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sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

... E de onde vem Dadá?

Por: Manoel Severo

Todos conhecem a fantástica história de uma das mais destacadas mulheres do cangaço, nomenclaturada como a "número 2" dentro da hierarquia feminina cangaceira: A senhora Sérgia Ribeiro da Silva, a Sussuarana que não tinha medo de nada e que era a única dentre todas as mulheres do cangaço, que realmente empunhava o fuzil ou a mauser, pronta para a batalha, nossa famosa Dadá. Mas, todos sabem qual a origem do nome Dadá? Vamos recorrer ao escritor Antônio Amaury em seu livro "Gente de Lampião - Dadá e Corisco"...


"Outra ocasião Corisco está com Ferrugem quando passa Sérgia. O cabra olha e se lembra: - A sussuarana é paricida cuma noiva qui eu tinha. Era bunita , o nome era Darvina, mas a gente chamava ela di Dadá"

Dadá... Dadá. É assenta bem


Desse dia em diante, para todo o sempre, ninguém mais chamou Sérgia pelo nome, nem pelo apelido de Sussuarana. Ficou sendo Dadá."

Fonte: 
"Gente de Lampião - Dadá e Corisco" - Antônio Amaury Correa de Araujo

Pois sim, a origem de um dos nomes mais famosos do Cangaço, a valente Dadá, se deu a partir do nome de uma namorada de um dos cabras do grupo do Capitão Corisco, Ferrugem, a jovem sertaneja Darvina, que certamente nunca soube que foi na verdade, a "musa inspiradora" do nome que viria a marcar a presença da mais valente cangaceira de que se tem notícia; Sérgia Ribeiro da Silva, a Dadá de Corisco.

Manoel Severo





Ferreira da Gazeta - Seresteiro

Por: José Mendes Pereira

Conheci Ferreira nos anos 70, ele e eu trabalhávamos juntos na "Editora Comercial S/A., nos dias de hoje extinta. Era uma empresa que dominava duas emissoras: "Rádio Difusora de Mossoró" e "Rádio Difusora de Areia Branca", sendo que esta última foi desativada, não sei, talvez por não estar com a documentação legal; e uma rede de cinemas, "Cine Caiçara de Mossoró", "Cine Jandaia de Mossoró" e "Cine Miramar de Areia Branca".

 
José Ferreira Filho

José Ferreira Filho nasceu em Mossoró, no dia 15 de Agosto de 1946.  Quando criança fez de tudo para adquirir o sustento,  como por exemplos: levar feira, mala, dar recados, vender guloseimas, bombons e outros.
            
Começou a trabalhar em jornal muito jovem, e no dia 10 de Junho de 2010, havia completado  cinquenta anos no ramo gráfico. Era uma das suas paixões, e jamais deixou de fazer um bom trabalho; tinha interesse pelo jornalismo.

Iniciou na tipografia   derretendo  o chumbo para alimentar as linotipos, e posteriormente tornou-se tipógrafo, fazendo chapas, distribuindo tipos nas caixetas, paginando o jornal.

Na continuidade dos seus trabalhos, foi oferecido a oportunidade de aprender a operar as linotipos, máquinas que eram muito difíceis o seu manejo para  principiantes, mas ele sendo inteligente, logo passou a ser um dos operadores proficionais de uma delas,  e foi um grande linotipista. 
            
Após sua saída do jornal "O Mossoroense" foi para a "GAZETA DO OESTE, a convite de seu fundador, Canindé Queiroz, em 1982.


E no dia  30 de Abril de 1982, foi nomeado chefe das oficinas da gráfica. Mas  como ainda tinha um acordo com o jornal "O Mossoroense", tomou posse somente no "Jornal Gazeta do Oeste" no dia 02 de Junho de 1982. Ele foi o autor da série "Nossos Valores". Devido ter trabalhado muitos anos na "Gazeta do Oeste", foi alcunhado por "Ferreira da Gazeta".
            
No período em que nós trabalhávamos juntos, José Ferreira já era linotipista, e eu fazias as confecções manuais das chapas, isto é, juntando letras por letras para fazer as composições.
            
Posteriormente José Ferreira saiu da "Editora Comercial S/A.", e eu que já havia aprendido operar a linotipo, passei a ser o linotipista da empresa, quando fazia as composições de orçamentos de diversas prefeituras do Alto Oeste potiguar.

 
Dr. Vingt-un Rosado Maia

Além dessas, eu fazia linotipicamente a composição dos livros da "Coleção Mossoroense", uma Fundação criada pelo Dr. Vingt Rosado Maia, sendo que esta dar oportunidade a diversos autores de livros, tanto a profissionais como a principiantes.

FERREIRA - ARTISTA

José Ferreira Filho não só foi jornalista como também foi um dos melhores seresteiros de Mossoró e da região. Gostava de divertir o seu cativo público em diversas casas de Shows. Tanto era amante do jornalismo como também da música.
          
Em anos remotos, na década de setenta, eu residia na "Casa de Menores Mário Negócio", uma instituição que dava assistência a menores, sob o domínio do "SAM" -  Serviço de Assistência ao Menor", que foi substituído pela "FEBEM", e José Ferreira Filho era casado com uma senhora irmã da Vice-diretora desta instituição.
          
Como eu ainda aos dezoito anos achava bonito o toque de violão, tomei emprestado o seu, para que eu pudesse aprender algumas notas (coisa que nunca eu aprendi, e dos piores violonistas eu sou o pior), mas por má sorte quebrei o seu amado e zeloso violão.

Ferreira, viúva Marlete e sua filha Milena

Os dias foram se passando e eu com vergonha de falar para ele o que tinha acontecido com o seu instrumento. Ele me mandou um recado que eu fosse devolvê-lo. Não havia outro jeito, contei o que tinha acontecido. Mas ele foi  comprensivo e me pediu que eu mandasse consertá-lo, isso acontecia com qualquer um.
            
Prcurei um carpinteiro de primeira categoria, e mandei consertá-lo. Dias depois eu fui entregá-lo. Não sei se foi apenas para me agradar, mas o serviço feito pelo carpinteiro foi elogiado por ele.
            
Os tempos se passaram e perdemos por completo o contato. Anos depois eu soube que ele estava fazendo serestas por essa Mossoró e região. E posteriormente o encontrei e lhe fiz a seguinte pergunta:
            
- Ferreira, quando você descobriu que é cantor?
 Ele me respondeu o seguinte:
- Para te falar a verdade, nem eu mesmo sei. Comecei a me apresentar por aí, o público tem gostado e eu continuo fazendo as minhas serestas.
            
José Ferreira foi sem dúvida um dos melhores seresteiros do Rio Grande do Norte.
           
José Ferreira Filho, ou Ferreira da Gazeta faleceu no dia 17 de Agosto de 2010, vítima de problemas pulmonares.

PALAVRAS DO POETA ANTONIO FRANCISCO


"Em um momento que quase cheguei a falecer, Ferreira fez um poema pedindo a Deus para não me levar. Hoje tenho certeza que o céu levou meu amigo por que estava precisando de pessoas boas por lá”.

Antônio Francisco Teixeira de Melo nasceu em no dia 21 de outubro de 1949.  É  um grande cordelista potiguar. É filho de Francisco Petronilo de Melo e Pêdra Teixeira de Melo. Graduado em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Poeta popular, cordelista, xilógrafo e compositor, ainda confecciona placas.
          
Aos 46 anos, muito tardiamente, começou sua carreira literária, já que era dedicado ao esporte, fazia muitas viagens de bicicleta pelo Nordeste e não tinha tempo para outras atividades. Muitos de seus poemas já são alvo de estudo de vários compositores do Rio Grande do Norte e de outros estados brasileiros, interessados na grande musicalidade que possuem.
           
Em 15 de Maio de 2006, tomou posse na Academia Brasileira de Literatura de Cordel, na cadeira de número 15, cujo patrono é o saudoso poeta cearense Patativa do Assaré. A partir daí, já vem sendo chamado de o “novo Patativa do Assaré”, devido à cadeira que ocupa e à qualidade de seus versos.

Este blog deseja que o Ferreira da Gazeta seja abençoado por Deus por onde ele estiver.

Informação:

A pequena biografia do poeta eu a encontrei em um recorte de jornal. Mas infelizmente não tinha o nome do jornal. Por essa razão não tenho como colocar a fonte.

