Já são mais de
sete horas da noite. Um pouco mais. Depois de alguns poucos fogos do São João,
agora o silêncio na rua nua, vazia, triste, sonolenta. Mas muito mais por causa
da chuva do que qualquer outra coisa. Chuviscou o dia inteiro, e agora a
chuvarada se fez mais forte. Sempre acontece assim ao anoitecer dos invernos e
dos dias de nuvens prenhes.
Ouço a chuva
lá fora enquanto escrevo. Nunca faço assim, pois busco o maior silêncio
possível enquanto rabisco pensamentos e memórias, mas hoje me vejo dividido em
dois sons diferentes: da chuva descendo lá fora e da música clássica chegando
da vitrola na estante logo atrás. A chuva ora mais forte ora mais fraquejante,
a música apenas ouvida, baixinha, como se estivesse distante.
Contudo,
impossível escrever em meio à chuva e à música clássica. Tal receita é,
comprovadamente, perigosa demais aos sentimentos. Chuva e música invadem o
âmago, o espírito, a alma, como se desejassem possuir o ser inteiro. Seus
acordes fazem voar, fazem chorar, fazem sorrir, fazem delirar. Seus suaves ecos
trazem nostalgias, recordações, lembranças vivas e tantas outras que ressurgem
para afligir.
Na noite, os
pingos caindo, a rua molhada, o asfalto negro em espelho d’água, a ternura
jamais imaginada noutro instante do dia. A rua da velocidade, do barulho, da
gente passando, da gente correndo, da algazarra do dia a dia, se transforma em
sentimentalista assim que chove cai. As portas fechadas, as pessoas recolhidas,
os caminhos vazios, tudo faz aumentar a sensação de uma paz aflitiva, de uma
meiguice dolorosa, de uma alegria entristecida.
A chuva na
noite tem o dom de provocar tudo isso. Como uma doença que sempre desperta após
o entardecer, assim as sensações afloradas quando a chuvarada começa a cair
debaixo do negrume da noite. Sem lua, apenas a luz amarelada dos postes
refletindo os pingos que caem, não há olhar que não se faça poeta, não há
coração que não se aflija, não há pensamento que não se encha de recordações. E
todo o ser se entrega à magia do noturno molhado, se derramando na rua e
escorrendo por toda a alma.
A chuva em si
já é melodia. Através dela ouve-se a sonata, a sinfonia, o prelúdio, a valsa
vienense, o piano em viagem pelos ares, o violino em voo distante. Na rua
molhada um grande salão, ou apenas uma sala escurecida com candelabros e
incensos, e em meio a tudo, sobressaindo-se a toda paisagem e a tudo que surja,
a doce música, a bela música da chuva, uma orquestra de cordas e de sensações.
Vejo-me assim.
Lá fora a doce música, a orquestra se derramando, e aqui dentro, pertinho de
mim, a outra música nascida dos grandes mestres. Imensa admiração por Bach,
Chopin, Mozart, Beethoven, Vivaldi, Lizst, Ravel, Brahms, Haydn, Wagner,
Stravinsky, Paganini, Mahler, mas em noturnos assim, como o chuvoso de agora,
guardo preferência por Strauss e suas famosas valsas, Tchaikovsky e sua
belíssima Valsa do Lago dos Cisnes, mas principalmente Offenbach. Não há como
não se encantar com sua Barcarolle, intermezzo de Os Contos de Hoffmann.
Em noites
assim, ouvir Barcarolle é um navegar, é um voar, é um distanciar-se de tudo e
continuar planando pelos sentimentos devassados em sorrisos e lágrimas, em
dores e alegrias, em abraços e beijos e acenos de adeus. Barcarolle é barca que
se alonga águas adentro do espírito, é nau que singra nas distâncias da alma. E
nesse azul imenso, em busca de uma ilha qualquer jamais encontrada, navegando
vou ao soprar da memória.
Mas a música e
a chuva me impediram de prosseguir com o texto. Por motivos óbvios, fechei os
olhos e deixei que tudo fluísse ao seu açoite e remanso. Acordei umas três da
madrugada e a chuva ainda caindo como na noite anterior. E a mesma música em
mim, dentro de mim. Até que a manhã desperte de vez e a rua molhada deixe de
ser poesia para ser somente caminho.
