Por Rostand Medeiros
E Testemunhei
Sertanejos Entregando Raros Materiais de Lampião e Sua Família a Outros
Sertanejos Que Lutam Para Preservar a História!
Lampião
– Arquivo do autor
Como já
comentei em algumas oportunidades aqui nas páginas do TOK DE HISTÓRIA,
recentemente eu tive a oportunidade de retornar ao sertão pernambucano, onde
circulei pelas regiões das ribeiras dos rios Pajeú e do Navio, seguindo os
antigos rastros dos cangaceiros nos municípios de São José de Belmonte, Serra
Talhada e Floresta.
Nesta jornada,
realizada no final de maio e início de junho de 2016, eu tive a grata companhia
do artista plástico Sérgio Azol, um tranquilo potiguar radicado em São Paulo,
que tem a sua interessante arte ligada ao Cangaço.
Os autores
Cristiano Luiz Feitosa Ferraz (E) e Marcos Antonio de Sá (D), conhecido como
Marcos De Carmelita – Foto – Rostand Medeiros.
Um dos nossos
destinos foi à cidade de Floresta, onde fomos recebidos pelos escritores e
pesquisadores Marcos Antonio de Sá, conhecido como Marcos De Carmelita, e
Cristiano Luiz Feitosa Ferraz, autores do livro “As cruzes do Cangaço – Os
fatos e personagens de Floresta – PE”, recentemente lançado.
Em um clima de
extrema cordialidade e parceria, estes dois denodados pesquisadores procuraram
mostrar vários aspectos da cidade de Floresta e dos fatos relativos ao cangaço
na região.
A Bela
Floresta e Buscando a História de Como Tudo Começou
Não posso
deixar de comentar como a cidade de Floresta me encantou pela singular beleza e
pelo povo extremamente hospitaleiro.
A Igreja de
Nossa Senhora do Rosário, no município de Floresta, estado de Pernambuco,
surgiu a partir de um antigo oratório da Fazenda Grande, dedicado ao Senhor Bom
Jesus dos Aflitos – Foto – Rostand Medeiros.
Localizada a
433 km da capital pernambucana, a história de Floresta remonta a segunda
metade do século XVIII e sua povoação teve início na fazenda Grande, à margem direita
do Rio Pajeú. Consta que a localidade, como muitas no interior do Nordeste
antigo, serviu de curral temporário para o gado que vinha da Bahia para
Pernambuco e depois seguia para outras regiões mais ao norte.
Em alguns
anos, mais precisamente em 31 de março de 1846, o povoado de fazenda Grande foi
elevado à categoria de Vila, por meio da Lei Provincial n° 153, apresentado
pelo representante de Flores, município também banhado pelo Rio Pajeú, do qual
a atual Floresta foi desmembrado.
Praça em
Floresta – Foto – Rostand Medeiros
Ainda podemos
ver deste período a bela Igreja de Nossa Senhora do Rosário, originária de um
antigo oratório da fazenda Grande e dedicado ao Senhor Bom Jesus dos
Aflitos. Foram os proprietários da gleba que doaram metade de suas terras
para a construção da capela. Esta igreja fica localizada em um ponto
particularmente interessante de Floresta, onde se e encontram várias
tamarineiras centenárias que dão ao cenário desta parte da cidade uma
característica muito interessante para os visitantes.
Mas, apesar de
todas as características desta bela cidade, a razão da nossa vinda a Floresta
eram os fatos históricos envolvendo esta cidade e o cangaço. E em relação a
este tema o que não faltam são episódios, a maioria deles sangrentos. No livro
“As cruzes do Cangaço – Os fatos e personagens de Floresta – PE”,
brilhantemente escrito por Marcos Antônio de Sá e Cristiano Luiz Feitosa
Ferraz, é onde encontramos inúmeros relatos desta intensa história que liga
esta cidade a este fenômeno de banditismo rural.
Os autores do
interessante livro “As cruzes do Cangaço – Os fatos e personagens de Floresta –
PE”, entregando um exemplar do seu trabalho aos descendentes da família Gilo,
na fazenda Tapera dos Gilo, local do maior massacre da história do cangaço,
fato extensamente narrado no livro – Foto – Rostand Medeiros.