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NORTERIOGRANDENSES ILUSTRES - IX

Por: José Ozildo dos Santos
Minha foto

Foi o mais bravo soldado norte-riograndense, que participou da Guerra do Paraguai. Nascido na antiga Vila Nova da Princesa, atual cidade de Assú, a 5 de maio de 1846, Ulisses Caldas era filho do Alferes Francisco Justiniano Lins Caldas e de dona Maria Gorgonha de Holanda Wanderley. Em sua juventude, transferiu-se para Natal, onde continuou os estudos iniciados em Assú, tornando-se popular em toda cidade, por seu espírito comunicativo.

ULISSES OLEGÁRIO LINS CALDAS

Eclodindo a Guerra contra o Paraguai, movido por forte gesto de patriotismo, alistou-se no Batalhão de Voluntário da Pátria, a 17 de março de 1865, integrando a primeira turma de voluntários, embarcando logo em seguida para o cenário da guerra, sendo-lhe dado a patente de alferes. Ao seu irmão, João Perceval que encontrava-se no Recife e que também alistou-se como voluntário, deram-lhe o posto de sargento.

Logo no primeiro combate, demonstrou que era um bravo. Numa determinada ocasião, “após a explosão de uma mina e vendo dispersos os membros mutilados de companheiros mortos ao seu lado, gritou aos sobreviventes, num lance de indômita coragem, avança, camaradas! ainda é vivo Ulisses!”, e toma, ele mesmo, à ponta de espada e por entre um chuveiro de balas, duas peças de artilharia ao inimigo, sendo, do corpo a que  pertencia, o primeiro que galgou as suas trincheiras”.

Por este valente feito, foi condecorado com o hábito de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro. Seu nome, tornou-se uma legenda. A cada combate, aumentava seus atos de valor e “ao falecer, a sua fé de ofício oferecia, pelo número de elogios que continha, um verdadeiro contraste com a rapidez de sua carreira militar”.

Alferes do 29º Corpo de Voluntários da Pátria, em ação na Zona de Combate, foi comandado pelo tenente coronel Alexandre Freire Maia Bittencourt e, a 4 de setembro de 1866, recebeu a patente de tenente. Com sua espetacular bravura, encorajava seus homens, guiando-os de espada em punho, nas frentes de batalhas. No comando, “atirava-se às refregas acesas, criando renome, citado, apresentado aos comandantes como exemplo de coragem, de tenacidade, de sangue frio”.

O Tenente Ulisses Caldas faleceu em combate a 7 de novembro de 1866, nas avançadas da tomada de Curuzu, aos vinte anos de idade e menos de dois, prestados ao serviço militar, deixando às gerações futuras, “um nome e uma tradição de heroísmo que não morrerão jamais”.

Registrou Tarcísio Medeiros, que Ulisses Caldas “ao falecer, a sua fé de ofício oferecia, pelo número de elogios que continha, um verdadeiro contraste com a rapidez de sua carreira".

Por carta, João Perceval comunicou aos seus pais, residentes em Assú, a morte de seu irmão, em detalhes, numa narrativa emotiva e comovido de lágrimas. Eis a carta:

“Meus caros pais, abençoam”.
Acampamento em Curuzu, 8 de novembro de 1866.
Depois de ter passado por tantos trabalhos, por tantos perigos, veio a sucumbir em um tiroteio que houve entre nosso piquete e o inimigo, ontem às 9 horas e meia da manhã, o meu querido irmão Ulisses, o maior amigo que eu tinha. VV. mercês. devem avaliar a minha dor, pela de VV. mercês.

 Estava eu com o batalhão junto às trincheiras, quando soube que ele tinha sido baleado. Imediatamente entreguei a bandeira a outro alferes e segui para o hospital onde ele se achava. Em caminho soube que ele (baleado) foi conduzido morto; cheguei ao Hospital, com efeito, achei-o na eternidade, cercado por muitos oficiais e soldados; entrei, dei-lhe um ósculo na face, muitas lágrimas banharam meu rosto pálido, mas não desfigurado. Sai a fim de preparar o caixão, sepultura e arranjar o que era necessário para sepultá-lo com decência, para o que muito se prestaram alguns comprovincianos nossos que são meus verdadeiros amigos. O ferimento foi de lado, no braço direito quase no costado do ombro; não quebrou o osso, porém a bala foi ao coração. É doloroso esse golpe que acabamos de sofrer, porém alguma cousa aliviada pela brilhante figura que fez sempre em todos os combates em que se achou, pelo que foi sempre elogiado nas ordens do dia do seu comandante e mesmo do Exmo. Sr. General”.

“Sem dúvida o nome dele já está nas colunas dos jornais, pela bravura que apresentou no combate do dia 3 de setembro, que a ele se deve a tomada de duas bocas de fogo. No dia 22, portou-se com o mesmo e assim no dia 13 de outubro, o batalhão dele achava-se de proteção ao piquete; este foi atacado pelo inimigo que depois refugiou-se na mata. O general do dia pediu ao comandante um oficial de confiança e oito praças; ele foi escolhido; segue para dentro da mata afim de provocar o inimigo, quando recebeu grande descarga, ficando logo três praças baleados. Com cinco praças que restavam sustentou o arrojo do inimigo que avaliou em 80, até que veio socorro de mais 50 praças, e neste último em que sucumbiu portou-se dignamente, marchando na frente como sempre fazia. A morte dele causou grande choque no segundo corpo do exército. Vv. Mercês sabem do gênio dele; a todos agradava grandes e pequenos; no semblante de todos se divisava sentimento”.

“Foi acompanhado à sepultura por mais de 150 oficiais e alguns cadetes, sendo a maior parte de infantaria, muitos de cavalaria e alguns da marinha. Foi sepultado as 4 e meia da tarde do mesmo dia entre duas       árvores, onde estão mais alguns bravos seus companheiros. Era tenente do dia 4 de setembro, quando eu também fui promovido a alferes”.

“Tudo isto, meus caros pais devemos encarar com muita resignação. Deus o tenha em sua glória. Adeus. Aceitem o coração saudoso de seu filho obediente e amigo - JOÃO”.

No Rio Grande do Norte, o nome do Tenente Ulisses Caldas é lembrado com admiração. Em Natal, desde 13 de fevereiro de 1888, encontra-se imortalizado, designando a Rua onde está hoje o edifício da Prefeitura Municipal.



Extraído do blog: "Construindo a História"

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[Cangaço na Bahia] Utilização das informações deste blog.


Por: Rubens Antonio

Este blog destina–se não à discussão, mas às preservação e divulgação da memória dos eventos do Cangaço na Bahia, em todas as suas dimensões e amplitudes.
Estão inteiramente liberadas para uso em publicações as postagens deste blog, devendo–se primeiramente realizar a formal gentileza de citá–lo como referência primária.
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SILVA FILHO, Rubens Antonio da. “NOME DA POSTAGEM”, in: “Cangaço na Bahia” site: cangaconabahia.blogspot.com acessado em DATA.
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Instituto Geográfico e Histórico da Bahia
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40.060-001 - Salvador - Bahia
e um exemplar para:

Enviado pelo professor e pesquisador do cangaço:
Rubens Antonio
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[Cangaço na Bahia] 18 de maio de 1935, no “Diario de Noticias”

Por: Rubens Antonio

“Lampeão” não quer negocios com a policia da Bahia
Dois minutos de interessante palestra com as mulheres de Mariano e “Jurema”, chegadas, hontem, presas
A vida, para o banditismo, “no outro lado”, está melhor...

O DIARIO DE NOTICIAS offerece, hoje, aos seus innumeros leitores, a opprtunidade de uma entrevista com as mulheres de Mariano e “Jurema”, dois dos peores scelerados que teem palmilhado a zona escaldante e longinqua do nordéste bahiano.
São ellas Anna Maria da Conceição, com 23 annos de idade, mestiça, nascida nas Baixas, no município de Geremoabo, e Otilia Teixeira Lima, parda, de 25 annos, estatura média, procedente das caatingas de Poços, distante 15 leguas daquella cidade.
Fomos encontra–las, hontem, na delegacia Auxiliar. Momentos antes, haviam chegado do nordéste, pelo trem do horario, devidamente escoltadas por seis praças da Policia Militar.

