inundou,
nos anos 60, o velho campo de batalha, revelando suas ruínas. O palco exposto
de uma das maiores guerras civis de nossa história, que deixou 10.000 mortos e
mobilizou quase todo o contingente militar da nação, atraiu historiadores como
ímã. A SUPER também foi lá. O que nós vimos sobre a lama não foram os restos de
um antro de fanáticos nem os destroços de uma comunidade socialista, mas uma
pobre vila, igual a tantas outras do sertão da Bahia.
Sem fortalezas
e com alguma discriminação
A igreja nova
de Canudos foi descrita pelos militares que a destruíram como uma fortaleza
indevassável. Mas quem teve a chance de passear pela paisagem árida do lugar,
no final de 1999, quando a seca evaporou o açude que escondia as ruínas do
velho arraial, só viu as discretas fundações de uma igrejinha comum do sertão.
Parecida com a da cidade de Crisópolis, 200 quilômetros ao sul dali, erguida,
aliás, pelo mesmo construtor: Antônio Conselheiro. As paredes tinham 60
centímetros de espessura – e não 1 metro e meio, como foi dito. Bem diferente
do que se esperaria de uma cidade supostamente construída para a guerra por
fanáticos que só pensavam em matar republicanos.
Também não há
sinal de que lá tenha prosperado uma comunidade igualitária, e de que terras
eram distribuídas e não havia discriminação. “Ao contrário, os ricos e
poderosos moravam na praça central, os remediados viviam mais longe e os pobres
estavam na periferia”, diz o historiador Renato Ferraz, da Universidade
Estadual da Bahia, apontando, no arraial abandonado, o provável lugar de cada
bairro. Ou seja, havia diferenças sociais.
“Relatos
sugerem a existência de uma rua dos negros e de outra dos índios, o que
contraria a idéia de uma sociedade sem segregação”, ressalta o arqueólogo Paulo
Zanettini de São Paulo. Ele fez escavações no lugar, recentemente, e espera
pela diminuição das chuvas que estão caindo desde janeiro para poder voltar ao
trabalho. “Estou convencido de que não havia nenhuma idéia libertária por trás
da organização daquela comunidade”, afirma o historiador baiano José Calazans,
com a autoridade de quem pesquisa o tema há cinqüenta anos.
Profissão:
conselheiro
É exatamente
isso: arqueólogos e historiadores estão chegando juntos à conclusão de que
Canudos foi uma cidadezinha comum do sertão nordestino. Nem um antro de malucos
fanáticos, como alardearam os militares depois da guerra, nem uma comunidade
liderada por um precursor do socialismo. “Eles só queriam uma cidade para rezar
em paz”, argumenta Zanettini. Uma azarada conjunção de fatos impediu esse
destino banal.
Ao que tudo
indica, nem mesmo Antônio Conselheiro era assim tão especial. Conselheiro não
era seu sobrenome – e sim Vicente Mendes Maciel –, mas seu cargo, o grau máximo
de uma hierarquia religiosa informal do Nordeste daquele tempo. Havia romeiros,
beatos e conselheiros, que não se confundiam com os padres.
Os romeiros
peregrinavam aos lugares santos pagando promessas e visitando igrejas. Os mais
dedicados tornavam-se beatos e ganhavam o direito de usar um manto azul ou
branco – nunca preto, exclusividade dos padres. Os beatos pediam esmolas para
ajudar nas obras da igreja e tentavam levar uma vida inspirada nos exemplos dos
santos. Os que conquistassem muitos seguidores podiam dar conselhos. Ou seja,
pregar. Daí passavam a portar um cajado e recebiam o título de conselheiro.
Como Antônio,
havia outros. Na mesma época, ficaram famosos por suas obras o Conselheiro
Francisco e o Conselheiro Guedes. Todos viajavam de cidade em cidade,
construindo igrejas para os fiéis assistirem às missas e fazendo cemitérios
para que ninguém fosse enterrado em solo pagão, o que era considerado terrível
por cristãos convictos.
Os três
conselheiros tiveram problemas com os poderosos, porque desviavam mão-de-obra
da roça para as suas obras. Dentre todos, o mais querido era Antônio, como
atesta Antônio Dantas de Oliveira, o Antônio de Isabel, de Massacaré, ao sul de
Canudos. Aos 107 anos, ele é provavelmente o único homem vivo que pode dizer
que conheceu Conselheiro. “Eu tinha 5 anos quando ele passou perto daqui”,
conta. “Todo mundo queria vê-lo e meus pais me levaram. Estava cheio de gente.