Floresta e a
região ao redor é uma cidade umbilicalmente ligada à história do Cangaço e de
Lampião, que gravitou muito ao seu redor, desfechando mil ações sangrentas,
como a execução daquele que é conhecido como o maior massacre da história deste
movimento – O Massacre da Tapera dos Gilo (Sobre este tema ver no TOK DE
HISTÓRIA).
Realmente não
poderia haver melhores amigos e guias do que Marcos de Carmelita e Cristiano,
para apresentar sua terra e sua história ligada ao tema Cangaço.
Gostaria de
ressaltar que ao visitar Floresta e região, ao seguirmos pelas veredas do
sertão pernambucano, eu tinha a ideia de mostrar a Sérgio Azol os locais de
nascimento e morte de Lampião. Naquele momento o de nascimento, onde toda a
História desta controversa figura começou, estava bem próximo, a alguns
quilômetros de Floresta, na região da Serra Vermelha, já na zona rural da
cidade pernambucana de Serra Talhada.
Os autores
junto com um dos guardiões da memória do Cangaço em Floresta e na companhia de
Sérgio Azol e Rostand Medeiros – Foto – Péricles Ferraz.
Mas antes de
chegarmos a este local Marcos de Carmelita sugeriu que realizássemos uma parada
na fazenda Maniçoba, local de morada do Sr. João Alves Barros, conhecido na
região como João Saturnino e filho do famoso José Alves de Barros, o Zé
Saturnino, ou ainda o Zé Saturnino das Pedreiras, um dos mais importantes
inimigos de Lampião.
Mas neste caso
para mim, ir até a casa de João Saturnino era um reencontro!
Revendo um
Velho Sertanejo!
Voltando no
tempo me recordei que quase dez anos antes, em agosto de 2006, eu e o escritor
e pesquisador Sérgio Dantas estivemos nesta mesma região da Serra Vermelha, mas
com a ideia de seguir para a fazenda São Miguel e visitar o Sr. Luiz Alves de
Barros, o Luiz de Cazuza. Este era um sobrinho de Zé Saturnino, que conheceu
na sua juventude o rapaz Virgulino Ferreira da Silva, que se tornaria o famoso
Lampião.
Rostand
Medeiros e João Saturnino em 2006 – Foto – Sérgio Dantas.
Na ocasião
deixamos para trás a próspera cidade de Serra Talhada, depois seguimos pela
estrada estadual PE-390, onde percorremos cerca de 30 km até o ponto onde se
inicia a “Estrada José Saturnino”, que na época tinha uma nova e grande placa
indicativa, e seguimos em direção a fazenda São Miguel.
Ao seguirmos
por este caminho de barro o amigo Sérgio Dantas recordou que passaríamos nas
terras da fazenda Maniçoba, diante da casa de João Alves Barros, o João
Saturnino, filho do grande inimigo de Lampião. Animado com a informação eu
sugeri a Sérgio Dantas que realizássemos uma parada para bater um papo com ele.
Mas Sérgio, prudentemente, comentou que tinha a informação que João Saturnino
era tido como arredio a pessoas estranhas e não gostava de conversar sobre
coisas do passado que envolvia as lutas do seu pai com a família Ferreira. Isso
ocorria principalmente diante das inúmeras acusações que, em sua opinião, buscaram
transformar seu pai, um homem sério e honesto, perseguido por bandidos, em um
pária da sociedade.
José Alves de
Barros, o Zé Saturnino, ou ainda o Zé Saturnino das Pedreiras, um dos mais
importantes inimigos de Lampião – Foto – Arquivo do autor.
Mas nós
estávamos a mais de 700 km de nossa cidade, Natal, capital do Rio Grande do
Norte, e ali morava o filho do homem que, de uma maneira um tanto torta, havia
realizado ações que iniciaram a vida de cangaceiro de Lampião. Opinei que valia
a pena tentar uma parada e Sérgio aceitou.
Encontramos
João Saturnino com um canivete na mão, cortando algo e sentado em um tamborete
diante de sua casa. Mesmo com mais de setenta anos de idade na ocasião, cabelo
e barba totalmente brancos, ele transparecia força e isso eu senti na sua voz,
forte e profunda, e no jeito bem sertanejo de agir. Ele nós recebeu sem maiores
atenções, sem esboçar muitos sorrisos, reservado, com certa desconfiança, sem
se mostrar animado, mas também não rejeitou nossa presença e nem foi
indelicado. Igualmente nós não iniciamos nosso diálogo com nada relativo ao
cangaço.