E por falar em
Direitos Autorais, com a palavra os conhecedores: Também temos esse 'problema'
na Literatura de Cordel. Com o advento da internet, alguns 'poetas cordelistas'
estão fazendo "ctrl C-ctrl V", mudando os títulos e publicando como
se "seu" fosse. Não é de hoje que um jovem poeta do Cariri cearense -
João Peron - está multiplicando cordéis com o tema Cangaço, sem a autorização
dos seus autores - Cocriz, Antonio Francisco e Kydelmir Dantas - que são de
Mossoró... Copiando aos milhares e vendendo nas feiras populares de outros
estados, menos do Rio Grande do Norte.
Recebemos
cópias de exemplares, através de amigos, adquiridos nas Feiras de Caruaru-PE,
Salvador-BA, São Luís-MA e tivemos conhecimento destes em outros locais.
Através da editora Queima-Bucha, do Gustavo Luz, sediada em Mossoró,
encaminhamos carta protesto ao vendedor de cordéis o mesmo sequer teve a
hombridade de respondê-la... Mas continua com a cara-de-pau d'um golpista que
teima em copiar e vender ao seu bel-prazer. Pedimos que compartilhem entre os
cordelistas, poetas e defensores de uma cultura ora tipicamente nordestina. E
em respeito aos verdadeiros autores. Saudações cordelísticas.
Filho do casal
cangaceiro Moreno e Durvinha. Inacinho nasceu no dia 03 de janeiro de 1938 nas
mediações da cidade pernambucana de Tacaratu. Poucos dias após seu nascimento
seus pais foram obrigados a entregá-lo para adoção, escolhendo para tal tarefa
o Padre Frederico Araújo (Padre Velho) da cidade de Tacaratu/PE.
Em 1940,
Moreno e Durvinha decidem abandonar o cangaço e rumam em direção ao estado de
Minas Gerais, onde se estabeleceram, constituíram família e reconstruíram suas
vidas, dessa vez longe das armas.
Moreno e
Durvinha adotaram novas identidades e passaram a viver escondidos e sem manter
contato até mesmo com familiares próximos, por todo o tempo que permaneceram
escondidos.
Foram
necessários sessenta e seis anos para acontecer o reencontro entre pais e
filho, encontro que só foi possível graças à luta incessante da irmã Neli Maria
da Conceição (Lili Neli)
que sempre manteve a esperança de encontrar e conhecer o irmão deixado para
trás há tantos anos.
Em 2005,
Inacinho reencontra seus pais e finaliza assim a busca de tantas décadas.
Recentemente
realizei um entrevista com Inacinho e quem desejar assistir é só procurar no
Youtube o título FILHOS DO CANGAÇO – INÁCIO CARVALHO OLIVEIRA.
Geraldo Antônio
de Souza Júnior (Administrador do Grupo O Cangaço)
Maria Christina Matta Machado no ano de 1978 lançou pela Editora
Brasiliense o livro As táticas de guerra dos cangaceiros e em sua
conclusão que transcrevo abaixo, e em entre parágrafos, aponho uma poesia (em
negrito) que fiz em 1981 e publicada em livro (já esgotado) e que tem o
título de Aboio da Agonia que mostro a vida do sertanejo naquela
época de seca nos sertões nordestinos, onde 1.348 municípios formam o polígono
das secas e estão situados nos Estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Minas
Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe,
compreendendo grande parte do Nordeste brasileiro.
São repetidas crises de
prolongamento das estiagens e, consequentemente, nem sempre, objeto de
especiais providências do setor público. Não para combate-la pois são forças da
natureza, mas para criar projetos que amainassem para o homem do campo as
agruras dela. Por quanto tempo isso abateu-se sobre esse polígono? Talvez
alguns milhares de anos, pois é inerente nessa parte do mundo e isso já era
conhecido desde as incursões de desbravadores em sua ocupação de terras desde o
descobrimento do Brasil. Quem sempre pagou caro por esse fenômeno natural foi o
homem pobre, que sempre desde o início da humanidade foi usado, e continua a
ser usado por aqueles mais afortunados. É o siclo da natureza.
Hoje estamos em melhor situação que aquelas vividas pelos que fizeram parte da
saga dos cangaceiros, que foi um movimento de revolta daqueles que foram
injustiçados de alguma forma pelos senhores do sertão. Lógico que entraram
nesse movimento, criaturas de índole perversa e má, que o fizeram por formação
bandida, mas a grande maioria foi por motivos de perseguição, por não baixarem
suas cabeças para fazer as vontades dos coronéis.
Vejamos com interesse, em comparar o ontem e o hoje, e tiremos lições. Viajemos
nas asas da imaginação e vivamos um pouco do passado, olhemos para o presente,
e vejamos o que no futuro existirá em relação ao homem residente no polígono
das secas. Com certeza essa conclusão de Maria Christina Matta Machado no
ano de 1978 em seu livro As táticas de guerra dos cangaceiros os ajudará a
fazer essa viagem. Ela diz...
