Do livro
Crônicas Anacrônicas de Francisco Obery Rodrigues
Outra
impressão forte que ficou gravada, de forma indelével, em minhas lembranças de
Mossoró, foi o badalar dos sinos da nossa Catedral.
Ja na infância
ouvia, logo ao amanhecer, seu toque convocando os fiéis para as missas das
cinco: eram três, com intervalos de quinze minutos. Aos domingos, além das
chamadas para a missa das seis, havia as da missa conventual, das nove horas.
Parece que esse costume se acabou, assim como o toque do Ángelus, às seis da
tarde, ao som do qual os católicos se persignavam e rezavam uma Ave Maria.
Em maio,
quando se celebravam, todas as noites, as novenas do mês de Maria, os sinos
tocavam chamando os devotos. No último dia do mês, havia festa da coroação.
Esta tradição parece que também terminou. Em dezembro, na tradicional festa de
Santa Luzia, as duas campas de bronze repicavam festivamente de madrugada,
misturando seus sons com a salva de foguetões, ao meio dia e à noite, durante
dez dias, desde o do levantamento da bandeira até a última noite, dia 13,
feriado, quando seu alegre badalo acompanhava a procissão em todo o seu
percurso, até o encerramento festivo.
Entretanto, o
que mais me marcou foram os tristes dobres de finados. Quando falecia alguém,
era a forma de se divulgar o fato. Se o morto era rico, Raimundo Sacristão, o
maestro dos sinos, se esmerava, combinando os sons graves do sino maior com os
sons agudos do menor, num compasso mais dolente do que a Marcha Fúnebre de
Schubert. O dobre se repetia várias vezes enquanto não se iniciasse a missa de
corpo presente; e quando o féretro saia da Igreja ele acompanhava do alto da
torre até a chegada ao cemitério. Se o defunto era de classe média, o sacristão
misturava os dois tons, mas noutro ritmo e por menos tempo. Se pobre,
funcionava só o sino memor: tlim-tlim, tlim-tlim... Hoje, felizmente, esse
costume praticamente não existe. Só em casos excepcionais como falecimento do
Bispo da cidade ou do Papa, os sinos dobram a finados.
Havia também o
toque da despedida do Ano-Velho e saudação ao Ano-Nobo. Exatamente à
meia-noite, juntava-se o apito, que mais parecia longo gemido, da velha usina
elétrica, ali na esquina da Rua Dionísio Filgueira com a Meira e Sá, ao das várias
fábricas de óleo da cidade, e ao toque solene, alegre para uns e triste para
outros, de todos os sinos da cidade.
Os sinos,
tanto os da Catedral como os de outras igrejas, foram úteis à população, quando
o bandido Lampião ameaçou invadir a cidade, e o fez em junho de 1927. Os boatos
eram muitos e desesperadores. Na vespera da invasão, 22 de junho, todos os
sinos badalaram às onze da noite e continuavam badalando enquanto não chegava o
trem que levava muita gente de Mossoró para Porto Franco, em repetidas viagens.
Não encontrei
no livro dos nossos historiadores nenhuma informação que confirme se os sinos
atuais são os mesmos adquiridos para a primeira capela. O Cônego Francisco de
Sales Cavalcanti registra a compra de um sino para a capela, em 13.06.1802, por
44$00.
Diz Câmara
Cascudo, em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, que o sino surgiu na Índia e
na China desde tempo imemorial, fixando-se nos templos católicos no século VII
e, no Brasil, no século XVI. "Era batizado como criatura humana, tendo nome
e padrinhos. As vezes havia uma percentagem de ouro no bronze, produzindo
sonoridade musical. Igreja sem sino é santo sem língua. Muitas superstições
sobre a corda do sino, o badalo, as "beiradas". Os carrilhões
melodiosos não se vulgarizaram na cultura popular. Chamava os fiéis aos deveres
da oração aos "semelhantes", sofredores, moribundos, mortos.
Convocação para os atos religiosos. Afastava os Demônios das tempestades.
Avisava a existência de incêndios, inundações, assaltos guerreiros; visitas de
autoridades supremas."
Os sinos foram
lembrados por vários romancistas, entre eles E. Hemingway, em "Por Quem os
Sinos Dobram", sobre a Guerra Civil Espanhola. Também poetas a eles se
referiam em seus versos. Manoel Bandeira dedicou-lhes pelo menos duas poesias:
"Sinos de Belém": "Sino de Belém, pelos que ainda vêm!/Sino de
Belém, bate bem, nem, nem./Sino da Paixão, pelos que lá vão!/Sino da Paixão,
bate bão-bão-bão." Esta também em "Orfeu": "Os sinos voltam
de longe/desperta a ronda infantil/os homens-enigma passam/ Não reconhecem
ninguém/ O mundo muitas vezes/ É tão pouco sobrenatural". E Olavo Bilac,
escreveu o belo soneto "Os Sinos": "Plangei os sinos! A terra ao
nosso amor não basta..."
Acho que os
sinos deveriam voltar a tocar, não os tristes dobres de finados, mas chamando
os fiéis as missas. Às seis da manhã, ao meio dia e, às seis da tarde, o toque
da hora sagrada do Ângelus. A igreja cujo o sino está em silêncio pode não ser
"um santo sem língua", mas é um templo sem voz. E eu não conheço, nas
poucas cidades por onde andei, afora as dos grandes carrilhões, toques tão
solenes e belos quanto os da nossa Catedral de Sanra Luzia. Sempre que me
recolho ao silêncio das recordações mais distantes, entre os muitos sons que
ficaram gravados em minha memória auditiva, eles se destacam, ora repicando
alegres e convidativos, ora dolorosamente plangentes.
"No
noturno pátio/ Sem silêncio, ó sinos/ De quando menino,/ Bimbalhai meninos,/
pelos sinos(sinos que não ouço),/ Os sinos de Santa Luzia." (Manuel
Bandeira, Natal Sem Sinos).
Fonte:
facebook
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