Na verdade nem
me recordo como iniciamos nossa conversa. Mas me lembro bem que em algum
momento ele comentou que no final da década de 1950 havia trabalhado nas obras
da rodovia Belém-Brasília. Foi quando me lembrei da história de um grave
acidente que aconteceu durante a criação desta rodovia, que naquela época foi
considerado uma verdadeira tragédia e tido muita repercussão no país inteiro –
O acidente que provocou a morte do engenheiro Bernardo Sayão.
O caso ocorreu
em 15 de janeiro de 1959, a uns 30 quilômetros da cidade maranhense de
Imperatriz, quando o engenheiro carioca Bernardo Sayão Carvalho Araújo, chefe
geral da obra, estava sentado em uma mesa de campanha examinando um mapa e uma
árvore de 40 metros de altura caiu sobre ele matando-o na hora. João Saturnino
contou, com extrema calma e voz firme, que lembrava do fato e que aquela morte
se tornou uma verdadeira tragédia para os trabalhadores que tocavam o
desenvolvimento daquela estrada no meio da floresta. Isso ocorreu pelo
desaparecimento do homem que, pela sua firmeza de caráter e profissionalismo,
era o verdadeiro motor no desenvolvimento da rodovia Belém-Brasília.
Serra Vermelha
em 2006 – Foto – Rostand Medeiros
De alguma
forma estranha, relembrar aquele episódio triste quebrou o gelo entre nós e o
velho sertanejo. Aquilo abriu o caminho para que pudéssemos conversar com mais
calma e tranquilidade sobre o cangaço, seu pai e Lampião.
Recordo-me que
passamos quase duas horas conversando com João Saturnino. Nós o deixamos bem a
vontade para que ele conversasse o que desejasse sobre aqueles episódios do
passado.
O velho
sertanejo narrou que nasceu em 9 de outubro de 1929, contou aspectos da
propriedade, da vida de seus pais, da questão contra os Ferreira e outras
coisas. Mas em síntese ele não contou nenhuma informação dita “bombástica”, ou
algo que já não estivesse em algum livro sobre o tema.
Mas está ali
junto daquele homem foi muito positivo e interessante. Creio que para ele
ocorreu o mesmo sentimento em relação aquele encontro, tanto que ele passou a
mostrar alguns poucos objetos pessoais, herança de seu pai, que pensou ser
interessante apresentar aos dois visitantes potiguares.
2006 – Parte
de um velho punhal e uma espora quebrada – Objetos que pertenceram Antônio
Ferreira e foram perdidos no primeiro combate da vida de Lampião? – Foto –
Rostand Medeiros
Dois dos
objetos apresentados – Um velho e carcomido punhal e uma espora quebrada – a
princípio não me chamaram atenção. Mas o que João Saturnino comentou sobre eles
certamente me fez mudar totalmente de ideia. Informou que aqueles objetos
haviam sido encontrados no mesmo local onde pela primeira vez os irmãos
Ferreira abriram fogo contra seu pai e outros homens. O fato se deu no ano de
1916, mais precisamente no início do mês de dezembro, no lugar Lagoa D’Água
Branca, no sopé da Serra Vermelha, a alguns quilômetros da fazenda Maniçoba.
Neste tiroteio
Antônio Ferreira, o irmão mais velho de Lampião, saiu ferido com um tiro, mas
sobreviveu. E foi durante aquele histórico combate que aqueles dois objetos
foram perdidos, provavelmente por Antônio Ferreira.
Estas peças
foram encontradas muitos anos depois, já carcomidos e quebrados, por pessoas
que trabalhavam para João Saturnino. Este por sua vez os guardou com cuidado.
Ele contou que pessoas tinham colocado dinheiro para adquiri-los em algumas
ocasiões, mas ele recusou vendê-las.
Observamos
estas peças com atenção, interesse e na sequência elas foram fotografadas. Mas
com o passar das horas, diante do encontro anteriormente marcado com o Sr. Luiz
de Cazuza, percebemos que seria necessário nós despedirmos de João Saturnino.
