Por: Rangel Alves
da Costa(*)
Nesse passo,
não há que se negar que a rebeldia cangaceira se manteve atuante por tanto
tempo, com as vitórias e reveses próprios de toda luta, porque teve a
colaboração de uma rede de poder então estabelecida. Eis que o cangaço foi
amigo do coronel, do latifundiário, da autoridade política, de gente com grande
influência no sistema dominante. E dizem que até mancomunado com o seu algoz
perseguidor, que era a volante, através de seu comando. Daí o seu poder de
continuidade de luta em situações tão adversas e em meio tão inóspito.
O cangaço,
pois, principalmente o bando de Lampião, foi auxiliado por gente muito
poderosa. Inegável que o Capitão possuía uma rede de influência de inestimável
valia. O próprio Padre Cícero Romão, o Padim Ciço de Juazeiro, havia, em nome
da Guarda Nacional e com a pretensão de combater a Coluna Prestes (o que jamais
aconteceu), lhe outorgado a patente que ostentava. Mantinha contatos, através
dos seus amigos coronéis, com as lideranças governamentais e políticas. Não se
pode negar que o poder também agia com cumplicidade na questão cangaceira.
Logicamente
que era uma relação das mais perigosas, entremeada de falsidades e delações,
num verdadeiro jogo de proteção e espionagem. Mas nem todos agindo com traição,
ainda que muitos fizessem o jogo duplo. Na verdade, Lampião possuía um pacto
tão forte com a oligarquia que bastava enviar uma missiva por um dos coiteiros
e tudo o que desejava era providenciado. Quando a coisa era pouca, logo chegava
um carregamento de armas e munições, dinheiro vivo e tudo
mais que o bando precisasse. Mas se a urgência era pra resolver problema maior,
então o coronel passava a interceder perante as outras autoridades.
Não há como
pensar diferente. O grupo comandado por Virgulino não era pequeno e nem vivia
sempre escondido nas brenhas sertanejas, de modo que não pudesse ser encontrado
e dizimado pelas forças policiais. Por mais que trilhassem veredas de difícil
descoberta, certamente que os seus perseguidores conheciam seus coitos e
esconderijos. Neste aspecto, também se diga que o sertanejo amedrontado também
delatava o bando. Havia os amigos fiéis e as falsidades em cada canto.
Desse modo, se
o bando de Lampião, por exemplo, não teve o seu fim antecipado, isto se deve à
proteção que possuía das autoridades e poderosos. Ora, numa estrutura
hierárquica de mando, bastava que um coronel dissesse que na sua região não
admitia perseguição ao bando do Capitão que toda força policial freava o seu passo.
Sem esquecer também da possível amizade havida entre o líder perseguidor e o
líder dos perseguidos. Acho tal hipótese pouco provável, principalmente diante
do ocorrido em Angico naquela madrugada sangrenta. Mas enfim.
No conceito do
cangaço, entretanto, certamente seria descabido afirmar acerca do cotidiano da
luta por entre veredas espinhentas, em meio às armadilhas da mataria, debaixo
da lua bonita e do sol inclemente. A vida cangaceira em si era muito mais
difícil do que se possa imaginar. É fantasioso pretender caracterizar um
cotidiano de perseguições, ataques, defesas, contra-ataques, temores, absoluta
vigilância e desconfiança de tudo, como algo romântico e atrativo. Muito pelo
contrário, a realidade vivenciada era de extremo espanto, ainda que a vida de
vez em quando encontrasse espaço para a cantiga matuta, a celebração da
existência e os amores escondidos.
Mas até quando
iria essa luta inglória? Até quando o bando de Lampião continuaria, ao modo do
preá e do bicho afoito do mato, correndo de lado a
outro, trilhando veredas catingueiras e fugindo das arapucas para sobreviver?
Muitos estudiosos afirmam, e também vejo como verdade, que o Capitão já estava
cansado disso tudo. Não desistido, não derramado o balaio de sonhos
impossíveis, mas simplesmente compreendido que já estava na hora de descansar.
Talvez de vez em quando olhasse para os seus, para os tantos meninos e meninas
ainda na flor da idade, e pensado quanto era injusto e cruel continuar naquela
vida de contínuo desassossego. Era demasiada inquietação em tudo que se fazia.
Um sofrimento infindo.
Talvez também
o Capitão soubesse que jamais sairia vivo da mata sertaneja, que jamais poderia
ter outra vida senão de arma na mão, de olho atento à moita adiante, na
desenfreada correria pela sobrevivência. E, se assim pensou, também percebeu
que não adiantava mais sair de um refúgio a outro. Pressentindo que o seu fim
estava próximo, vez que os céus sertanejos pressagiam as coisas da vida e da
morte, ali na Gruta do Angico permaneceu esperando a vela ser acesa. Foi acesa,
deu estampidos e se apagou. E também o Lampião.
Mas voltemos
ao problema da justa e abrangente conceituação do cangaço. Foi dito que a
conceituação deve envolver alguns aspectos essenciais para a compreensão do seu
contexto. Apontei, dentre outros fatores, algumas premissas que devem ser
observadas, e que foram o fato gerador ou o ponto de nascedouro do cangaço, as
motivações para o seu surgimento e existência, e, por último, o seu significado
no contexto histórico brasileiro.
Do mesmo modo,
foi observado que o fato gerador foi a eclosão no sertanejo de sua força de
indignação e revolta. Chegou ao ponto de insuportabilidade, e daí em diante se
deu o início da luta armada. Contudo, foram as motivações que levaram à
insuportabilidade. E tais motivações foram apontadas como sendo, dentro
outras, as perseguições, as injustiças sociais, rixas particulares e
indignações contra o sistema estabelecido. Por último, na tentativa de
estabelecer o seu significado, foi dito que o cangaço, diante das relações que
manteve com o poder, alcançou a relevância histórica que mantém até hoje.
Mas se não foi
nem movimento nem fenômeno, o que teria sido o cangaço? Se não deve ser
caracterizado como banditismo nem como um reles covil de brutais assassinos, qual
a melhor feição a lhe ser dada? Difícil asseverar com precisão, mas creio que
uma insurgência armada levada adiante por rebeldes sertanejos contra o sistema
estabelecido. Tanto diante do poder pessoal, gerador de disputas internas, como
do poder governamental. Este injusto e escravizador.
Mas que não se
tenha como conceito. Esta missão confiarei aos estudiosos e pesquisadores. Sou
incapaz de fazê-lo com precisão. Sou apenas um matuto de Poço Redondo, filho de
um caipira também de lá, de Alcino Alves Costa, o Caipira de Poço Redondo. Este
sim, este soube refletir e analisar com maestria o mundo cangaceiro.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no município
de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito na OAB/SE,
da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também História na
UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou autor dos
seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho
Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O
Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e
"A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo
Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de
"Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da
Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo
- Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para
publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP
49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
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