...Em 1938, poucos antes de morrer no cêrco de Angico, Virgulino Ferreira, ou
Lampião, como queiram, usou de uma frase que ficou histórica para todos aquêles
que se interessam em estudar o problema do cangaço no Nordeste, e o
desenvol-vimento do sertão:
Maria Christina Matta Machado noano de 1978 lançou pela Editora
Brasiliense o livro As táticas de guerra dos cangaceiros e em sua
conclusão que transcrevo abaixo, e em entre parágrafos, aponho uma poesia (em
negrito) que fiz em 1981 e publicada em livro (já esgotado) e que tem o
título de Aboio da Agonia que mostro a vida do sertanejo naquela
época de seca nos sertões nordestinos, onde 1.348 municípios formam o polígono
das secas e estão situados nos Estados de Alagoas, Bahia, Ceará, Minas
Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe,
compreendendo grande parte do Nordeste brasileiro. São repetidas crises de
prolongamento das estiagens e, consequentemente, nem sempre, objeto de
especiais providências do setor público. Não para combate-la pois são forças da
natureza, mas para criar projetos que amainassem para o homem do campo as
agruras dela. Por quanto tempo isso abateu-se sobre esse polígono? Talvez
alguns milhares de anos, pois é inerente nessa parte do mundo e isso já era
conhecido desde as incursões de desbravadores em sua ocupação de terras desde o
descobrimento do Brasil. Quem sempre pagou caro por esse fenômeno natural foi o
homem pobre, que sempre desde o início da humanidade foi usado, e continua a
ser usado por aqueles mais afortunados. É o siclo da natureza.
Hoje estamos em melhor situação que aquelas vividas pelos que fizeram parte da
saga dos cangaceiros, que foi um movimento de revolta daqueles que foram
injustiçados de alguma forma pelos senhores do sertão. Lógico que entraram
nesse movimento, criaturas de índole perversa e má, que o fizeram por formação
bandida, mas a grande maioria foi por motivos de perseguição, por não baixarem
suas cabeças para fazer as vontades dos coronéis.
Vejamos com interesse, em comparar o ontem e o hoje, e tiremos lições. Viajemos
nas asas da imaginação e vivamos um pouco do passado, olhemos para o presente,
e vejamos o que no futuro existirá em relação ao homem residente no polígono
das secas. Com certeza essa conclusão de Maria Christina Matta Machado no
ano de 1978 em seu livro As táticas de guerra dos cangaceiros os ajudará a
fazer essa viagem. Ela diz...
...Em 1938, poucos antes de morrer no cêrco de Angico, Virgulino Ferreira, ou
Lampião, como queiram, usou de uma frase que ficou histórica para todos aquêles
que se interessam em estudar o problema do cangaço no Nordeste, e o
desenvol-vimento do sertão:
"Num
adianta nada. O sertão continua o mesmo".
Árvores
retorcidas, secas e mortas,
na caatinga,
alto sertão.
Os galhos do
umbuzeiro,
muito triste
meu irmão.
O sertão
talvez progredisse, porque o elemento humano é bom e trabalhador, possuindo
energia suficiente para lutar por seus direitos, por sua terra e família. Se
não o conseguiu, foi tão sómente porque interessava aos poderosos manter o
"status quo", para manter seu "progresso", explorando o
trabalho de muitos, e levando a inércia ao sertão. O desvio de comportamento
dos cangaceiros é uma prova do potencial de energia sertaneja. Representaram,
eles, todo um sentimento de revolta contra a injustiça. Eram homens que não
baixavam a cabeça.
O povo da
terra rachada do sol,
gente velha e
acabada,
pois no sertão
meu irmão,
os jovens vão
de arribada.
"Lá, nas
fazendas de cana, eles apanham de relho na cara, aqui, eu só queria vê isso.
Home que apanha e num reage, num é home não" — disse-me Ângelo Roque,
vulgo Labareda, ex-cangaceiro de Lampião.
Os bodes
berram na caatinga,
pedindo a
chuva do umbú,
meu coração
ressequido chora,
pensando em
quem arribou para o sul.
Mas em 1938,
entra em decomposição o cangaço, movimento armado contra a injustiça, porque a
repressão policial foi maior, e melhor armada, e as estradas possibilitaram a
fuga do sertanejo, que, em vez de matar para ser morto em seguida, preferiu
tentar novas terras ...
