Por: Rangel Alves
da Costa(*)
O SERTANEJO ANTES DE SE TORNAR CANGACEIRO - IV
Uma vez fixado
no bando, sentido o primeiro espinho rasgando a pele, ouvido o primeiro
zunido do fogo inimigo, outra vida não teria senão aquela. E que vida.
Desconhecer o cansaço, a doença, a fome e a sede para seguir cada vez mais
adiante por entre arvoredos cortantes, espinhos afiados, pedras talhantes e
animais peçonhentos, na fuga apressada pela sobrevivência. Buscar refúgio no
meio do mato ou no coito escondido, e ali dormir ao lado de mandacaru e
xiquexique, ouvindo assustado o zunido da natureza, com um olho aberto e o
outro fechado para que o de repente pudesse acontecer. Era a vida cangaceira.
Era também
vida cangaceira a comida no meio do tempo, a cantoria dolente debaixo da lua, o
proseado saudoso e desiludido, o namoro dentro das moitas, a espera do dia
seguinte, porém sem saber até quando teria o dia seguinte. E a vida da luta
intensa, da guerra desenfreada, dos repentinos confrontos, das armas pipocando
sedentas de sangue, dos gritos de dor, das correrias. E também do silêncio das
tantas mortes. Os corpos esquecidos no meio da refrega, dolorosamente deixados
na correria. Ou a sepultura em terra rasa, no chão ressequido, tendo por cima
uma cruz de galhagem de catingueira. E a vela da lua chorando seus mortos.
Raros eram os
momentos de descanso mais intenso, raros eram os instantes de alegria e
contentamento. Por isso que gostavam tanto quando deixavam as caatingas e
seguiam rumo às fazendas, povoações e cidades, ainda que sempre mais perigoso.
Seria muito arriscado, porém com outro mundo ao redor. Cangaceiro era cabra
apreciador da cantoria, do xaxado, da festança ao ronco do “pé-de-bode”, da
pinga boa e da fumaça do cigarro. Por isso que parecia estar noutro mundo
quando tinham oportunidade de
sentir-se “gente”.
Raríssimos
eram os momentos assim, tudo acontecendo de surpresa e sem muito tempo para
aproveitar. E um instante ou outro de desconcentração não modificava o contínuo
estado de vigilância que deviam manter. Daí tudo ser tão angustiante,
apreensivo, inquietante e doloroso, pois no instante seguinte o fogo já podia
surgir adiante. Urge, então, indagar: Por que tantos filhos sertanejos optaram
por essa vida de imensos sacrifícios e infinitos sofrimentos?
As respostas
são difíceis, e certamente nunca estarão a contento com aquela realidade.
Contudo, algumas observações podem ser feitas para tentar compreender como o
sertanejo via o cangaço e como uma parcela optou por enveredar nas suas
fileiras. Mas tal compreensão nem precisaria analisar tais aspectos em si, bastando
procurar entender como era o sertanejo antes de se tornar cangaceiro.
Visualizada tal situação se torna mais fácil saber por que o homem simples,
violento ou não, rixoso ou vitimado, quase sempre jovem, muitas vezes
empobrecido, um dia resolveu deixar a liberdade do tempo para se tornar
prisioneiro da mata.
Mas como era
aquele sertão onde o cangaço vingou, enraizou e percorreu distâncias? Em muitos
aspectos, o mesmo sertão de hoje, sempre esquecido pelos governantes, relegado
às esmolas de qualquer dia, sempre marcado pelos períodos de estiagens e secas
prolongadas. Mas muito diferente noutros aspectos. A divisão social era tão
visível quanto a fartura do latifúndio e o prato vazio do miserável; a justiça
protegendo “os homens de bem” e a injustiça comandando as demais vidas; a
certeza de que nascer pobre era viver num mundo de desesperança e dor.
Nas regiões
mais afastadas, nas moradias distantes e esquecidas, a pobreza verdadeiramente
se afeiçoava ao bicho do mato. Vivia entocada, sedenta e faminta, praticamente
desconhecendo a realidade do mundo ao redor. Nos dias de feira, acaso o
sertanejo se bandeasse para as povoações de saco nas costas em busca de
adquirir qualquer coisa, logo tomava conhecimento daquela luta travada entre os
bandidos e os mocinhos, entre os cangaceiros e as volantes. E tantas vezes já
havia recebido a visita daqueles homens, já havia sido forçado a matar e
entregar a carne fresca da única criação que possuía.