Anna e Otilia

Como foi presa a primeira

Anna foi presa nas caatingas do logar denominado São José, tendo, nessa occasião, recebido dois tiros de fuzil, que lhe perfuraram os braços.
Estava ella em companhia de “Jurema”, “Beija–Flôr”, “Nevoeiro” e “Juremeira”, quando surgiu, inesperadamente, a força volante do sargento Vicente, que, de ha muito, vinha sequindo as pégadas do bando sinistro. Logo que viu os policiaes, “Jurema” rompeu cerrado tiroteio contra os mesmos, que, reagindo valentemente, puseram em fuga os cangaceiros. No embate, que durou poucos minutos, caiu ferida Anna Maria. “Jurema” quis, ainda, soccorre–la, mas, acossado pelas balas, teve que fugir, deixando a companheira nas mãos dos seus perseguidores.

A outra “descansava”...

Otilia estava com o bando de Mariano, na Fazenda “Mucambo”, junto com “Páo Ferro”, “Criança” e “Pai Velho”. Minutos após a chegada do grupo, dois cáibras fôram escalados para arranjar montadas na vizinhança. Foi quando appareceu, de surpresa, o contingente do sargento José Rufino, que, com 15 praças, vinha procurar pousada na alludida fazenda.
Reconhecendo os bandidos, a força entrou a tiroteiar contra os mesmos, pondo–os em fuga, depois de cerca de duas horas de fogo. Otilia estava descansando na casa da fazenda, quando começou a fuzilaria.
Receiosa de ser attingida pelos projectis, alli deixou–se ficar, sendo finalmente presa e conduzida para esta Capital, onde se encontra. Mariano, seu velho companheiro conseguiu, habilmente, cortar a rectaguarda da força, fugindo á chuva de balas que se despejava sobre elles.

Contando a sua vida...

– E ainda dois graças a Deus, de estar aqui! Pensei que a força me fuzilasse, no momento em que fui presa. Ha cerca de quatro annos, ingressei no bando de “Lampeão”. Por essa occasião, o “Capitão” andava lá pelo Raso da Catharina, acompanhado de José Bahiano, “Gato”, Pó Corante”, Mariano, “Bananeira”, “Volta Secca”, “Maçarico”, “Cajueiro”, “Balisa”, “Cabo Velho”, “Nevoeiro”, Luis Pedro, Virginio, “Suspeito” e “Medalha”. Viajava para Poços, com meus dois irmãos, quando deparei o bando do “Cégo”.
Mariano botou os olhos em cima de mim e me ordenou que o acompanhasse. Não tive outro jeito senão seguir. Juntei–me ás outras mulheres e comecei a andar pelo matto, sem pouso, passando fome e sêde, até o dia em que fui presa.

Como ciganos

– E como vivem os bandidos?
– Pelos mattos, dormindo hoje aqui, amanhã alli, comendo carne do sol e ás vezes, um pouco de farinha. Agua arranja–se nas raizes de umbú. Á noite, todos se deitam no chão e embrulham–se com as suas cobertas. Quem tem mulher dorme separado, debaixo de algum pé de paó... É uma vida desgraçada... – concluiu Otilia.
Anna Maria assistia á conversa, com o corpo descansando sobre os calcanhares.

Uma historia de amôr...

– Vivia com a minha familia nas Baixas, cerca de onze leguas de Geremoabo. Um dia, a força do tenente Macedo appareceu por lá e, sabendo aque alli moravam os parentes de “Jurema”, queimou tudo. Até as roças de feijão! Eu era noiva de um irmão de Jurema, que estava no bando de Lampeão, e tinha o mesmo appellido. Vendo–o, a força prendeu–o. E já iam longe, quando o meu noivo, conseguindo intimidar os dois soldados que o escoltavam, fugiu. No caminho, convidou–me para fugir com elle. Aceitei. Dias depois, estávamos no meio do bando de Lampeão. Quis voltar. Não tive mais jeito. Ordem era ordem. Tinha que acompanhar obando. Assisti a innumeros combates, durante estes tres ultimos annos.

... E o peior tiroteio

O peor, porém, – continúa – foi o de Maranduba, onde morreram “Sabonete”, “Quina–Quina” e “Catingueiro”. Foi um tiroteio que durou varias horas. Quase fiquei surda. Eramos seis mulheres e estavamos separadas do bando. Dois caibras ficavam de sentinella comnosco, sempre que havia um combate. Depois, com os córtes da rectaguarda, Lampeão abria caminho e assim podiamos fugir.

Lampeão luta como uma féra!

– E Lampeão vai tambem para a frente?
– Sim, senhor. Lampeão é uma féra. Não tem mêdo de nada. É o primeiro que atira e vai ba frente. Quando eu entrei no bando, Lampeão estava com duas marcas de bala. Uma, no pé, e outra no braço. Foi nessa occasião que “Gato” foi ferido tambem...

Falando sobre o “Capitão”...

– Queremos alguns informes sobre Lampeão...
– O Capitão é de estatura média, bem moreno e cabello castanho. Usa oculos amarellos, pois é cégo de um olho. Traja sempre uma roupa mescla, chapéo de couro e alpercatas. Carrega um mosquetão, uma “parabellum” e tres cartucheiras, além de varios bornaes cheios de bala. Atravessado na cintura, um grande punhal.

Não quer nada com a nossa Policia

Deixei elle agora do outro lado, com varios cáibras, pois a coisa está preta no nordéste.
– E onde é o outro lado?
– Lá, em Alagôas e Sergipe. As coisas lá não são como aqui. Vive–se mais tranquillo e mnos perseguido.
Estávamos satisfeitos.

A verdade, ainda uma vez...

Effectivamente, a situação do nordéste é outra, hoje. O bandido não tem para onde se mexer. Difficilmente, desloca–se de um ponto para outro. A sua acção tornou–se quase nulla. Vive, agora, passando uma vida de miserias...
As novas directrizes traçadas pelo Cap. João Facó e executadas pelos seus auxiliares, na campanha contra o banditismo, lograram, felizmente, verdadeiro exito.
Hoje, já se respira nas caatingas.
Não ha mais aquelle pavor de outr’ora, quando pairava nas caatingas o espectro sinistro da morte.

Enviado pelo professor e pesquisador do cangaço:
Rubens Antonio
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[Cangaço na Bahia] Relatório do tenente Odonel sobre a batalha de Favella - Pery-Pery

Por: Rubens Antonio
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Relatório do 2° Tenente ODONEL FRANCISCO DA SILVA ao coronel Terencio Dourado, commandante das forças em operações, sobre o encontro de Favella e Pery–Pery.