Tudo seco no
sertão,
chuva que é
bom, não vem não,
esperando o
que Deus quiser,
aguardando uma
motivação...
Em 1940, com a
morte de Corisco, e a rendição de outros chefes como Ângelo Roque e Zé Sereno,
o bando de Lampião deixa a caatinga para passar à História. Agora, quando a
injustiça é ainda praticada pelo coronel, e pelas autoridades, nada resta ao
sertanejo, senão abaixar a cabeça e ficar amôrfo, parado, angustiado. Ou então,
colocar a trouxaria nas costas, e seguir pelas estradas, as mesmas que
extinguiram o cangaço.
...de esperar
os que se foram,
e aguentar
mais um pouquinho,
o sol castigar
o chão,
que se racha
devagarinho.
O sertanejo
parou. Por que não luta mais? Por que se tornou um passivo? Houve alguma
melhora na sua condição de vida? Não há mais abuso do coronel, ou o homem
enfraqueceu? Virou água o sangue do sertanejo? — Não?... Agora, há uma esperança.
Em vez de embrenhar-se na caatinga, fugindo e matando, o melhor é seguir as
estradas à procura de outras terras, onde se possa plantar, onde se possa
colher. E o caminhão vem trazendo, para favelas e para mocambos, cangaceiros e
místicos frustrados.
Já mandei
minha mulher,
que se foi com
meus filhinhos,
de retirada
pr'onde chove,
nem que seja
um bocadinho.
Vieram para
trabalhar num mundo que não é o deles. É a terra tão cobiçada, a floresta de
cimento armado, tão dura e tão fria... E ele olha para cima, sem saber que é
pequeno demais para viver.
Nas fábricas:
"Não aceitamos favelados".
O gado berra,
o caboclo grita,
que já não
aguenta mais,
até o aboio de
seu peito,
já não é como
o de atrás.
Se aceitassem
já seria difícil. Eles não têm mão-de-obra especializada, e além disso... êles
são favelados. São párias da sociedade. São fracos... são sertanejos e
estão sós neste mundo que não é o seu. Tudo que deixaram pra trás, foi um chão
duro, que mesmo assim dava milho, dava feijão e... o gado vivia. Era só poder
ficar... Era só poder viver ... mas no sertão tudo endureceu.
Árvores
secas... mortas,
terra rachada;
muitos vão de arribada.
Coração seco;
caboclo sem aboio.
Tudo isso é o
sertão; terra abandonada.
O sertão de
pedra no chão, virou pedra de cimento armado, e êle ficou só...
...Só numa
luta que apenas ele tem dentro de si, uma luta de que ninguém quer
compartilhar. Hoje, em plena era espacial, chegamos à dura conclusão de que o
sertão continua na mesma miséria. Sua lavoura ainda é feita com os mais
incipientes meios.
Não
experimentou ainda a melhoria da técnica na agricultura, e o sertanejo ainda
olha para os céus, pedindo à "chuva que nos acuda". Ao homem da
cidade, essa espera pode parecer uma inércia, o que não corresponde à verdade.
O sertanejo não pode esperar outra coisa a. não ser a chuva... Sem ela, não há
plantação e, conseqüentemente, haverá fome. Daí ele aceitar, tranquilamente, os
fenômenos sobrenaturais. O misticismo passa a ser, assim, a fôrça-maior no
sertão.
E que fôrça
poderia ele esperar numa região onde não existe o mínimo de garantia? Com a
seca vem a tragédia para o camponês. O coronel despede os empregados, para que
seu gado não morra de fome. O gado do coronel precisa pastar na rocinha de
milho e feijão, que até então pertencia ao empregado.
O sertanejo,
de um momento para outro, perde sua roça, que representa sua alimentação, fica
sem teto e sem trabalho, parque nessa época ninguém vai empregá-lo. Isto
acontece hoje, com muita freqüência, e o coronel, senhor absoluto das suas
fronteiras, não encontra qualquer resistência. Muito pelo contrário, êle tem
até ao seu lado o pistoleiro, seu capanga, que é contratado para
"resolver" as diferenças políticas, mas que também pode ser usado
contra "um empregado rebelde".
Na época do
cangaço, era diferente. O coronel temia que um dos seus vaqueiros se
transformasse em cangaceiro, e voltasse para a vingança. A par disso, não se
deve esquecer que todo cangaceiro foi um vaqueiro, e que compreendia muito bem
a submissão imposta ao camponês, pelo coronel. Sabia perfeitamente, que o dono
da terra, na época da seca, negava qualquer alimento ao povo, que comia raiz de
mucumã para sobreviver, enquanto o gado do patrão se alimentava na roça feita
pelo próprio empregado, despejado da terra.