O povo gostava muito dele.” Tanto que, em 1893, quando o Conselheiro se mudou,
aos 63 anos, para um vilarejo perto de uma fazenda chamada Canudos, já levava
duas ou três centenas de seguidores.
Diferentemente
do que diziam alguns historiadores, ele não fundou a cidade. Canudos já
existia. “Prova disso é o documento que encontrei, datado de 1881, que criava
uma escola lá”, afirma Marco Antonio Villa, um especialista no assunto da
Universidade Federal de São Carlos. “Minha avó conta que a avó dela já morava
aqui quando ele chegou”, atesta o canudense João de Régis, de 92 anos. “Antônio
perguntou se queriam que ele reformulasse a igreja e disseram que sim.” Acabou
escolhendo também um novo nome para o povoado: Belo Monte. Mas Canudos, a
antiga denominação, foi que ficou para a História.
Uma
bola-de-neve rolava pelo sertão
Mas, se
Canudos era uma cidade comum, o que a teria levado à guerra? A explicação
começa em 1893. Quatro anos antes a República havia sido proclamada e os
impostos aumentados. A situação econômica tornou-se tema constante nas
pregações de Antônio, que, afinal, como religioso, se compadecia dos pobres.
No começo
daquele ano, ele esteve em Natuba, hoje Nova Soure, e seus seguidores
destruíram as tábuas com o cálculo dos impostos. O ato de rebeldia irritou as
autoridades e transformou Antônio em fora-da-lei. Foi nessa condição que ele
chegou a Canudos.
O tempo
transcorreu mais ou menos em paz até que, em novembro de 1896, circulou o boato
falso de que os homens de Conselheiro invadiriam Juazeiro. O governador da
Bahia, pressionado pelos fazendeiros inimigos de Antônio, enviou a Canudos uma
tropa de 118 homens para destruir os supostos rebeldes. Avisado, Conselheiro
mandou sua gente detê-los no caminho. Ninguém sabe exatamente quantos homens
eram – o Exército registrou 3.000, mas, hoje, os historiadores falam de 700 –,
armados com algumas espingardas, facas e enxadas. Dez militares e 100
canudenses morreram.
Apesar da
diferença nas baixas, a milícia baiana recuou. Dois meses depois, sairia a
segunda expedição, agora com 600 homens. Outra batalha no caminho deixou quase
500 canudenses e apenas dez soldados mortos. Mas a falta de munição obrigou a
um novo recuo.
Ninguém tentou
dialogar. “Desde o começo, os conselheiristas apenas se defenderam”, diz
Ferraz, que acompanhou a reportagem da SUPER. “Eles ficaram juntos, solidários,
um traço típico da gente do sertão, que enfrenta muitas dificuldades.” O que os
movia não era fanatismo religioso, mas o carinho por um líder legítimo.
Para
completar, conheciam muito bem o seu terreno. “Só estranha essas derrotas quem
não sabe o que é a caatinga”, ironiza Calazans. A reportagem da SUPER entende o
que o historiador quer dizer. Andamos pelo cenário das batalhas carregando o
equipamento fotográfico – provavelmente tão pesado quanto o armamento militar –
e voltamos baqueados pelo sol forte, sedentos e cheios de rasgos nas roupas e
de arranhões infligidos pelas plantas espinhentas. Imagine o que era fazer o
mesmo sob a mira de espingardas de jagunços acostumados ao local.
Inimigo
público
Até aí, apesar
das mortes todas, os incidentes eram casos de polícia, da alçada do governador
da Bahia. Mas as recorrentes pregações contra os impostos da República
transformaram Antônio em inimigo do Estado. Falava-se que queria derrubar o
governo e reinstaurar a monarquia. O presidente Prudente de Moraes foi tachado
de fraco. Muita gente, no Rio e em São Paulo, temia um golpe. Nesse clima de
tensão crescente, o governo federal foi impelido a entrar na brincadeira.