Tinha Lampeão desapparecido na sproximidades do Estado de Sergipe, na fazenda Riachão, no dia 27 de dezembro do anno passado. Os destacamentos volantes procurando descobrir o esconderijo, cruzavam as caatingas em differentes direcções, empregando o esforço possivel para não deixal-o escapar.
Por ordem do capitão macêdo, havia eu ido bater nas caatingas de Fonseca, Vacca Branca, Estreito, Lagoinha, Umbuzeiro, Tameberi, Sítio dos Ferreiras, Montanha, Canna Bravinha, Almeida e Borracha, o que fiz sem resultado, visto não ter encontrado vestigio algum dos bandidos.
A 23 d’este, estando eu na Fazenda São Gonçalo, onde havia chegado em noite de 22, recebi uma ligação do sargento Bitú, que se achava destacado em Patamuté, avisando-me de que Lampeão havia surgido na Fazenda Boa Sorte. Mandei incontinente pegar a cavalhada, fiz a ligação com Barro Vermelho e marchei para Juá, contornando a serra da Borracha, pelo lado Oeste por ser velha estrada dos bandidos, e ao chegar na Fazendo Olympio, fui informado de que Lampeão com quatorze caibras alli tinha passado todos a cavallo, ás 10 horas da manhã.
Sem perda de tempo viajei na pista, indo perdel-a ao anoitecer na Fazenda Icó, onde elles deixando a estrada se infiltraram na caatinga afim de difficultar a perseguição.
Bastante desorientado por ter perdido a direcção delles, segui para Cacimba da Torre, onde cheguei muito tarde sem noticia alguma, rasão porque alli pernoitei de 23 para 24.
No dia seguinte (24) procurando descobrir novamente a pista segui para Salta de Pedra, São José e Paredão onde felizmente elles tinham passado ao amanhecer do dia.
Mais animado então por ter encontrado a pista, marchei para Lealdade, Sítio, Caldeirão da Canôa, Caldeirão de Cima e Campos, fazendo n’este ponto pequenoe stacionamento ás 18 horas afim de descançar um pouco a cavalhada, que estava exhauta e faminta.
depois de uma hora de descanço proseguiu viagem, forçado a marcha um pouco, depois de ter passado pelas Fazendas Mudubim e Boqueirão, onde Lampeão havia pegado o estafeta e queimado a mala, alcancei ás 24 horas a Fazenda Periperi, que dista da cidade de Joazeiro 15 kilometros, onde fui informado pelo sr. Severiano de Tal, que Lampeão alli tinha chegado ás 18 horas, feito quatro cartas aos srs. cel. Miguel Cerqueira, dr. Adolpho Vianna, cel. Ignacio Macêdo e cel. João Evangelista exigindo dinheiro, e viajado ás 20 horas para a Fazenda Favella de onde mandou buscar um cantil de cachaça e uma corrente de ouro, que por esquecimento tinha deixado.
Immediatamente, mandei deitar a cavalhada no pasto, reuni os destacamento, n’este momento já desfalcado devido terem se atrazado cinco soldados que viajavam á pe, procurei um rapaz para me servir de guia, e aos 15 ou 20 minutos do dia 25 viajei para a Favella que dista de Periperi tres kilometros.
O meu destacamento então composto por dezenove homens commigo, bem escalonado viajava, guardando profundo silencio.
Depois de uns trinta minutos de viajem o guia avizou-me de que nós nos aproximavamos de Favella, e tira uma camisa que usava afim de se confundir com a escuridão da noite. Estavamos effectivamente sahindo da referida Fazenda.
O sentinella dos bandidos percebendo a approximação da força faz fogo a curta distancia.
Tinhamos cahido, portanto, na emboscada que elles haviam preparado afim de aguardar o regresso do portador que tinha ido a Joazeiro ou a chegada de qualquer força, exactamente o que aconteceu.
O sargento Adherbal com alguns soldados heroicamente respondem o fogo no flanco esquerdo, emquanto eu procurei desalojar alguns bandidos que estavam no flanco direito, o que não me foi muito difficil visto, n’este interim, ter irrompido forte tiroteio quasi a retaguarda dos bandidos que todavia foi de um effeito extraordinario, não obstante ser um pouco affastado do local.
Era o tenente João Candido que neste momento tão critico, mesmo ignorando a minha presença, como eu a delle, me soccorria, pois os bandidos que brigavam no flanco direito passaram logo para oe squerdo e quasi por cima d emim. No momento em que elles procuravam reunir-se aos demais asseclas, ouvi alguem me chamar, não tendo, entretanto, respondido devido achar-me n’uma posição difficil. Era o bravo e abnegado soldado Israel Martins Benicio quem me chamava por ter de se retirar da lucta com alguns companheiros conduzindo o sargento Adherbal, que se achava gravemente ferido, e não queriam me deixar. Os bandidos já reunidos e entrincheirados n’uma parede de Pedra, no flanco esquerdo continuavam brigando, deixando de quando em quando ouvir gritos e improperios. Passei, então, para o flanco esquerdo onde encontrei brigando, desassombradamente, alguns contractados; entretanto os bandidos percebendo que a acção dos atacantes tomava certa tenacidade fugiram para o Serrote chamado da Favella, terminando assim o combate que talvez não tivesse durado vinte minutos. Tudo ficou envolto em profundo silencio.
Demorei-me um pouco no local, e como não visse pessôa alguma, encaminhei-me para meu acampamento em Periperi, cuja direcção ignorava visto ter luctado em differentes posições.
Viajei com a presumpção de que fosse effectivamente para lá, o que verifiquei momentos depois não ser verdade devido a dois bandidos terem me chamado:
- “Companheiro espere ahí”
Deitei-me e esperei julgando mesmo que fossem soldados, quando ao clarão do relampago divulguei pelos chapeus que não eram soldados fiz fogo.
Travamos ali ligeira escaramuça e elles espavoridos fugiram. Mas orientado por saber a direcção dos bandidos, viajei, alcançando o acampamento ás duas horas da manhã, onde já encontrei feridos gravemente o sargento Adherbal de Medeiros Borges e o contractado José Domingos dos Santos, este com dois tiros e tendo o seu fuzil inutilizado por balas.
Ao chegar, o soldado Israel me disse já ter feito uma ligação para Joazeiro pedindo medicamentos para os feridos e mandando dizer que eu não tinha apparecido até então, julgando-me morto, talvez. Ao amanhecer do dia, após o combate de onde coletaram trasendo-me um lenço perfumado, côr de rosa, dois canecos de flandres e uma lata, systema cantil, deixados pelos bandidos.
Terminando devo dizer-vos que o sargento Adherbal portou-se como todo e qualquer militar deve portar-se, isto é, com bravura, sangue frio e dedicação ao lado dos seus companheiros e da ordem. Ainda são dignos de vossa atenção o soldado Israel Benicio, e os contractados Jacintho Porphirio da Cruz, Antonio Francisco de Moraes, José Domingos dos Santos e Francisco Lopes, já pela bravura demonstrada na peleja, já pela abnegação pura que tiveram como o sargento Adherbal.

Cidade de Bomfim, 30 de Março de 1930
a) 2° Tenente ODONEL FRANCISCO DA SILVA, commandante do destamento volante.


Enviado pelo professor e pesquisador do cangaço:
Rubens Antonio

Cangaceiras entregues - Sebastiana e Laura

Por: Rubens Antonio

Sebastiana e Laura, em dezembro de 1938
.
Com a morte de Lampeão, avançaram os processos de entregas.
Entre as cangaceiras que se entregaram, estava, Sebastiana Rodrigues de Lima, de “Moita Brava”, cujo nome era Deolindo José Ferreira, e Laura Alves de Barros, de "Boa Vista”, cujo nome era Manoel Francisco dos Santos.


Sebastiana, Moita Brava, Boa Vista e Laura, no livro de Eduardo Barbosa, em foto batida quando das suas chegadas a Salvador.

Enviado pelo professor e pesquisador do cangaço: 
Rubens Antonio


Existia amor no Cangaço?

Por: Paulo Moura
Paulo Moura, Manoel Severo e Ângelo Osmiro

Esta intrigante frase, no meu entender, já por si só se responde. Escrevendo sobre um tema deste, me vem à memória frases de efeito que muita gente já leu por aí: 
Seria um: “Quem casa, quer casa”. Ou então: “Quem ama as rosas suporta os espinhos”, e  eu fico aqui a imaginar, será que era fácil se amar naqueles anos de chumbo, de fome, de seca, de correrias e de sofrimentos constantes? Debaixo de chuva, do sol escaldante, dormindo em cima de pedregulhos, sobressaltados, com medo! 

O sertanejo, devido ao tipo de vida que leva, diante da rusticidade do meio e das privações diárias é um ser que aprendeu a conviver com a falta de recursos e, conseqüentemente, com o sofrimento. Ainda temos a acrescentar que a rusticidade sertaneja está impregnada em seu ser. Herança de gente valente e guerreira. O amor que brota dele é natural. Ele ama o sertão amanhecendo, ele se emociona com a chuva que cai, com o sol se pondo e até mesmo com uma bela poesia. Mas a sua marca maior é aquela do ser rústico que deu-lhe a pecha de “Cabra Macho”.

imagem: cordelparaiba.blogspot.com

Daí eu fico a lembrar um verso lido por D. Helder Câmara, no CD Missa do Vaqueiro, do Quinteto Violado. Ele diz: “Vaqueiro meu irmão vaqueiro, pareces feito de pedra e no entanto tens voz e tens coração. Teu coração não anda se derramando, mas quando ama, ama!” Não quero afirmar aqui que um Canário de Adília a amava. Também não vou arriscar dizer que ele Não a amava. Pois eu não saberia dar a medida certa do amor que ela não recebeu. Acho que o que mais valia naquele tempo para um casal cangaceiro conviver dentro do mato era o companheirismo. A cumplicidade. Cumplicidade esta vista em Dadá de Corisco, em Maria de Lampião.  Essa era uma forma de amor. 