O gado, fonte
de renda para o senhor, servia-se inicialmente, da roça do empregado despedido,
e se a seca continuasse dura, sua alimentação era na base do xique-xique, do
faxeiro e do mandacaru. Isso era trabalho para dois ou três empregados. O
resto, o coronel mandava pra rua. Nessa época de seca, é comum o quadro de
miséria pelas estradas. Homens e mulheres famintos, crianças com barrigas
estufadas, gente morrendo... Filas de retirantes com suas trouxas às costas,
fugindo da terra que os repeliu.
"As
serpentes e os ratos, passeiam pelas estradas e por dentro das casas,
enfurecidos, loucos".
Eles também
não têm o que comer e, se não mordem aquela gente, é porque sabem que não há
mais carne; o pouco que sobra está podre. A poeira nem deixa mais ver as caras;
podem ser pretas ou azuis, que ninguém sabe. É tudo igual. E eles ficam sem ter
uma saída. Se ficam morrem, se vão destroem-se.
Tudo se
arrepia nessa desolação. Até os gravetos se abrem pro céu pedindo perdão. É só
um pouco d'água, e eles podem voltar. A seca em tudo bole, mata tudo de
arrastão. Criança que já andava, volta a engatinhar e fica abobada. A barriga
estufa, a perna afina... é só osso. O coronel sabe disso, mas nunca deu
importância. Ele jamais saiu de sua terra por causa de seca. Este fenômeno
jamais o atingiu pessoalmente.
Os cangaceiros
também nunca sofreram qualquer problema com a seca, porque eles roubavam aquilo
que o coronel negava aos empregados. Lampião, por várias vezes, acudiu o
sertanejo, matando o gado, fosse lá de quem fosse, para alimentá-lo. Lampião
não foi o flagelo do sertão, mas o flagelo dos coronéis.
E o sertão
continua com os mesmos problemas. Muita coisa se pensou em fazer . Muita coisa
se quer fazer. Muito tempo já passou e muita desgraça ocorreu; muita vida foi
ceifada; muita desonra existiu; muita tristeza, muita luta. E muito nordestino
sai de suas terras, muita gente morre de fome. Muito pouco desenvolvimento
aconteceu. Muito pouco se fêz, numa terra tão grande.
O sertão
continua, embora quase desaparecendo na poeira e na chuva. O nordestino sai. O
que aconteceu? Onde está a máquina do progresso? Onde está o desenvolvimento?
Onde estão as escolas? Onde está a vida, se não se pode lá viver? A verdade é
que o coronel de ontem é o mesmo de hoje, com a mesma mentalidade medieval, com
os mesmos costumes, e acreditando ainda na sua prepotência, com o mesmo
orgulho, e representando o maior entrave para o desenvolvimento social,
econômico e político do Nordeste. E o sertão continua a ser a mesma terra castigada,
e o sertanejo hoje é um submisso. Que será do sertão? Como poderá Ele
progredir?
, alto sertão.
Os galhos do
umbuzeiro,
muito triste
meu irmão.
O sertão
talvez progredisse, porque o elemento humano é bom e trabalhador, possuindo
energia suficiente para lutar por seus direitos, por sua terra e família. Se
não o conseguiu, foi tão sómente porque interessava aos poderosos manter o
"status quo", para manter seu "progresso", explorando o
trabalho de muitos, e levando a inércia ao sertão. O desvio de comportamento
dos cangaceiros é uma prova do potencial de energia sertaneja. Representaram,
eles, todo um sentimento de revolta contra a injustiça. Eram homens que não
baixavam a cabeça.
O povo da
terra rachada do sol,
gente velha e
acabada,
pois no sertão
meu irmão,
os jovens vão
de arribada.
"Lá, nas
fazendas de cana, eles apanham de relho na cara, aqui, eu só queria vê isso.
Home que apanha e num reage, num é home não" — disse-me Ângelo Roque,
vulgo Labareda, ex-cangaceiro de Lampião.
Os bodes
berram na caatinga,
pedindo a
chuva do umbú,
meu coração
ressequido chora,
pensando em
quem arribou para o sul.
Mas em 1938,
entra em decomposição o cangaço, movimento armado contra a injustiça, porque a
repressão policial foi maior, e melhor armada, e as estradas possibilitaram a
fuga do sertanejo, que, em vez de matar para ser morto em seguida, preferiu
tentar novas terras ...
Tudo seco no
sertão,
chuva que é
bom, não vem não,
esperando o
que Deus quiser,
aguardando uma
motivação...