Por todo lugar
não havia outro assunto que não aquela guerra sertaneja no meio do mato. Um
dizia que o bando de Lampião estava nos arredores, outro afirmava que a polícia
já estava no seu encalço; um defendia com unhas e dentes a luta cangaceira, já
outro afirmava não passar de um monte de assassinos. Mas tudo radicalmente
mudava quando, de repente, o Capitão e os seus cabras despontavam pelo caminho
empoeirado do lugarejo. Então todo ódio se transformava em respeito e toda
aceitação se transmudava em devoção. A maioria agia assim.
Havia medo
sim, o temor imperava, muita gente perdia a fala, desmaiava, se escondia
debaixo da cama ou simplesmente fugia desesperadamente pela janela ou porta dos
fundos, numa correria desembestada, sem destino, por cima de tudo que
encontrasse pela frente. Mas os que ficavam se sentiam verdadeiramente
maravilhados com tudo aquilo que avistavam, com todos aqueles homens com suas
vestimentas e armas, seus chapéus e seus brilhos dourados, seus olhos brilhando
e correndo de canto a outro. O medo, mas também o fascínio; o espanto, mas
também o deslumbramento. Não era só a fama, o ouvir dizer, mas a presença da
cangaceirada e o imenso arrebatamento que provocava entre todos.
Desse modo,
quisesse ou não, o bando de Lampião possuía indescritível atratividade entre os
sertanejos. Para muitos, os cangaceiros eram tidos, comentados e avistados
quase como seres míticos, de outro mundo. E se a ocasião lhes permitisse
presenciar sua passagem ou estadia, certamente que as marcas do encanto se
tornavam ainda maiores, ainda mais fortes. Daí que não é difícil perceber a
força atrativa que o bando de Lampião exerceu sobre o sertanejo.
Do mesmo modo,
e pelos motivos acima descritos, não é difícil compreender porque tantas
meninas e meninos verdadeiramente se apaixonaram por aquela vida errante. Os
meninos em busca de afirmação, de mostrar sua valentia, de experimentar outra
realidade, de sair daquela vida difícil e de empobrecimento. E, pela idade, sem
a exata consciência do que lhes esperava acaso fossem aceitos no bando.
As meninas,
por sua vez, talvez vissem os homens encourados, cabeludos e cheios de adornos,
como os atores novelescos da atualidade. Fascinadas, tomadas de encantamento,
ficavam desejosas de serem olhadas por algum daqueles príncipes das caatingas.
E quando se engraçavam e o cabra respondia o olhar, então não havia família que
pudesse esconder sua cria, não havia como evitar que seguissem pelos caminhos
da luta e do amor. Assim ocorreu nas povoações e nos casebres distantes. Muitas
das mulheres do cangaço saíram ainda meninas de suas residências para se
entregar aos braços quase sem tempo de amar.
O fascínio
provocado pelo jeito de ser e pela vida cangaceira foi o que permitiu a sua
existência por tanto tempo. Havia uma legião de meninos e meninas, sertanejos
de todos os tipos e motivações, querendo seguir o mesmo destino, desejosa de
entrar na mataria para servir ao grande Capitão. E quem seguiu jamais conseguiu
esquecer. Mas pelos motivos dolorosos que todos conhecem.
Mas os bandos
não eram formados apenas por fascinados e sonhadores, nem por jovens
desiludidos ou empobrecidos. Muitos entravam nos grupos por outras motivações.
Tinham em mente o que queriam, eram conscientes do que desejavam combater,
conheciam a realidade que desejavam transformar. Entretanto, talvez não
soubessem da impossibilidade de, apenas através das armas, mudar aquela
realidade moldada pelo poder.
Um rapazinho
de Poço Redondo, por exemplo, conhecido por Zé de Julião, era filho de família
abastada, era alfabetizado, casado, e se vendo diante de tanta barbárie e
atrocidades praticadas pelas forças policiais, de repente resolveu entrar no
bando de Lampião e com ele levou sua esposa. Verdade é que não suportava mais
ver a volante tirando à força a moeda do pobre, chantageando e usando da
violência a cada passo. Testemunhou, por diversas vezes, seu pai ser extorquido
por aqueles homens que diziam agir em nome da lei. Tudo isso rebentou um dia. Tinha
de fazer alguma coisa para combater aquela situação. E assim se tornou
cangaceiro. Na caatinga foi apelidado de Cajazeira e a esposa continuou como
Enedina.
Tal fato
demonstra que não era apenas o encantamento e o fascínio que acabavam
transformando meninos em cangaceiros, mas também a consciência de uma perversa
situação existente e que precisava ser combatida. Se não havia a voz da lei nem
da justiça, então que a luta cangaceira fosse meio de combater todos os
absurdos praticados contra o humilde e pacato povo sertanejo. E de lutas e
inglórias, eis a história.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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http://mendespereira.blogspot.como
http://jmpminhasimpleshistorias.blogspot.com