Chamou o coronel Antonio Moreira César, conhecido como o Corta-Cabeças, para
liderar a terceira expedição. Famoso pela crueldade, Moreira César era o mais
conhecido militar do país e sério candidato a presidente da República. Partiu
com 1 300 soldados para Canudos e, arrogante, liderou um imprudente ataque
frontal. Um balaço derrubou-o do cavalo, matando-o horas depois. Suas tropas
desorganizadas fugiram, deixando para trás centenas de fuzis. Aí, o Exército
zangou-se.
Em Os Sertões,
a obra-prima que escreveu depois de acompanhar como correspondente o final da
quarta expedição, Euclides da Cunha chama os jagunços de inimigos invisíveis.
“Invisíveis depois de ganharem as armas dos militares”, ressalva Ferraz. “Antes
eram bem visíveis. Usavam pólvora caseira, feita de salitre tirado das rochas.
Ela soltava uma fumaceira enorme.”
A quarta e
última expedição foi esperada com os fuzis alemães de última geração do
Exército. Do outro lado também houve evolução. No primeiro ataque, o comando
estava nas mãos de um tenente; no segundo, de um major; no terceiro, de um
coronel; no quarto, os quase 9.000 soldados recebiam ordens de dois generais.
Em Monte Santo, o ministro da Guerra, em pessoa, acompanhava a operação. O
ataque, iniciado em julho, só acabaria em 5 de outubro. Foi um morticínio.
Morreram 2.000 soldados e 5.000 canudenses.
https://www.slideshare.net/hsjval/slide-9-guerra-de-canudos-ivan-cida-lionidio-turma-3n2
Conselheiro
não resistiu. Morreu em 22 de setembro vítima de uma “corredeira” – como os
sertanejos chamavam a diarréia –, talvez causada pela gangrena em um ferimento
na perna. Em Canudos, restaram ruínas, cinzas, cadáveres, cães e urubus. Nenhum
homem vivo. Mil mulheres e crianças sem rumo, sendo distribuídas a quem as
quisesse. Euclides da Cunha mesmo levou um menino para o Rio, que entregou a um
amigo para adoção.
Bombardeado,
queimado e depois alagado
Mal acabou a
guerra, surgiu um movimento para denunciar a crueldade do Exército. Centenas de
conselheiristas, talvez mais de 1.000, tiveram o pescoço cortado. “É justo que
se condenasse o crime. Mas não se pode esquecer que foi a opinião pública que
exigiu esse tratamento a Conselheiro”, diz Ferraz. “Os ânimos estavam muito exaltados.
E os canudenses também matavam seus prisioneiros.” Só não os degolavam porque
cortar o pescoço era um costume macabro dos gaúchos, que compunham a maior
parte das Forças Armadas. Os sertanejos preferiam executar os soldados
estripando-os: ou seja, metendo a peixeira na barriga. Como se vê, a história
da “índole pacífica” do povo brasileiro é um mito.
No total,
morreram cerca de 10.000 homens, 7.000 na última expedição. A maioria dos
corpos foi queimada e abandonada. Os cães selvagens expulsaram quem quer que
morasse por perto. Dizia-se que a região de Canudos ficou despovoada por mais
de dez anos. Mas alguns depoimentos provam que não foi bem assim. A mãe de João
de Régis, por exemplo, voltou no ano seguinte.
Outro que
retornou ao lugar foi José Galdino de Santana, sertanejo que perdeu o pé em uma
batalha, no quarto ataque. Quem contou isso à SUPER foi o filho dele, Henrique,
hoje com 84 anos. “Ele disse que só viu uma fumaça vindo de onde estava o
Exército e correu”, lembra-se. Mesmo assim, um estilhaço lhe acertou o
tornozelo e decepou o pé. “Dos outros que estavam por perto, não sobrou pedaço
de mais de 100 gramas de carne”, diz Henrique.
Na nova
ocupação de Canudos, porém, a antiga praça, onde ficavam as igrejas do velho
arraial (ver abaixo), continuou vazia. “Parece que eles evitaram o lugar por
respeito”, diz Zanettini. “Em junho de 1909, uma nova igreja foi inaugurada com
festa”, conta o historiador Manuel Neto, do Centro de Estudos Euclides da
Cunha, em Salvador, outro pesquisador do assunto. “É uma prova de que a cidade
já voltara a existir bem antes disso.”