Em 1940, com a
morte de Corisco, e a rendição de outros chefes como Ângelo Roque e Zé Sereno,
o bando de Lampião deixa a caatinga para passar à História. Agora, quando a
injustiça é ainda praticada pelo coronel, e pelas autoridades, nada resta ao
sertanejo, senão abaixar a cabeça e ficar amôrfo, parado, angustiado. Ou então,
colocar a trouxaria nas costas, e seguir pelas estradas, as mesmas que
extinguiram o cangaço.
...de esperar
os que se foram,
e aguentar
mais um pouquinho,
o sol castigar
o chão,
que se racha
devagarinho.
O sertanejo
parou. Por que não luta mais? Por que se tornou um passivo? Houve alguma
melhora na sua condição de vida? Não há mais abuso do coronel, ou o homem
enfraqueceu? Virou água o sangue do sertanejo? — Não?... Agora, há uma
esperança. Em vez de embrenhar-se na caatinga, fugindo e matando, o melhor é
seguir as estradas à procura de outras terras, onde se possa plantar, onde se
possa colher. E o caminhão vem trazendo, para favelas e para mocambos,
cangaceiros e místicos frustrados.
Já mandei
minha mulher,
que se foi com
meus filhinhos,
de retirada
pr'onde chove,
nem que seja
um bocadinho.
Vieram para
trabalhar num mundo que não é o deles. É a terra tão cobiçada, a floresta de
cimento armado, tão dura e tão fria... E ele olha para cima, sem saber que é
pequeno demais para viver.
Nas fábricas:
"Não aceitamos favelados".
O gado berra,
o caboclo grita,
que já não
aguenta mais,
até o aboio de
seu peito,
já não é como
o de atrás.
Se aceitassem
já seria difícil. Eles não têm mão-de-obra especializada, e além disso... êles
são favelados. São párias da sociedade. São fracos... são sertanejos e
estão sós neste mundo que não é o seu. Tudo que deixaram pra trás, foi um chão
duro, que mesmo assim dava milho, dava feijão e... o gado vivia. Era só poder
ficar... Era só poder viver ... mas no sertão tudo endureceu.
Árvores
secas... mortas,
terra rachada;
muitos vão de arribada.
Coração seco;
caboclo sem aboio.
Tudo isso é o
sertão; terra abandonada.
O sertão de
pedra no chão, virou pedra de cimento armado, e êle ficou só...
...Só numa
luta que apenas ele tem dentro de si, uma luta de que ninguém quer
compartilhar. Hoje, em plena era espacial, chegamos à dura conclusão de que o
sertão continua na mesma miséria. Sua lavoura ainda é feita com os mais
incipientes meios.
Não
experimentou ainda a melhoria da técnica na agricultura, e o sertanejo ainda
olha para os céus, pedindo à "chuva que nos acuda". Ao homem da
cidade, essa espera pode parecer uma inércia, o que não corresponde à verdade.
O sertanejo não pode esperar outra coisa a. não ser a chuva... Sem ela, não há
plantação e, conseqüentemente, haverá fome. Daí ele aceitar, tranquilamente, os
fenômenos sobrenaturais. O misticismo passa a ser, assim, a fôrça-maior no
sertão.
E que fôrça
poderia ele esperar numa região onde não existe o mínimo de garantia? Com a
seca vem a tragédia para o camponês. O coronel despede os empregados, para que
seu gado não morra de fome. O gado do coronel precisa pastar na rocinha de
milho e feijão, que até então pertencia ao empregado.
O sertanejo,
de um momento para outro, perde sua roça, que representa sua alimentação, fica
sem teto e sem trabalho, parque nessa época ninguém vai empregá-lo. Isto
acontece hoje, com muita freqüência, e o coronel, senhor absoluto das suas
fronteiras, não encontra qualquer resistência. Muito pelo contrário, êle tem
até ao seu lado o pistoleiro, seu capanga, que é contratado para "resolver"
as diferenças políticas, mas que também pode ser usado contra "um
empregado rebelde".
Na época do
cangaço, era diferente. O coronel temia que um dos seus vaqueiros se
transformasse em cangaceiro, e voltasse para a vingança. A par disso, não se
deve esquecer que todo cangaceiro foi um vaqueiro, e que compreendia muito bem
a submissão imposta ao camponês, pelo coronel. Sabia perfeitamente, que o dono
da terra, na época da seca, negava qualquer alimento ao povo, que comia raiz de
mucumã para sobreviver, enquanto o gado do patrão se alimentava na roça feita
pelo próprio empregado, despejado da terra.