Logo partimos
da fazenda Maniçoba para a fazenda São Miguel, onde se realizou outro produtivo
encontro e depois seguimos viagem já tarde da noite. Percorremos cerca de 70
quilômetros, até a bela e serrana cidade de Triunfo.
Reencontro e
Surpresa
Passados quase
dez anos eu iria me reencontrar com João Saturnino e com as terras da fazenda
Maniçoba.
2016 –
Reencontro com João Saturnino – Foto – Rostand Medeiros
Durante o
trajeto de Floresta até a casa de João Saturnino, eu comentei com os amigos
sobre este encontro de 2006 e estes objetos. Foi quando Marcos de Carmelita
comentou que conhecia este material histórico e que verdadeiramente os venerava
pelo que eles representavam na história do Cangaço. Sérgio Azol então se
interessou por fotografá-los.
Chegamos à
fazenda Maniçoba na manhã do dia 2 de junho, por volta das oito horas e lá
encontrei João Saturnino.
Marcos de
Carmelita, João Saturnino, Rostand Medeiros e Cristiano Ferraz – Foto – Rostand
Medeiros
Como seria
natural depois de dez anos, o encontrei transparecendo claramente a ação dos
seus 87 anos de idade. Parecia que carregava um peso nas costas, onde suas
pernas pareciam não sustentar seu corpo anteriormente rijo. Entretanto a voz
rouca e grossa estava ali presente, assim como sua lucidez, pois sem maiores
dificuldades relembrou nosso encontro de 2006 e perguntou como estava o
escritor e pesquisador Sérgio Dantas.
O punhal e a
espora em 2016 – Foto – Rostand Medeiros.
Sérgio Azol
desejou fotografar o filho de Zé Saturnino, que aceitou, mas reclamou por que
sua esposa, Dona Olímpia Cavalcante Nogueira, queria que ele vestisse uma
camisa mais arrumada e penteasse os cabelos brancos para sair bonito nos
retratos.
Depois Marcos
de Carmelita perguntou a João Saturnino se seria possível que Sérgio Azol e eu,
que havíamos vindo de São Paulo e Natal, pudesse fotografar aqueles raros
objetos. E assim foi feito!
Arquivo do
autor
Marcos pegava
nos objetos com extremo cuidado e nítida emoção, enquanto isso eu e Sérgio os
enquadrávamos nas objetivas de nossas máquinas fotográficas e os clicávamos
apenas como registro.
Não sei se
estou certo, mas creio que diante daquele reencontro com a minha pessoa e com
Marcos de Carmelita, principalmente diante da veneração do amigo Marcos pelos
objetos, foi que João Saturnino, para espanto geral dos visitantes, disse que
Marcos de Carmelita poderia levá-los como um presente. Mas com a contrapartida
que elas fossem bem cuidadas. Nessa hora eu olhei para o meu amigo de Floresta
e me espantei com a sua própria cara diante das palavras de João Saturnino.
Sacramentando
a entrega dos materiais – Foto – Rostand Medeiros.
Para aquele
homem velho, marcado pelo tempo e pela história do seu pai e de Lampião,
aquelas peças carcomidas possuem um muito valor muito especial e evocam vastos
sentimentos. Provavelmente ele viu estes mesmos sentimentos presentes no
semblante de Marcos de Carmelita e decidiu lhe entregar peças que genuinamente
pertenceram ao primeiro combate de Lampião e seus irmãos em toda sua história
de inúmeros confrontos e tiroteios.
João Saturnino
e sua esposa – Foto – Sérgio Azol.
Talvez, sem
querer, naquela manhã na fazenda Maniçoba o velho João Saturnino me deu uma
simples, clara e enorme lição – A de que ninguém é eterno e ninguém é dono da
História!
No Lugar
Original Onde Nasceu Lampião e Novas Surpresas
Mas aquele 2
de junho de 2016 ainda guardava mais situações interessantes.
Da fazenda Maniçoba
seguimos para conhecer o local exato onde Virgulino Ferreira da Silva nasceu –
A propriedade Passagem das Pedras.