O amor de Durvinha por Virginio, como bem falou o João de Souza, que mesmo nos seus últimos dias de vida, casada com outro homem, jamais escondeu seu sentimento pelo primeiro companheiro. O amor do facínora Gato que, enlouquecido, entra na cidade de Piranhas para resgatar sua amada Inacinha das mãos da volante. Amor ou loucura? Então, neste interessantíssimo debate (EXISTIA AMOR NO CANGAÇO?) eu quero deixar minha humilde opinião, dizendo: Sim! Existe amor em TODO canto. Até mesmo no cangaço.

Paulo Moura, Poeta, Cordelista e Escritor
Sócio da SBEC

"Cariri Cangaço"




DELMIRO GOUVEIA - Parte I

 Por: Telma de Barros Correia (Profa. Dra, SAP-EESC-USP)

A TRAJETÓRIA DE UM INDUSTRIAL NO INÍCIO DO SÉCULO XX

A Ascensão no Mundo dos Negócios

O comerciante e industrial Delmiro Gouveia foi um personagem ímpar no cenário brasileiro em fins do século XIX e início do XX. Protagonizou uma conturbada trajetória no mundo dos negócios e da política em Pernambuco e Alagoas, realizando empreendimentos inovadores, colecionando inimigos poderosos e construindo uma reputação individual insólita, onde atributos como destemor, ousadia e autoritarismo articulam-se delineando o perfil deste singular homem de negócios.
                
No início do século XX, Delmiro já era uma lenda viva entre os recifenses. O empresário jovem, elegante e charmoso que despontava no mundo dos negócios - recém enriquecido no florescente comércio de couros - causava furor tanto pelo sucesso do moderno centro de comércio e lazer que criara - o Derby -, quanto pela corajosa oposição que fazia ao poderoso grupo político situacionista liderado por Rosa e Silva. Sua tumultuada vida amorosa - alvo de mexericos, escândalos e denúncias na imprensa - não deixava de contribuir para mantê-lo em constante evidência. A retirada para o Sertão de Alagoas longe de ter implicado numa redução do interesse em torno de Delmiro, só veio a reforçar os mitos que já vinham se construindo em torno dele. A construção da usina elétrica no rio São Francisco, da fábrica de linhas de costura - a primeira do Brasil - e do núcleo fabril da Pedra, colocaram-se para seus admiradores como novos indícios dos dotes exemplares que reunia como empresário. Sua morte violenta, assassinado em 1917, aumentaria o interesse pelo personagem, que desde então tem sido tema de numerosos estudos, obras de ficção e homenagens.
                
Delmiro nasceu em 1863, em Ipú, no Ceará. Em 1868, após a morte de seu pai, transferiu-se com a família para Goiana, em Pernambuco, e em 1872, para o Recife, onde começou a trabalhar em 1878, após a morte de sua mãe. Nesse ano, empregou-se como cobrador na Brazilian Street Railways Company, onde exerceu, em seguida, a função de Chefe da Estação de Caxangá, no Recife. Em 1881, era despachante em armazém de algodão. Dois anos depois, exercia a função de intermediário entre comerciantes do interior e firmas exportadoras de peles e algodão - Herman Lundgren e Rossbach Brothers. De empregado da filial no Recife do curtume americano Keen Sutterly & Co., em 1892, passou a gerente no ano seguinte. Simultaneamente, desde 1891, estabeleceu - inicialmente em sociedade com o inglês Clément Levy - um armazém de compra e exportação de courinhos (peles de cabra e bode). Nos últimos anos dessa década, detinha o monopólio deste comércio no Recife e partia para outros empreendimentos paralelos. Em 1899, assumiu a direção da Usina Beltrão - uma fábrica de refino de açúcar - e inaugurou o Derby - um centro de comércio, serviços e lazer que incluía mercado, hotel, velódromo e pavilhão de diversões. Em 1900, conflitos políticos entre Delmiro e governantes pernambucanos resultaram no incêndio do Mercado do Derby pela polícia e na inviabilização da Usina Beltrão e da própria permanência de Delmiro no estado. Em 1903, Delmiro tornou-se proprietário de uma fazenda em Pedra, no Sertão de Alagoas, na qual centralizou seu comércio de peles. Em 1913, construiu uma usina hidrelétrica junto à Cachoeira de Paulo Afonso, para fornecer energia à fábrica de linhas de costura que inaugurou no ano seguinte, em Pedra. Com a fábrica, criou no interior da fazenda um núcleo fabril dotado de habitações, comércio, hotel, escolas e equipamentos de lazer. Em 1917, foi assassinado em Pedra.
                
Coerente com a postura adotada por muitos industriais adeptos e difusores da ética do trabalho, Delmiro procurou incorporar à sua imagem empresarial a figura de um trabalhador infatigável. O trabalho era enaltecido por Delmiro que, através dele, procurava explicar seu sucesso nos negócios e a origem de sua rápida fortuna. Em artigo de 1898, Delmiro lançou mão da idéia de trabalho para responder às críticas de seus adversários políticos no Recife, que lançavam dúvidas quanto à probidade de seus negócios:

"Enquanto elles viviam pelas ruas, cafés, casas de pensão, restaurants, trens e mesmo em seus escriptórios, onde à falta de trabalho passam o tempo a se occupar da vida alheia, eu estava no labor do meu negócio, externuando-me na verdadeira lucta pela vida, afim de conseguir o que tanto hoje os incommoda" (GOUVEIA, 1 jan. 1898, 2).

Procurando rebater insinuações acerca do mistério que cercou seu breve trajeto de vendedor de bilhetes de trem até próspero comerciante, Delmiro argumentava: "O que medeia entre essa humillissima posição e a de um industrial util á minha patria, que sou hoje, é apenas uma pagina de trabalho" (GOUVEIA, 7 jul. 1899, 4). Delmiro contrapunha o trabalho ao ócio e a formas de obtenção de recursos que tratava com desprezo, tais como o jogo, a usura e a bajulação:

"Fiquem certos esses calumniadores de officio que não ganho nem estrago dinheiro em jogatinas; não empresto a juros de vinagre; não sirvo de capacho, de limpa botas de quem está acima de mim em posição ou vantagens (...)" (GOUVEIA, 5 jan. 1900, 2).

Coerente com a glorificação do trabalho que ganha adeptos nas classes dominantes - percorrendo o pensamento burguês, o ideário positivista, o catolicismo social, doutrinas puritanas e evangélicas -, Delmiro elege o trabalho como o principal atributo moral dos indivíduos. Vê no trabalho um sinal de personalidade bem formada do ponto de vista moral, um indício de honra, perseverança e energia. Ao trabalho, por outro lado, atribui a capacidade de engrandecimento do indivíduo, pelo enobrecimento moral e pelo acesso a bens materiais. O elogio do mérito individual e a noção de igualdade de oportunidades, outros dos princípios do pensamento liberal, são também mobilizados por Delmiro para explicar sua trajetória no mundo dos negócios, revidando críticas quanto à lisura de seus negócios feitas por adversários:

"Si elles tivessem no sangue, nos nervos, nas faces, vergonha, e no organismo alguma coisa de energia e sentimento, deviam orgulhar-se de haver um homem do povo, pobre porém trabalhador, capaz de mostrar-lhes com exemplos que quem lucta pela vida com honradez, actividade e perseverança, póde conseguir uma posição na sociedade e, em vez de andarem pelas ruas, cafés, trens e esquinas empregando-se na maledicência, podiam dedicar-se ao trabalho proveitoso, que nobilita o homem e dá-lhe sempre o direito de confundir seus inimigos gratuitos" (GOUVEIA, 1898, 2).
               
