By: Rostand Medeiros
Amigos leitores deste simples blog que busca divulgar um pouco de história, vamos puxar um pouco pela imaginação para contar uma incrível façanha.
Imagine se você fosse convidado a ir para Portugal para participar de uma aventura aérea.
Aparentemente parece um interessante convite. Mas imagine que quem lhe chamou para esta empreitada lhe informa que a viagem aérea será em direção ao Brasil, atravessando o Oceano Atlântico em um hidroavião monomotor, onde além de você seguiria apenas mais uma pessoa.
A aeronave em questão seria construída principalmente de madeira e coberta com lona. Vocês iriam viajar sem GPS, sem radiocomunicação e sistemas de navegação modernos.
Hidroavião monomotor FAIREY F III-D MKII - Fonte - Coleção do autor
Para não se perderem na imensidão do mar, o principal instrumento seriam réguas de navegação, que são utilizadas pelos homens do mar desde sei lá quando. Afora isso o instrumento mais sofisticado seria um sextante de navegação adaptado para ser usado em um avião.
Para ajudar haveria apenas a certeza que no meio de um dos maiores e mais poderosos oceanos da Terra, haveria três navios ao longo do caminho para dar uma força.
Detalhe, a máquina alada desenvolveria uma velocidade de cruzeiro de “estonteantes” 115 quilômetros por hora (Meu carro 1.0 faz mais do que isso brincando, sem forçar o motor).
E aí, você toparia esta parada?
Eu acho que não!
Mas em 1922, dois portugueses de fibra e coragem toparam encarar o desafio e conseguiram vencer esta dura empreitada.
Sacadura Cabral - Fonte - Coleção do autor
Em 30 de Março de 1922, o hidroavião monomotor FAIREY F III-D MKII, com Artur de Sacadura Freire Cabral como piloto e Carlos Viegas Gago Coutinho nas funções de navegador, decolou do Rio Tejo, em Lisboa, com destino ao Rio de Janeiro.
Foi uma empreitada duramente planejada. Gago Coutinho inclusive havia criado, e empregaria durante a viagem, um instrumento chamado horizonte artificial, que era utilizado em conjunto com um sextante de navegação, para determinar o ângulo ou a inclinação de um corpo em relação ao horizonte. Com isto era estabelecido com uma linha, ou plano paralelo, a altura dos astros. Era uma invenção que revolucionou a navegação aérea à época.
Cinco dias antes (a 25 de Março) zarparam da capital portuguesa os navios de guerra “República”, “Cinco de Outubro” e “Bengo”, que iriam prestar assistência ao voo.
A travessia realizou-se em várias fases, no intervalo das quais os hidroaviões eram assistidos. Contudo, consideram-se quatro etapas na viagem, devido a problemas mecânicos, condições naturais adversas e foram utilizados três hidroaviões.
Manchete do "Diário de Pernambuco, edição de 31 de março de 1922, informando sobre a decolagem do avião de Cabral e Coutinho - Fonte - Coleção do autor
A primeira etapa da viagem decorreu sem maiores percalços, durando 8 horas e 17 minutos de Lisboa até Las Palmas da Grã-Canária, embora tenha sido notado pelos tripulantes um excessivo consumo de combustível. Das Canárias os dois aeronautas portugueses voaram para Guando, a fim de conseguirem melhores condições de descolagem. Todavia o traçado do percurso teve ainda de ser revisto porque a quantidade de combustível não seria suficiente para um voo sem escala de Cabo Verde a Fernando Noronha.
A segunda etapa teve início na madrugada de 5 de Abril, da ilha de Guando, alcançando São Vicente de Cabo Verde após 10 horas e 43 minutos, amerissando em mar calmo e sem dificuldades. Apesar do sucesso destas duas primeiras fases de voo do avião batizado como “Lusitânia”, perceberam os tripulantes ser praticamente impossível um voo direto entre São Vicente e o Arquipélago de Fernando de Noronha, devido aos elevados consumos de combustível. Perante a vontade de continuar a viagem e provar a precisão do voo aéreo, bem como a cientificidade dos instrumentos utilizados, Gago Coutinho e Sacadura Cabral decidiram fazer escala nos Penedos de São Pedro e São Paulo, onde o “República”, cruzador da marinha portuguesa, lhes prestaria assistência.
Na terceira etapa da viagem, cuja partida ocorreu em 18 de Abril, persistiam as dificuldades a nível do combustível e o vento não ajudava numa decolagem mais rápida do avião. Apesar disto, o voo ocorreu sem maiores problemas e a precisão dos cálculos de Gago Coutinho permitiu que o avião iniciasse a sua descida até aos penedos quando apenas restavam dois a três litros no tanque.
Foi realizado um pouso forçado sobre um mar com muitas ondas e um dos flutuadores foi arrancado no choque. Na sequência o hidroavião se inclinou para bombordo e começou a afundar. Os tripulantes do cruzador “República” socorreram os aviadores, salvando também livros, o sextante, o cronómetro e outros instrumentos. Em seguida Gago Coutinho e Sacadura Cabral foram levados para Fernando Noronha.
Para perpetuar o ocorrido, os aviadores deixaram nos Penedos de São Pedro e São Paulo uma placa de chapa de ferro, onde está cravado a letras de latão: “Hidroavião Lusitânia – Cruzador República”.
A Nação portuguesa entrou em delírio e o clima emocional levou o Governo a enviar outro avião, oferecido pelo Ministério da Marinha.