Foto das
ruínas da casa onde nasceu Lampião, no livro !Lampião, cangaço e Nordeste”, de
Aglae Lima de Oliveira, pág. 33, Edições O Cruzeiro, Rio, 1970.
Da porteira de
um empreendimento turístico, onde supostamente está uma casa que foi de uma tia
de Lampião e que foi reconstruída há alguns anos, seguimos a esquerda por uma
estrada de terra bem rústica e maltratada.
Logo estava
diante do riacho São Domingos, trecho fluvial extensamente comentado nos muitos
livros sobre a vida de Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião.
Vencendo as
barrancas do Riacho São Domingos e suas areias – Foto – Rostand Medeiros
Passar pelas
barrancas do São Domingos com nosso Renault Sandero 1.0 não foi lá muito
positivo para o veículo, mas nem que eu ficasse só com a volante na mão e o
carro todo destruído pela estrada, eu queria chegar até aquele local.
A propriedade
Passagem das Pedras, onde estão as ruínas da casa onde nasceu Lampião,
atualmente pertence ao Sr. Camilo Nogueira, um sertanejo tranquilo, que carrega
no rosto os anos de muita labuta em uma terra marcada pelo sol, mas que nós
recebeu com um sorriso caloroso e uma saborosa e geladinha água. Água que não
foi trazida do fundo de um antigo pote de barro, mas de sua moderna e eficiente
geladeira elétrica. Aquela água foi bem vinda, pois o sol cada vez mais
esquentava a terra, mas eu, Marcos, Cristiano e Sérgio estávamos todos bem a
vontade.
Seu Camilo –
Foto – Sérgio Azol
Com extrema
atenção Seu Camilo nós levou até uma área próxima a lateral de sua residência,
em um ponto cercado e coberto de vegetação típica de caatinga. Ele comentou que
a sua família tinha adquirido há anos aquelas terras que pertenceram a família
Ferreira e onde estão as ruínas da casa onde nasceu Lampião.
A área onde
estão as ruínas é toda cercada – Foto – Rostand Medeiros
Nesta área
logo ele mostrou vários tijolos vermelhos quebrados e pedaços destruídos de
telhas, apontando que certamente ali existiu uma morada. Seu Camilo faz questão
de deixar o local preservado, com a vegetação crescendo livremente e os tijolos
quebrados e pedaços de telhas espalhados na terra. Ele informou que não deixa
ninguém retirar nada. E como essa não era a nossa intenção naquele lugar, a
única coisa que tiramos nas ruínas da casa onde nasceu Lampião foram fotos,
muitas fotos.
Local das
ruínas – Foto – Rostand Medeiros
Percebi no
local a existência dos alicerces originais da casa, mostrando que era uma
vivenda com certas dimensões que me surpreenderam. Confesso que esperava algo
menor.
Enquanto
percorríamos a área me dei conta de quanto interessante era está naquele
singular local. Estava distante de muitas coisas e fiquei imaginar o porquê
dali saiu uma das figuras mais biografadas das Américas, que no final das
contas foi um fora da lei!
Foto – Rostand
Medeiros
Como bem
escreveu o jornalista baiano Juarez Conrado, já falecido, em um texto muito
interessante, escrito por ocasião da morte de Zé Saturnino e publicado no
jornal soteropolitano “A Tarde”, edição de 5 de setembro de 1980. Ali o
jornalista muito bem sintetizou o início desta grande querela – “Impressionante
o fato de um simples furto de bodes, tão comum nos longínquos anos de 1910 a
1920, haver se constituído no ponto de partida para uma das mais emocionantes
histórias do banditismo em toda América Latina, fazendo com que um dos seus
personagens, um tímido e bem comportado garoto, do interior de Pernambuco, se
transformasse numa figura legendária, da qual ainda hoje se ocupam jornalistas,
pesquisadores e, principalmente, sociólogos, todos eles interessados em
conhecer de perto detalhes da vida desse homem que marcou época nos sertões
brasileiros”.