Ao lado do trabalhador, outro atributo que costuma ser associado à imagem empresarial de Delmiro é o de nacionalista. As bases para a construção desta noção foram lançadas pelo próprio industrial na década de 1910. Mobilizando uma argumentação em que procurava associar os interesses da indústria aos da Nação e sentimentos nativistas e cívicos que se propagavam no País na década de 1910, Delmiro apelou para idéias nacionalistas na promoção da fábrica de Pedra e no pleito de concessões e incentivos públicos. Obteve junto ao Governo de Alagoas amplas concessões que incluíram o direito de posse de terras devolutas, a isenção de impostos para a fábrica, a permissão para captar energia elétrica da Cachoeira de Paulo Afonso e recursos para financiar a construção de cerca de 520 quilômetros de estradas, ligando Pedra a outras localidades. Mobilizou ainda argumentos de cunho nacionalismo no intuito de sensibilizar os consumidores a darem preferência à linha "Estrela" fabricada em Pedra, em detrimento das fabricadas por empresas estrangeiras. A geração de empregos para brasileiros, a utilização de matéria-prima nacional e a quebra de monopólios eram os argumentos usados em anúncio veiculado na imprensa:

"Nossa Fábrica ocupa 2.000 operários brasileiros e nossa linha é fabricada com matéria prima exclusivamente nacional. Esperamos que o público não deixará de comprar a nossa linha, de superior qualidade, para dar preferência a mercadoria estrangeira ou com rótulo aparente de nacional. Se não fôsse a linha "Estrêla" o preço de um carretel estaria por 500 réis ou mais; o público deve o benefício do barateamento dêste artigo de primeira necessidade, à nossa indústria" (MENEZES, 1963, 134-135).

A intensa disputa de mercado entre Delmiro e a Machine Cotton, fabricante da linha "Corrente" contribuiu para convertê-lo em um dos símbolos mais fortes da causa nacionalista em todo o País. Matéria do Jornal do Commércio do Recife, de 1922 - reproduzida pelo Correio da Pedra - mostrava a fábrica da Pedra como elemento de soberania nacional:

"A importante fabrica de linhas, que era o inicio daquelle faustoso emporio industrial ahi está produzindo em franca e vantajosa competencia com suas similares, pondo-nos á salvo da tutella pesada do estrangeiro" (Correio da Pedra, 22 out. 1922, 1).

A disputa entre a Machine Cotton e a fábrica da Pedra se estendeu por longos anos, tendo-se acirrado na década de vinte. Esta concorrência acirrada levou a Fábrica da Pedra a sucessivos prejuízos no tocante à fabricação de linhas de coser, apenas parcialmente compensados pelos lucros decorrentes da produção de fios industriais. Em 1926, o Presidente Artur Bernades assinou o Decreto N. 17.383, elevando a taxa de importação sobre as linhas de coser. O Decreto, no entanto, foi revogado dois anos depois pelo Presidente Washington Luís, motivado, inclusive, por pressões do Embaixador e de banqueiros ingleses, que qualificavam o Decreto de ato de hostilidade comercial. Após haver tentado, sem sucesso, comprar Pedra a Delmiro, a Machine Cotton, em 1929 - 12 anos após a morte deste -, realizou seu intento de tirar a fábrica da Pedra da produção de linhas. Para tanto, a Machine Cotton adquiriu dos então proprietários de Pedra (os irmãos Menezes, também donos da Fábrica Têxtil de Camaragibe, em Pernambuco) as marcas registradas das linhas e os maquinismos específicos para sua fabricação. Pelo acordo, Pedra permaneceria fabricando apenas fios industriais; seus proprietários não poderiam por dez anos participar direta ou indiretamente de negócios relativos à fabricação de linhas ou venda de fios para a fabricação por terceiros. À aquisição, seguiu-se a destruição das máquinas, aniquiladas a golpes de picareta e atiradas ao Rio São Francisco. A violência deste gesto e a agressividade da disputa de mercado por parte da fábrica escocesa deram subsídios para que Pedra fosse convertida em marco da luta contra o imperialismo. No mesmo sentido, procurou-se converter Delmiro Gouveia em mártir da causa nacionalista. Embora fosse então amplamente aceito que seu assassinato houvesse sido conseqüência de disputas com coronéis de cidades vizinhas, progressivamente dúvidas foram sendo lançadas sobre suas causas. A Machine Cotton foi incorporada ao rol dos suspeitos por uns, por outros acusada de haver promovido o assassinato.

CONTINUA...


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DELMIRO GOUVEIA - Parte II

Por: Telma de Barros Correia (Profa. Dra, SAP-EESC-USP)

A TRAJETÓRIA DE UM INDUSTRIAL NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Derby e Pedra

Ao longo de sua trajetória empresarial Delmiro construiu ainda uma reputação de empresário ousado e inovador. Três de seus empreendimentos - o Derby, a usina hidroelétrica em Paulo Afonso e a fábrica e vila operária da Pedra - evidenciam tais atributos.

O Derby foi um centro comercial e de lazer - que incluía mercado, hotel, cassino, velódromo, parque de diversões e loteamento residencial - inaugurado no Recife em 1899. Depoimentos de observadores da época revelam a admiração causada pelo Derby junto a segmentos da população do Recife, e o orgulho diante deste empreendimento que parecia colocar a cidade em sintonia com o que havia de mais moderno e de bom gosto no mundo de então. O Derby surgia como expressão de progresso e civilidade, como um local ameno que ornava e dignificava a cidade, como um centro de diversões modernas que trazia ao Recife os prazeres inéditos produzidos com o auxílio da técnica e da ciência.

Tal admiração era compartilhada por viajantes. Quando trata de Pernambuco no livro "The New Brazil", publicado em 1901, a escritora americana Marie Robinson Wright confere uma relevância especial ao Derby - que visitou em outubro de 1899 -, ao qual reserva três das doze ilustrações do capítulo e um último parágrafo bastante elogioso:

"Muitos estrangeiros visitam o porto de Pernambuco todo ano, e não é raro ver meia dúzia de nacionalidades representadas nos hotéis de seus atraentes subúrbios, especialmente no Derby, que é um dos mais pitorescos lugares que se pode imaginar, com bonitas casas, sombras de arvoredos, leve movimento das águas do rio, pequenas pontes artísticas semi-enterradas na vegetação das margens, e canoas alegremente pintadas deslizando na superfície da água. Este subúrbio goza da distinção de possuir um dos melhores hotéis da América do Sul; o Hotel do Derby é perfeitamente moderno em todos os sentidos e orientado por um padrão metropolitano de serviço. O mercado do Derby é um dos maiores estabelecimentos do seu tipo, no Brasil, e está equipado para os amplos negócios que diariamente são nele realizados. O subúrbio deve seu aspecto atraente à empresa de um cidadão muito progressista, Senhor Delmiro Gouveia, o proprietário, que tem pessoalmente dirigido tudo em sintonia com o desenvolvimento do empreendimento" (WRIGHT, 1901, 314).

Uma estratégia agressiva de propaganda e de promoção do local, através da imprensa, buscava colocá-lo em evidência e firmá-lo como ponto de encontro de "famílias distintas" e local de diversões moralizadas e modernas.

Algumas singularidades diferenciavam o Mercado do Derby dos mercados brasileiros da época, aproximando-o do conceito do shopping center atual. Era um empreendimento privado e voltado, inclusive, para o comércio de produtos sofisticados. Lá, além dos artigos usualmente comercializados nos mercados na época como os alimentos, se vendia gelo, todos os jornais diários, artigos para fumantes, havia filial da Livraria Francesa, perfumarias, lojas de tecidos, de calçados, de louças, de miudezas, entre outras. Sua localização fora do centro da cidade, em área cercada por rios e mangues, garantia um isolamento espacial, coerente com a busca de um ambiente autônomo e com lógica própria, ideal para favorecer as compras e longe de tudo que possa dificultá-la - o barulho e o movimento das ruas, a falta de segurança, as intempéries naturais. Bondes de bagagem, ligando o Derby a outras localidades, trafegavam pela manhã para atender aos usuários.
            
No Derby o consumo era promovido como espetáculo, distração, aventura e prazer, utilizando-se diferentes estratégias que pretendiam absorver o vigor dos jovens, os anseios dos entusiastas do progresso e a vida social das famílias. Os proprietários empenhavam-se em colocar a diversão como finalidade do empreendimento. Ao Derby, procurava-se ligar a idéia de progresso, distinção, status e bom gosto. O prédio - com sua higiene, bom gosto, luxo, conforto, iluminação elétrica com uso cenográfico amplamente explorado e localização em área "aprazível" à margem do rio Capibaribe - surgia como uma atração em si. O "magnifico pessoal" que atendia os clientes, a música e a variedade de comidas, bebidas e jogos completavam o espetáculo proposto por este "Centro de Diversões". Na busca atrativos para o local, a técnica constituía-se em outro dos principais elementos mobilizados. "Suas maravilhas" foram alardeadas - a magia da luz elétrica, os "quadros surprehendentes" do cinema e as engrenagens complicadas e caras dos novos aparelhos de diversão - e exibidas, com ampla publicidade, no local. Com o título "Paris no Derby", organizou-se no mercado "um pavilhão para exhibição de diversos apparelhos electricos de diversões" (Jornal Pequeno, 11 set. 1899, 2).
             