Debaixo d’água
Sessenta anos
depois, em 1969, o novo arraial de Canudos foi inundado por uma barragem
construída para combater a seca. Em setembro de 1999, a falta de chuvas expôs
as ruínas por quatro meses. Os arqueólogos esquadrinharam as velhas igrejas e
acharam o esqueleto de um soldado sem pernas, provavelmente arrancadas por uma
explosão. O botão de sua farda trazia o desenho de uma lira, o que indica que
era um músico. Ou seja, ajudava a executar o Hino Nacional para estimular as
tropas enquanto avançavam sobre a cidade.
Como esse, há
perto de 10.000 esqueletos enterrados lá no sertão, junto com armas, fardas e
munições. Em qualquer lugar que você cave dois palmos, as chances de encontrar
vestígios do combate são enormes. Tanto que quase todos os moradores da região
guardam sua pequena coleção particular de relíquias. Em janeiro de 2000, as
chuvas voltaram e a água cobriu de novo o arraial. Foi uma oportunidade rara
para vislumbrar aquela que já foi uma cidadezinha comum do interior da Bahia e
virou um dos mais sangrentos campos de batalha da nossa história.
Algo mais
Este arbusto,
a favela, dá nome ao morro onde o Exército acampou em Canudos. Depois da
guerra, os soldados que não receberam pagamento foram ao Rio de Janeiro
protestar e acamparam no Morro da Providência. O acampamento acabou apelidado
de favela, nome que se estendeu a outros morros pobres.
A vila de
Conselheiro
Novo retrato
mostra Canudos antes da guerra, sem retoques.
O Exército
afirmava que eram 25.000 habitantes. Quem visita o lugar vê que não caberia
tanta gente. No máximo, 10.000, morando em 2.000 casas. O restante foi invenção
para justificar as três derrotas dos militares.
A igreja nova
e a velha ficavam a uns 100 metros de distância. Ambas foram feitas por
Conselheiro. Ninguém entende por que havia duas.
O principal
comerciante era Antonio Vilanova, dono de um bem-suprido armazém e
provavelmente o verdadeiro administrador da cidade.
Este era
provavelmente o bairro dos negros. Eram ex-escravos que seguiram Conselheiro
desde a região dos engenhos de cana, 200 quilômetros ao sul, atrás de uma vida
melhor.
Sabe-se que em
Canudos havia muitos índios das tribos caimbé e kiriri. Eles conheceram Antônio
em suas andanças e também foram para Canudos em 1897, prontos para a guerra.
Ataque final
Em setembro de
1897, o arraial estava cercado.
As tropas
ocupavam o morro ao lado do arraial, de onde podiam atirar nas igrejas.
Das torres da
igreja nova os jagunços tentavam atingir os soldados.
Quando ela caiu, no
começo de setembro, a derrota ficou próxima.
A última
trincheira ficava na praça e resistiu até o começo de outubro. Euclides da
Cunha contou que os defensores que restaram eram um velho, dois homens feitos e
uma criança.
Os soldados
deram a volta no arraial, cruzaram o Rio Vasa-Barris e tomaram algumas casas.
Centenas de soldados morreram nessa operação. Mas os conselheiristas ficaram
cercados e não puderam reagir.
O arraial
ressurge
Dez anos
depois da guerra, Canudos já estava recomposta.
Muitos dos
sobreviventes da guerra retornaram. Mas os relatos indicam que a maioria dos
novos habitantes era gente recém-chegada à região.
Ninguém foi
morar na antiga praça central, embora fosse o melhor lugar, devido à
proximidade do rio e à facilidade de buscar água. Os novos canudenses talvez
tenham evitado o lugar por respeito.
Uma nova
igreja foi inaugurada em 1909 para substituir as duas antigas, destruídas nos
bombardeios e depois dinamitadas.
O Rio
Vasa-Barris seria represado nos anos 60 para combater a seca. Foram suas águas
que inundaram a região. Uma nova cidade, também chamada Canudos, foi construída
a 10 quilômetros deste ponto.
Para saber
mais
Canudos, o
Povo da Terra, Marco Antonio Villa, Editora Ática, São Paulo, 1997.
Os Sertões, Euclides
da Cunha, Editora Ática, São Paulo, 1998.
https://super.abril.com.br/historia/nem-fanatico-nem-revolucionario/
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