O gado, fonte
de renda para o senhor, servia-se inicialmente, da roça do empregado despedido,
e se a seca continuasse dura, sua alimentação era na base do xique-xique, do
faxeiro e do mandacaru. Isso era trabalho para dois ou três empregados. O resto,
o coronel mandava pra rua. Nessa época de seca, é comum o quadro de miséria
pelas estradas. Homens e mulheres famintos, crianças com barrigas estufadas,
gente morrendo... Filas de retirantes com suas trouxas às costas, fugindo da
terra que os repeliu.
"As
serpentes e os ratos, passeiam pelas estradas e por dentro das casas,
enfurecidos, loucos".
Eles também
não têm o que comer e, se não mordem aquela gente, é porque sabem que não há
mais carne; o pouco que sobra está podre. A poeira nem deixa mais ver as caras;
podem ser pretas ou azuis, que ninguém sabe. É tudo igual. E eles ficam sem ter
uma saída. Se ficam morrem, se vão destroem-se.
Tudo se
arrepia nessa desolação. Até os gravetos se abrem pro céu pedindo perdão. É só
um pouco d'água, e eles podem voltar. A seca em tudo bole, mata tudo de
arrastão. Criança que já andava, volta a engatinhar e fica abobada. A barriga
estufa, a perna afina... é só osso. O coronel sabe disso, mas nunca deu
importância. Ele jamais saiu de sua terra por causa de seca. Este fenômeno
jamais o atingiu pessoalmente.
Os cangaceiros
também nunca sofreram qualquer problema com a seca, porque eles roubavam aquilo
que o coronel negava aos empregados. Lampião, por várias vezes, acudiu o
sertanejo, matando o gado, fosse lá de quem fosse, para alimentá-lo. Lampião
não foi o flagelo do sertão, mas o flagelo dos coronéis.
E o sertão
continua com os mesmos problemas. Muita coisa se pensou em fazer. Muita coisa
se quer fazer. Muito tempo já passou e muita desgraça ocorreu; muita vida foi
ceifada; muita desonra existiu; muita tristeza, muita luta. E muito nordestino
sai de suas terras, muita gente morre de fome. Muito pouco desenvolvimento
aconteceu. Muito pouco se fêz, numa terra tão grande.
O sertão
continua, embora quase desaparecendo na poeira e na chuva. O nordestino sai. O
que aconteceu? Onde está a máquina do progresso? Onde está o desenvolvimento?
Onde estão as escolas? Onde está a vida, se não se pode lá viver? A verdade é
que o coronel de ontem é o mesmo de hoje, com a mesma mentalidade medieval, com
os mesmos costumes, e acreditando ainda na sua prepotência, com o mesmo
orgulho, e representando o maior entrave para o desenvolvimento social,
econômico e político do Nordeste. E o sertão continua a ser a mesma terra castigada,
e o sertanejo hoje é um submisso. Que será do sertão? Como poderá Ele
progredir?
Não querendo
faltar com o respeito aos direitos autorais do Padre Maciel,
mas solicitando todas as desculpas, transcrevo uma parte da vida e morte
desse homem que passei a admirar, que foi José Ferreira e desta mulher que
seguiu seu amado esposo, Dona Maria Lopes, em cuidados com seus filhos, e
suportarem tantas injustiças, somente e grandiosamente, para proteção deles.
Bico de pena de Lauro Villares com retratos da época
Também fica registrado aqui nesse blog sem pretensão, a não ser no
interesse em mostrar as perseguições sofridas por estas duas almas (que Deus as
tenha), fatos acontecidos e testemunhados por pessoas que o autor entrevistou.
Quando li esses dois relatos escritos por esse autor, que pesquisou por 30 anos
e somente por insistência de amigos, produziu essa preciosa obra, dividida
em 6 livros, atinei em registar e incentivar os amigos a lerem essa obra.
Faço isso para aqueles que não tiveram a oportunidade que estou tendo
em conhecer a história desde o princípio da saga guerreira de Lampião e de
seus irmãos, Livino, Antônio e depois Ezequiel (quando se deu a morte da
mãe e do pai, ele era menininho), que o acompanharam nessa aventura.
Fica também registrado o meu repúdio, aos perseguidores e destruidores de uma
família humilde do sertão nordestino.
Vamos à história, pelas mesmas letras, do livro 'LAMPIÃO, SEU TEMPO E SEU
REINADO' de Frederico Bezerra Maciel.
MORTE DE D. MARIA LOPES
21 de maio de
1920.