A difusão da prática de esportes modernos, na qual segmentos da população urbana buscavam sinais de distinção social, foi largamente mobilizado, no Derby, pela promoção de jogos e atividades esportivas, tais como corridas de bicicleta (com casa de apostas), regatas, apresentações de ginástica, jogos de bilhar, dados e dominó, tiro ao alvo, boliche e corridas de pedestres. Também se promoveu apresentações musicais (bandas militares, colegiais e de sociedades musicais, orquestras, concertos individuais), carrossel, queima de fogos de artifício, sorteios, exposições, exibições de filmes e peças teatrais. No Derby, festas tradicionais foram recriadas: a missa se desloca do recinto da igreja para o templo do consumo, incorpora as grandes massas, mistura-se às formas novas de diversão. As comemorações do Natal de 1899 se deram entre missa campal, salva de tiros e corridas de ciclistas. Matérias de jornal noticiavam as grandes multidões - de até oito mil pessoas, segundo matéria no Jornal Pequeno - que acorriam ao Derby, elas próprias mostradas como um espetáculo à parte (Jornal Pequeno, 27 dez. 1899, 2). Com este atrativo chamado ao prazer, buscava-se estender o consumo às horas livres, comprometendo as noites e os dias santificados com a atividade.
            
A concepção do Derby foi favorecida pela divulgação de experiências européias e americanas, através, sobretudo, de revistas especializadas e de exposições da indústria. Delmiro Gouveia visitou a Exposição Universal de Chicago, de 1893, evento no qual teria encontrado inspiração para a concepção do Derby, cujo mercado revela particular inspiração no Fisheries Building, projetado para a Exposição de Chicago por Ives Cobb.
            
Mais dignos de admiração, entretanto, revelaram-se os empreendimentos da usina de Paulo Afonso e de Pedra, realizados em regiões distantes e até então pouco acessíveis do Sertão. Plínio Cavalcanti, em artigos e conferência, narrou a epopéia, comandada por Delmiro, que teria representado a construção da usina hidrelétrica: o transporte das imensas máquinas até o sertão através de estradas precárias e de abismos, superando o descrédito, o desânimo e o temor de auxiliares (CAVALCANTI, 1927). Em relatos de contemporâneos acerca de Paulo Afonso, revela-se o profundo impacto causado pela grandiosidade da cachoeira - sua beleza sublime em meio à fúria dos elementos - e o júbilo ante a possibilidade de sujeitá-la aos imperativos do progresso. O filme "A Cachoeira de Paulo Affonso e a Fábrica de Linhas da Pedra", que estreou no Recife, em 1923, centra seu enfoque na contraposição entre a força da cachoeira e força ainda maior da técnica que ousou submetê-la a uma utilidade prática (Correio da Pedra, 12 ago. 1923. p.1).
            
Mas nenhum dos empreendimentos dirigidos por Delmiro despertou mais entusiasmo e admiração que a fábrica e a vila operária da Pedra. Para Assis Chateaubriand Pedra surge como uma reversão heróica das contingências do meio, como uma dupla vitória sobre os elementos e sobre a essência do sertanejo. Sublinhando a paisagem seca e desolada e as violentas variações de temperatura, o autor enfatiza a hostilidade do ambiente natural da região de Pedra e seu poder avassalador sobre o indivíduo. Em face da visão de uma natureza sem freios, diante de cujas forças imensas e ferozes o homem se sente ameaçado e impotente, a ação de Delmiro em Pedra surge como um vigoroso embate da técnica e da razão contra os elementos (CHATEAUBRIAND, 1990). Neste confronto, demonstrando um poder que seus contemporâneos vêem como inelutável, a técnica suplanta aos seus olhos, uma a uma, todas as até então consideradas invencíveis resistências que, acreditava-se, a natureza inóspita do Sertão impunha à penetração do progresso e da civilização no seu território.
            
Na luta para subjugar esta natureza, vê-se a técnica aliada à tenacidade de Delmiro. Transpor a distância do litoral a Pedra, suplantar a fúria das águas da cachoeira, ultrapassar seus abismos e íngremes encostas, desbravar a vegetação agressiva, vencer a resistência do rígido arenito do subsolo e sobre ele levantar cidade, pomares e jardins, tudo isto sob um sol escaldante, um clima seco e um calor asfixiante, era visto como um empreendimento heróico. Tal empreendimento, considerava-se, além de conhecimentos técnicos, exigia muito de entusiasmo, autoconfiança, força de vontade, liderança, teimosia e audácia.
            
Pedra foi edificada ao longo de 14 anos. Em 1903, quando Delmiro chegou ao lugar, era um pequeno povoado às margens da Ferrovia Paulo Affonso, no Sertão de Alagoas. Junto a este povoado, Delmiro comprou uma fazenda onde construiu currais, açude, uma residência, prédios para abrigar um curtume e, a partir de 1912, uma fábrica de linhas e um núcleo fabril para abrigar seus operários. Em 1917, havia em Pedra cerca de 250 casas, chafarizes, lavanderias e banheiros coletivos, loja, padaria, farmácia e feira semanal, escolas, médico e dentista, cinema, pista de patinação, banda de música, posto do Correio e Telégrafo.
            
A localização de Pedra conciliava demandas referentes a controle social, com uma posição estratégica em relação a meios de transporte e a fontes de matéria-prima e de energia. Sua localização era estratégica em termos econômicos. Situada a 24 km da Cachoeira de Paulo Afonso, Pedra encontrava facilidades para o uso de energia elétrica e água, captadas no São Francisco, bem como a possibilidade de utilizar o transporte fluvial no escoamento da produção. Sua localização permitia, ainda, a utilização da Ferrovia Paulo Affonso.
            
Pedra foi inteiramente concebida por Delmiro Gouveia e edificada sob seu comando. Revelando uma extrema centralização de decisões, o industrial conduzia pessoalmente todas as obras. Conforme Hildebrando Menezes, "(...) repetia sempre que não queria mestres a orientarem a execução das suas obras. Preferia homens que cumprissem bem as suas ordens e executassem os seus planos" (MENEZES, 1991, 71). Segundo Arno Pearse, que lá esteve em 1921, tratava-se de "(...) uma cidade especialmente construída, onde as casas são espaçosas e a arquitetura e o plano da cidade modernos" (LIMA JÚNIOR, 1963, 206). Todos os operários da fábrica - com exceção dos rapazes solteiros sem família no local - moravam em casas de alvenaria, alugadas ou cedidas pela fábrica.
            
Coerente com a lógica que presidiu a concepção de núcleos fabris, Pedra foi concebida como um lugar do trabalho; como um espaço pensado para favorecer a produção de mercadorias e a reprodução de uma força de trabalho capacitada para o trabalho industrial e conduzida para respeitar o patrão e suas propriedades. Como uma extensão da fábrica, o núcleo existia para ela. Pedra foi estruturada como um meio onde todas as circunstâncias se atrelavam à produção, onde tudo conspirava para converter o morador em indivíduo previdente, ordeiro, metódico, trabalhador e obediente. Tal esforço comportou ações voltadas para o controle do movimento das pessoas e dos contatos entre elas, para a supervisão do consumo, para a introdução de novas formas de perceber e gerir o tempo, para a promoção do lazer regrado e da educação, para a alteração de hábitos e dos cuidados com o corpo e com as casas. A fixação de normas determinando horários para as diversas atividades, prescrições morais, regras de higiene, proibição do consumo de bebidas e interdição de hábitos considerados impróprios e maneiras julgadas indecentes ou insolentes foram algumas das medidas adotadas. Neste projeto de construção de um novo trabalhador, estratégias de convencimento foram acompanhadas por medidas puramente repressivas.
            