A Serra
Vermelha, no caminho para a Passagem das Pedras – Foto – Rostand Medeiros
Enquanto
fotografávamos a área, Marcos de Carmelita, amigo de longa data de Seu Camilo,
lhe comentava sobre o objetivo daquela visita, quem era eu e Sérgio Azol e de
onde viemos. Ele também comentou sobre a visita a João Saturnino e os
maravilhosos e históricos regalos recebidos. O velho sertanejo achou tudo muito
interessante e comentou que em sua propriedade também existiam objetos de
trabalho que haviam pertencido originalmente a família Ferreira.
Peças e
engrenagens do engenho de moer cana-de-açúcar que existia na propriedade da
família Ferreira – Foto – Rostand Medeiros
Percebi no
semblante de Marcos de Carmelita outro susto e dos grandes!
Seu Camilo
então comentou que durante a questão entre eles e Zé Saturnino, quando a
família de Lampião se deslocou para uma propriedade denominada Poço do Negro,
já na área de Floresta, deixou com a Sra. Antônia Nunes, conhecida como Dona
Totonha, muito objetos típicos da lide no campo. Ela ficou com a guarda
temporária, mas ninguém retornou para buscar nada e tudo ficou por lá.
Antiga balança
dos Ferreira – Foto – Rostand Medeiros
Seu Camilo nós
apresentou algumas peças e engrenagens do engenho de moer cana-de-açúcar que
existia na propriedade. Além disso Seu Camilo trouxe dois antigos prumos
(aparentemente de bronze), dois serrotes de aparar ponta de chifres de boi, duas
esporas, uma pequena balança, um enxó e outro materiais. Na prática eram
ferramentas típicas de pessoas que viviam no campo, encontrados em muitas
fazendas pelo interior do Nordeste. Evidentemente que eram materiais com
determinado peso histórico, pois pertenceu à propriedade Passagem das Pedras,
local de nascimento de Lampião.
Foto – Rostand
Mdeiros
Mas entre os
materiais apresentados, um deles me chamou muito atenção – Um nível de bolha
inglês, ricamente trabalhado, que teria pretensamente pertencido a José
Ferreira, pai de Lampião.
O nível nada
mais é que um tradicional instrumento para indicar ou medir inclinações,
muito utilizado por carpinteiros, pedreiros, engenheiros, agrimensores e
muitos outros profissionais. O chamado nível de bolha é quando este tipo de
ferramenta possui um pequeno recipiente, com certa quantidade de um liquido
viscoso, onde em seu interior fica aprisionado uma bolha de ar que serve
para indicar a existência de inclinação em planos horizontais e verticais caso
a bolha se posicione para fora de uma área previamente demarcada.
O nível com
bolha produzido pela empresa John Rabone and Sons, de Birmingham, Inglaterra
que seria uma ferramenta que pertenceu ao pai de Lampião – Foto – Rostand
Medeiros
Confesso que
em muitos anos visitando inúmeras fazendas e propriedades antigas pelo Nordeste
do Brasil, foi a primeira vez que me deparei com este tipo de instrumento. É
uma bela peça, que possui a parte superior feita de bronze e madeira de mogno
americano no corpo central. Mas interessante mesmo era a origem do artefato!
Foto – Rostand
Medeiros.
Pesquisando
inicialmente eu descobri que aquilo era um nível produzido pela empresa John
Rabone and Sons, de Birmingham, no centro oeste da Inglaterra. Esta grande
cidade experimentou uma explosão de crescimento populacional e econômica, com o
advento da Revolução Industrial, da qual Birmingham foi um dos primeiros e mais
bem sucedidos centros. Descobri também que a empresa John Rabone and Sons teve
suas origens como fabricante de ferramentas gerais em 1784 e o negócio foi
continuado pelo neto de John Rabone, Eric. Operou-se sob o nome de John Rabone
and Sons de 1784 até 1953.
Continuei
pesquisando nos jornais da Biblioteca Nacional e descobri que a firma John
Rabone and Sons era conhecida no Brasil pelo nome simplificado de “Rabone” e
encontrei algumas referências aos produtos desta empresa, mas focado
principalmente em trenas de medição, com vários metros de comprimento,
possuindo fitas métricas de aço, ou de “panno”, como se escrevia na época. Mas
não encontrei nenhuma referência de venda de níveis de bolha como aquele apresentado
por Seu Camilo.
Foto – Rostand
Medeiros
Aquela peça em
si abriu um leque de inúmeros questionamentos para mim.
