*Rangel Alves da Costa
Já disse e repito que eu tenho muito mais de cem anos e por isso mesmo sei e lembro-me de coisas do arco-da-velha ou desde quando boca de sino era calça da moda ou sapato cavalo de aço era a chiqueza maior do mundo. Estranho é que dos tempos mais modernos não recordo de quase nada e dos dias atuais quase nada acontece que mereça ser guardado na memória.
Conforta-me relembrar de causos antigos, de um tempo onde o sertão poço-redondense era mais humano e familiar, mais alegre e mais amigueiro. Tempos de grandes forrós e forrozeiros ilustres, de festas de agosto que davam gosto mesmo, de meninos brincando de pega-de-bois pelas noites escuras, de bordadeiras e rendeiras pelas calçadas, de velhos compadres proseando debaixo de pés de pau. Que lindeza as meninas rodando cirandas em noites de lua cheia.
Ai como é bom recordar Alzira, uma das matriarcas da família Vito e presença eterna na memória sertaneja. Jamais nasceu pelos sertões uma mulher mais festeira e alegre que nem Alzira. Esbelta, de rosto marcado de tempo, encovado, lenço na cabeça e saia rodada, era um milho de pipoca em pessoa. Pisava miudinho ao som do pífano, poeirava pelos salões em festa, dançava e cantava, parecia não haver tempo ruim para a saudosa sertaneja.
Famosos eram seus leilões, seus forrós e suas festanças. Quando se espalhava que ia haver leilão na casa de Alzira, então o povo se animava todo à espera do grande dia. Da boca da noite em diante e o caminho de chão pelos arredores da cidade - menos de um quilômetro do centro, na estrada que seguia ao Bonsucesso - ficava tomado de gente. Todos ao leilão de Alzira.
Nas proximidades já se ouvia os sons dos pífanos, do zabumba, da sanfona, os gritos do chamador do leilão: Bolo de milho, quem dá mais? Galinha gorda de capoeira, quem bota mais que dez contos? Uma garrafa de Pitu que não embebeda. Cinco mirréis ali, já ouvi sete, quem cobre, quem dá mais? Enquanto isso a sanfona comia no centro, o chinelado tomava conta do salão empoeirado, pelos arredores escurecidos, nas moitas ou tufos de matos, os namoros pra lá de sem-vergonhas.
Mesmo assim, até os namoros de antigamente eram muito mais sérios. Namoravam, o rapaz deixava a comprometida à sua espera enquanto ia tentar a sorte no sul do país objetivando juntar dinheiro para o futuro casamento. Por lá permanecia meses e até ano e ela o aguardava em pura fidelidade. Faça isso hoje! Já outros, querendo a todo custo antecipar os casamentos, simplesmente roubavam a mulher. Sim, com ela combinava a fuga e o encontro depois.
Enquanto os pais dormiam, a mocinha saía pelas portas do fundo com mala e cuia e ia ao lugar combinado. Depois o rapaz a colocava na casa de família importante do lugar, às escondidas, de modo que quando os pais descobrissem já fosse tarde demais e o casamento tivesse que ser realizado. Mas não dava muito certo não, pois muitas mocinhas foram devidamente puxadas pelas roupas e cabelos, levadas de volta pelos pais e ainda por cima tendo que tomar uma boa surra.
Tempos, fatos e situações muito diferentes de agora. No entrudo, por exemplo, a brincadeira de molhação só tinha mesmo graça se a pessoa fosse surpreendida enquanto tomava fresca na calçada, ao lado de amigas em conversê. Quanto mais a pessoa achasse ruim ser molhada, esbravejasse e esculhambasse, mais valia a pena o sacrifício de fazer rodeios pelos quintais e pular janelas até despejar o balde de água por cima.
Mas nada igual quando um incêndio fez com que centenas de preás corressem do fogo para a cidade e um deles, em tresloucada fuga, procurou abrigo logo por dentro da saia e entre as pernas de uma velha senhora bem sentada na Rua de Baixo. Foi um deus nos acuda! E dizem que desde então essa mesma velha senhora sentava com a mesma saia na calçada e perguntava, um tanto saudosa, se não havia nenhum incêndio pelos matos secos ao redor. Certamente com saudades do preá.
Escritor
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