A obediência às normas e regulamentos que regiam a vida em Pedra era apoiada por uma vigilância sobre cada pessoa, exercida por vigias, vizinhos, chefes, professoras e pelo próprio patrão. Para evitar situações favoráveis à contravenção às rígidas normas impostas e reprimir os infratores, uma guarda privada e o próprio industrial realizavam uma inspeção constante, percorrendo as dependências da fábrica, as ruas, os locais de lazer, a feira e as moradias. Segundo Adolpho Santos:

"Todos os dias, pela manhã, invariavelmente, Delmiro fazia demorado passeio de fiscalização pela vila operaria, aconselhando uns, repreendendo os faltosos, impondo costumes de educação domestica, verdadeira romaria de evangelizador exercendo a catequese de civilização naquele centro semi-bárbaro" (SANTOS, 1947, 37).

A limpeza das casas e das ruas e a higiene dos moradores eram enfatizadas na gestão do lugar, tanto através de severos regulamentos, quanto da criação de serviços de abastecimento d'água e esgotamento sanitário. Todas as moradias eram abastecidas por energia elétrica, gerada na usina construída por Delmiro na Cachoeira de Paulo Afonso. As casas de Pedra impressionavam os visitantes pela regularidade e asseio. Salomão Filgueroa apontava nessas casas a "(...) rigorosa uniformidade de estylo na construcção e absoluta hygiene" e Plinio Cavalcanti dizia serem "irreprehensivelmente limpas" (FIGUEROA, 1925; CAVALCANTI, 1927, 51). O asseio rigoroso das ruas e das casas e a brancura das construções - a fábrica fornecia cal e exigia a pintura regular das moradias - foram enfatizados, também, por Assis Chateaubriand, que esteve em Pedra em 1917:

"Antes de tudo, falo do asseio. É irrepreensível. Dentro e fora da fábrica, individual e coletivo. A vassoura é ali uma instituição. Tudo é escovado, brunido, polido. Não vi em parte alguma por onde tenho andado (...) limpeza tamanha e tão rigorosa. (...). Nas ruas seria impossível encontrar um cisco, um pedaço de papel atirado ao chão. Aqui e ali se vêem os barris para coleta dos papéis servidos. As carrocinhas passam e vão esvaziando-os (...). Passa-se como passamos várias vezes por aquelas calçadas extensas e não se vê uma mancha, um sinal de cuspe no chão. É tudo lavado, varrido, escovado” (CHATEAUBRIAND, 1990, 65-69).

Em Pedra, Delmiro Gouveia - não é à-toa que era chamado coronel - colocava-se simultaneamente como patrão e líder político local. Ao mesmo tempo em que se opôs a qualquer interferência, em Pedra, dos coronéis da região, criou todo um aparato policial e administrativo próprio. Vigias, guardas e funcionários o auxiliavam no controle da ordem e na administração do núcleo. À frente de tudo estava Delmiro: única autoridade local. Hildebrando Menezes conta que, em Pedra, Delmiro era "(...) extremamente absorvente, sómente êle mandava" (MENEZES, 1991, 97). Lima Júnior relata que Delmiro costumava prevenir os récem-admitidos na fábrica que "(...) na Pedra, ele era tudo: Deus, o Diabo, a mais alta autoridade" (LIMA JÚNIOR, 1963, 315).
          
A vida cotidiana e o trabalho na fábrica eram orientados por normas concebidas por Delmiro. Extremamente apegado a regulamentos, estabeleceu, inclusive, um para seus hóspedes. Na fábrica, a regra fundamental era a busca constante de aperfeiçoar o produto, exprimida em norma escrita pelo industrial:

"Quem manufatura nunca esta fazendo bem feito de mais.
Por mais minunciosa e bem cuidada, nunca a fiscalização é suficiente e completa.
Nunca se conseguirá ser tão asseado quanto se deveria.
Jamais se poderá dizer que o produto é irrepreensível, ou livre de defeito.
Enfim, todos os dias deve-se cuidar do melhoramento do produto.
Não seguindo estes conselhos, tudo baqueará" (LIMA JÚNIOR, 1963, 152).

A norma essencial em Pedra - tão evidente que nem precisava constar de regulamentos - era a obediência à vontade do patrão. Lauro Góes conta que, antes de assinar o contrato para trabalhar no escritório da fábrica, foi alertado por Delmiro: "Aqui o empregado tem que fazer tudo que eu mandar, seja qual for o serviço, serve?" (GÓES, 1962, 3).
            
Os operários de Pedra eram, na sua quase totalidade, originários do próprio sertão. A maioria compunha-se de flagelados da seca de 1915. Outros eram pessoas foragidas em função de intrigas e conflitos, as quais chegaram ao local recomendadas por amigos de Delmiro, ou tendo recorrido diretamente ao industrial.
            
Nos regulamentos que regiam a vida local uma atenção especial era dispensada ao controle dos operários solteiros, sobretudo àqueles sem família no local. Moravam em pensões fora do núcleo - na Pedra Velha - e tinham seu acesso a este - principalmente o contato com as operárias - rigidamente controlado pelos vigias. Tratados como problema de ordem pública, os rapazes solteiros estavam proibidos de freqüentar as casas das famílias operárias. No cinema, homens e mulheres sentavam-se em locais separados, mesmo que fossem casados, enquanto as crianças também tinham um lugar reservado nas primeiras filas. Segundo Lauro Góes, Delmiro costumava repetir: "(...) não admito que funcionário nosso abuse das operárias". Ao tomar conhecimento de que "abusos" desta ordem estavam ocorrendo, Delmiro exigia o casamento (GÓES, 1962, 28 e 12). Para Assis Chateaubriand, Delmiro teria confidenciado:

"A maioria dos rapazes do escritório são solteiros e filhos de famílias de gente da burguesia alagoana e pernambucana. Se mexerem com as meninas operárias, não tem conversa, caso-os no dia seguinte. Nestas condições, evitemos complicações futuras. Queremos o mínimo de convivência entre os dois escritórios e a vila operária" (CHATEAUBRIAND, 1963, 3).

A fábrica exercia um controle rígido sobre o que era comercializado, regulamentando a venda de bebidas alcoólicas e proibindo a de produtos como armas, xales e cachimbo. Delmiro procurava combater formas de consumo julgadas incompatíveis com o salário e a posição dos operários. Assim, estabeleceu prêmios para as operárias que se vestissem melhor e de forma mais barata, buscando incentivar o gosto pela aparência, porém, combatendo "os hábitos suntuários das mulheres" (CHATEAUBRIAND, 1990, 68).
            
O tempo livre e as formas de lazer dos moradores de Pedra também eram objeto de atenção do industrial. Havia o cassino onde se realizavam bailes e sessões de cinema; havia banda de música, pista de patinação, parque de diversões e futebol. O "rink" era o local que concentrava parte destas atividades, definidas por Assis Chateaubriand como "prazeres honestos" (CHATEAUBRIAND, 1990, 66). Aos domingos, havia ainda retretas, cinema e carrossel. A fábrica promovia e incentivava o carnaval, oferecendo fantasias para os blocos e organizando bailes. Formas usuais de divertimento na época, como o jogo de azar, a caça e o jogo do bicho, eram proibidos (MARTINS, 1989, 122). Sobre a proibição à caça, Delmiro - em consonância com a idéia da preguiça como atentado à economia e à razão - afirmava: "Obtenho dois resultados com isso, ensino-os a serem dóceis com os animais e combato a vagabundagem. O caçador aqui é um preguiçoso" (CHATEAUBRIAND, 1990, 69).
            
A rotina das crianças também era fiscalizada com cuidado. Havia um controle rígido sobre a freqüência às escolas, tendo sido estabelecidas multas para os pais que não conseguissem justificar as faltas dos filhos. Regulamentos, vigilância severa, multas, castigos e humilhações eram os instrumentos básicos utilizados para mudar características originais dos moradores, impondo novos padrões de higiene, de vestir e de boas maneiras. As normas, em Pedra, também eram rígidas em relação aos modos de conduta dos moradores. Puniam-se atos considerados de incivilidade, como jogar papel ou cuspir no chão, riscar paredes e fumar cachimbo. Às moças era proibido fumar em público. Para os que infringiam as normas reservavam-se punições exemplares que iam de reprimendas públicas, multas e castigos corporais à expulsão do núcleo. A ordem tida como exemplar - e tantas vezes elogiada - de Pedra fundamentava-se nesta profunda ingerência sobre a vida privada dos moradores, configurada um despotismo radical do patrão sobre seus operários.