Como algo como
aquilo chegou ao Ferreira?
Para que eles
utilizavam aquele tipo de ferramental mais especializado e, até onde sei, um
tanto raro no sertão do passado?
Quais eram os
saberes, os fazeres, as artes que as mãos e o suor dos Ferreira produziam?
Então foi que
me dei conta que na verdade pouco se sabe da vida de Lampião no seu dia a dia
antes dele virar cangaceiro. Pouco se sabe de sua singela vida, quando ele era
apenas filho de José Ferreira, se chamava Virgulino Ferreira da Silva e vivia
no lugar Passagem das Pedras.
Foto – Rostand
Medeiros
Segundo Seu
Camilo, através da tradição oral local, existe a informação que os membros da
família Ferreira sabiam construir casas, eram muito habilidosos e práticos.
Existe inclusive restos de um forno de produção de tijolos e telhas no local.
Realmente esta parte das habilidades dos Ferreira merece pesquisa mais apurada.
E tal como
ocorreu com João Saturnino, diante da atenção que devotávamos aquelas peças e
do interesse de Marcos de Carmelita em preservá-las, Seu Camilo decidiu doar
tudo ao pesquisador e escritor florestano. Eu vi e presenciei tudo aquilo!
Marcos de
Carmelita comentou que já tinha conhecimento daquele material, pois já tinha
feito diversas visitas de pesquisas a esses locais e queria que os outros
também pudessem ver com seus próprios olhos. Mas jamais imaginou que algo assim
pudesse acontecer.
Casa na região
da Passagem das Pedras – Foto – Sérgio Azol.
As descobertas
chocaram a todos que ali estavam. Já no nosso retorno a Floresta, sentimos o
dever de comunicar aos outros pesquisadores do tema Cangaço estas descobertas.
Pessoalmente fiquei muito feliz quando pedi a Marcos de Carmelita para ter o
privilégio de deixar essa matéria em minhas mãos, onde construí este texto com
muita responsabilidade.
Depois que eu
e Sérgio Azol partimos de Floresta em direção a Piranhas, Alagoas, Marcos de
Carmelita retornou a casa de Seu Camilo na companhia de Denis Carvalho,
bacharel em direito residente em Floresta, pesquisador do cangaço focado no
conhecimento dos punhais dos cangaceiros e objetos antigos. Juntos eles fizeram
um inventário do material.
Antigo quartel
da Força Pública em Floresta. Atualmente em ruínas, mas merecendo uma
recuperação pela sua importância histórica.
Segundo me
narrou Marcos de Carmelita, o que ele, Cristiano, Denis e outros membros do
GFEC – Grupo Florestano de Estudos do Cangaço sonham para o destino destas
peças é que elas venham a fazer parte de uma exposição permanente no prédio do
antigo batalhão das forças volantes, na Praça major João Novaes, no centro de
Floresta.
Construído
originalmente para ser um seminário em 1928 abrigou o 3° Batalhão da Força
Pública da Polícia Militar de Pernambuco com a intenção de combater o cangaço.
Depois da Revolução de 1930 o Batalhão foi transferido de Floresta, ficando o
prédio desativado. Depois serviu para o Pensionato da Divina Providência.
Infelizmente o local se encontra atualmente em ruínas, existindo projetos para
a sua recuperação, mas que nunca seguiram adiante.
O autor deste
texto na região da propriedade Passagem das Pedras – Foto – Sérgio Azol.
Marcos
acredita que neste local histórico, além de contar com uma área onde existiria
uma exposição permanente com estas peças ligadas a família Ferreira, além de
outras ligadas a questão do cangaço e que pertencem a pessoas em Floresta,
poderia igualmente abrigar um centro de cultura e artesanato. Este seria
principalmente focado nos trabalhos de couro existente na região e nos
materiais tradicionais produzidos pelas comunidades indígenas.
Como comentei
anteriormente, eu vi a entrega destes materiais e acredito que eles estão em
boas mãos. Nas mãos de pessoas que acreditam na democratização da informação
histórica e na preservação.
Extraído do blog do historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros:
https://tokdehistoria.com.br/2016/09/01/um-interessante-livro-sobre-as-antigas-familias-do-sertao-nordestino-e-o-cangaco/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com