Durante estes contratempos, os dois heróis ficaram ancorados em Fernando de Noronha, a bordo do “República”, onde decidiram que a nova etapa não devia iniciar naquela ilha, sendo preciso voltar atrás e sobrevoar os Penedos de São Pedro e São Paulo e depois seguir o rumo ao Brasil.
Cruzador português "República" - Fonte - Coleção do autor
O novo Fairey, levantou voo da ilha de Fernando Noronha, na manhã de 11 de Maio.
O voo prosseguiu sem maiores problemas, mas, após sobrevoar os Penedos e já em direção ao Brasil, o motor parou. Eles então realizaram uma amerissagem de emergência.
Embora esta tenha sido perfeita e em mar calmo, a longa espera por auxílio teve como consequência uma situação mis complicada, na qual entrou bastante água em um dos flutuadores, fazendo o aparelho afundar lentamente O comandante do “República” solicita que o cargueiro britânico “Paris-City”, da empresa Reardon Smith Line e comandado pelo capitão Albert Edward Tamlyn, em rota de Cardiff, Escócia, para o Rio de Janeiro, que socorra os aviadores.
Mais uma vez os pilotos foram resgatados e, consequentemente, louvados na sua pátria. Diante da situação, o Governo Português foi novamente procurado para enviar outro avião e não teve como negar, pois os dois aviadores haviam se tornado heróis nacionais.
A quarta e última etapa teve início com o envio do Fairey batizado na sua esquadrilha com o número 17, o único de que dispunha a Aviação Naval Portuguesa. Era uma aeronave com uma autonomia mais reduzida do que os outros, mas considerado suficiente para que a viagem prosseguisse até ao Rio de Janeiro.
No dia 5 de Junho, Sacadura Cabral e Gago Coutinho levantaram voo de Fernando de Noronha e iniciaram o final desta histórica e gloriosa viagem, já sem quaisquer problemas ou incidentes mecânicos. Logo os aviadores chegariam a Recife.
Enquanto os heróis lusitanos seguiam em sua viagem épica, a pequenina Natal, capital potiguar que a época não tinha sequer 35.000 habitantes, acalentava o sonho de ser pela primeira vez sobrevoada por uma máquina “mais pesada do que o ar”, como eram descritos os aviões no começo do século XX.
Mas Natal não teve este privilégio. Entretanto a sua população não deixou de comemorar.
Edição de sexta feira, 9 de junho de 1922, do jornal recifense “Diário de Pernambuco”, sobre as comemorações em Natal - Fonte - Coleção do autor
Segundo a edição de sexta feira, 9 de junho de 1922, do jornal recifense “Diário de Pernambuco”, segundo informações transmitidas pelo seu “Correspondente Especial”, comentou que após a cidade saber que os portugueses haviam chegado ao Recife por volta do meio dia de 5 de junho, os escoteiros do bairro do Alecrim, sob o comando do professor Luís Soares, sairam as ruas da cidade para convidar a população para uma “Passeata Cívica” a ser realizada naquela noite.
Na hora acertada os escoteiros, acompanhados dos alunos da Escola de Aprendizes de Marinheiros e estudantes de outas escolas locais saíram as ruas em direção ao bairro da Ribeira, mais precisamente até a estátua do aeronauta potiguar Augusto Severo, onde houve grande concentração popular. No local ocorreram vários discursos e representando a colônia portuguesa falou o advogado, futuro deputado federal e senador Kerginaldo Cavalcanti.
Após a parte dita oficial, os escoteiros, os aprendizes de marinheiro, estudantes e o povo em geral saíram pelas ruas da cidade acompanhados das bandas da Polícia Militar e do 29º Batalhão de Caçadores, a unidade do Exército Brasileiro que existia em Natal naquela época. Um carro foi conseguido, sendo totalmente enfeitado. Duas jovens natalenses desfilaram no automóvel representando Portugal e o Brasil.
Mesmo sendo o dia 5 de junho uma segunda-feira, que tinha tudo para ser normalmente modorrenta, a chegada dos aviadores lusos a Recife fez a capital potiguar se agitar como não seria normal para aquele dia. O cortejo seguiu até a casa do representante diplomático de Portugal em Natal, o Sr. Antônio Martins e depois foram se concentrar na Praça 7 de Setembro, defronte ao Palácio do Governo. Consta que a festa se prolongou até tarde da noite.
No dia 18 de junho, o jornal natalense “A Republica” estampava na sua primeira página, um belo poema intitulado “Aviador”, produzido por uma das mais importantes poetisas que o Rio Grande do Norte já conheceu, Palmyra Wanderley.
Poema de Palmyra Wanderley aos aviadores lusos –Fonte – Coleção do autor
Depois do descanso na capital pernambucana, Sacadura Cabral e Gago Coutinho seguiram para Salvador, Porto Seguro, Vitória, e, finalmente, Rio de Janeiro, onde o Fairey, batizado de “Santa Cruz”, desce no começo da tarde de 17 de Junho na Baía da Guanabara, levando os portugueses e brasileiros a bater palmas alvoroçadamente e em uníssono.
CARACTERISTICAS DO HIDROAVIÃO FAIREY F III-D MKII
- Material: madeira, revestida em tela
- Comprimento: 10,92 metros
- Envergadura: 14,05 metros
- Altura: 3,70 metros
- Peso vazio: 1800 quilogramas
- Peso equipado: 2500 quilogramas
- Velocidade de cruzeiro: 115 quilômetros/hora
Total: 4527 milhas náuticas, em 62h26m, com velocidade média de 72,5 milhas náuticas por hora
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Extraído do blog: "Tok de História