Por Jerônimo Dix-huit Rosado Ventura
Calem-se
todos! Liana partiu.
Dizem que
quando alguém morre, vira uma estrela. Não foi o caso de Liana. Ela nasceu e
morreu uma estrela.
Quero aqui testificar quem foi este ser, este bólido, que passou pela terra, deixando a sua marca, indelével no coração daqueles que a conheceram.
A despeito de ter se mudado para o Rio de Janeiro quando meu avô era senador da república, não seguiu o modelo de sua classe social vigente. Causou uma disrupção social, tendo como amigos pessoas muito simples, que conhecia em Copacabana. Seus amigos eram os frequentadores das ruas, sejam lá quem fossem. Bastava estar no caminho entre o apartamento e a praia, sua paixão, para se tornar seu amigo. Eram vendedores de sorvete, atendentes da padaria, zeladores de prédios. Também tinha amigos moradores de rua, que muitas vezes ganhavam cobertores, lençóis, alimentos, todos retirados de sua casa, sem sequer perguntar se haveria permissão. Certa vez, presenciei uma cena muito interessante. Era inverno no Rio, morávamos na avenida Copacabana. Minha mãe retornou de uma ida à rua, sem o casaco com o qual saíra. Meu pai lhe perguntou. Nesse frio? Saiu sem casaco? Ela respondeu: é porque dei o meu casaco para um mendigo que passava frio.
Vejam quem foi a minha inspiração! Como não ter como paradigma de convívio humano uma pessoa que não possuía atavios, desprovida de ornamentos sociais? Para ela, pessoas sempre foram pessoas. Nada mais que isso. Quem pintava nossa casa eram os sambistas do morro da mangueira. Seus melhores amigos eram os gays. E imaginem o que era ter a casa cheia de gays nos anos setenta! Alguns diziam a ela: cuidado! Os teus dois filhos vão ser influenciados. Ela respondia: não há influência negativa. Há convívio. Convívio com pessoas de alta sensibilidade, boníssimas e que são meus amigos.
A sua miríade de sentimentos, de condutas, de aceitação, foi o nosso azo moral para nos tornarmos seres sem preconceitos. Nada nos diferenciaria um dos outros: nem raça, nem cor, nem religião e muito menos classe social.
A sua partida partiu o coração de muitos. Mas como não reverenciar e ficar feliz ao ver quem ela foi e o que fez na vida? Ela viveu intensamente cada momento de sua existência.
Ela fez a diferença na vida de muitos. Morou nos Estados Unidos, viajou por quatro continentes, foi destaque de escola de samba. Era uma vanguardista para a sua época. Ela abria as portas, os outros a seguiam. Quem conviveu com Liana, não a esquecerá jamais.
Teve uma vida atribulada. Um descolamento de retina nos anos setenta a tirou uma visão e a deixou permanentemente em busca de preservar a visão remanescente.
Outros problemas físicos surgidos em seu final de vida infirmaram o seu ânimo e a sua alegria.
As mortes do seu filho mais velho e do seu marido por 46 anos com uma diferença de uma semana foi o tiro de misericórdia no seu moral. Desde então uma sequência de mazelas a acometeram. Ela perdeu o brilho e a vontade de permanecer se esvaiu.
Então, Deus resolveu convidá-la a se dirigir à luz. E ela se foi.
Não temos o direito de ficarmos tristes por sua partida. Ela não nos permitiria. Daria aquela bronca tradicional e nos diria como é bom ser alegre, ver a vida pela ótica positiva.
Parafraseando Paulinho da Viola, padrinho de sua neta, ela foi um rio que passou em nossas vidas e nossos corações se deixaram ser levados.
Voe, Liana!
Agora, em sua nova forma de energia, permita àqueles que moram em outras
dimensões verem, como nós vimos, a magnitude de sua alma.
Te amo, mãe!
Jerônimo
Dix-huit Rosado Ventura
Enviado pelo professor, escritor, pesquisado do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com