Mãe
de Virgulino Ferreira da Silva dona Maria Sulena da Purificação ou Maria Lopes -
Acervo José Mendes Pereira - Foto redesenhada por Diin Laden
Ainda escuro,
entre o primeiro e segundo canto dos galos, reuniu José Ferreira a família e
seus haveres — tão pouco: uma pequena trouxa para cada um! — e partiu, de
mudança pela terceira vez* — “os Proscritos!” Conduzia sua esposa
enrolada em desgastado cobertor, de algodão e montada no velho e serviçal
Condave. Os seis filhos atrás, olhos arregalados de pavor a que já estavam
afeitos, pés no chão para não acabar com as apragatas muito gastas e remendadas,
tiritando de frio apesar do exercício do caminhar.
No arrasto da
vida e do destino escuros, quiném aquela noite impenetrável, arrastava José
Ferreira a família e a miséria. Seguia ele na frente, trôpego, puxando o
animal; na outra mão, levantada para alumiar o caminho, o butirão aceso, feito
de garrafa de meio litro, com gás e grossa torcida de molambo fumacento.
Caminhava
devagar como vagaroso era o seu maginar e raciocinar diante da prepotência do
destino nos enigmas das ditriminações divinas. Já perto de chegar, voltou-se,
consolador, para sua esposa e disse com resignação e fé:
—
"Maria, é preciso aceitar a vontade de Deus!"
Ela, desde a
chegada, continuava sempre amurrinhada. Não se sabe se do cansaço da viagem,
embora curta, ou porque sorrateiramente se aproximava a sua hora derradeira. O
certo é que, não fossem as tramas ocultas dos perversos, atiçando perseguições
e injustiças, não estaria ela assim desacabando a saúde e a vida.
* A primeira
mudança da fazenda Ingazeira (Vila- Bela) para a fazenda Poço Negro (Floresta),
a quatro léguas de distância; — a segunda, do Poço do Negro para a fazenda Olho
d'Agua de Fora (Água Branca, Alagoas), vinte e duas léguas; — a terceira, de
Olho d'Água dê Fora para a fazenda Engenho (Mata Grande, Alagoas), quatro
léguas; — total: trinta léguas ou sejam cento e oitenta quilómetros!
Perseguiram assim José Ferreira ponto por ponto até matá-lo! Dal em diante a
família Ferreira não teria mais descanso, tornar-se-ia como Ahasvero, o judeu
errante. A perseguição em cima, sem parar. Que se perseguissem os três —
Virgulino, Antônio e Livino — que se lançaram no cangaço, compreende-se. Mas a
familia que nada tinha a ver com isso? Perseguição inominável! A familia
vagueou por Águas Belas, Bom Conselho, Juazeiro do Padre Cícero, Picos no Piauí
E com Eurico de Sousa Leão caiu na diáspora!
Não se
adornava a natureza sua a uma vida assim acuada por toda parte. Sentia-se
desinfeliz, sem poder viver. Inda bem ali não chegara e já as perseguições
recomeçaram. Não tinha vindo para ali fugida delas? E ei-las de novo! Sempre
injustas, e agora grumitadas pela autoridade. Foi mesmo muito pior ter vindo
para Alagoas. O arreliado e vendido comissário de Matinha de Água Branca, o
famigerado Amarílio, querendo desarmar seus filhos dela para desmoralizar,
corregendo as casas e desassossegando as famílias, prendendo sem motivo e
torturando um inocente, botando emboscada, atacando à bala, doido para ganhar
mais dinheiro matando... Nessas aflições todas, teve durante o dia dois passamentos.
Botaram-lhe até vela na mão, maldando estivesse nas últimas e não resistisse
mais.
José Ferreira
também agoniado, com as mãos apertando a cabeça e sem encontrar canto para
aquietar o juízo, exclamava: "Não! Não é possível viver aqui! Não passo
mais um dia nessa terra. Vou falar com o delegado de Mata Grande, que é meu
amigo, para poder ficar por lá". Diante da melhora, súbita e
surpreendente, da esposa, andando embora devagarinho e pegada, comendo e
conversando alegre — não sabia ninguém que era a "visita da saúde"
precedendo a morte! — resolveu José Ferreira, de madrugada, selar dois burros e
com seu filho João ir logo à Mata Grande trazer remédios e falar com o
delegado, seu amigo. Os três filhos mais velhos, tendo espalhado antes que
iriam ao brejo de Triunfo, na verdade continuavam ocultos no mato por causa da
policia.
Aproveitando a
manhã, alegre e de esperança, daquele dia 22 de maio de 1920, conduziram as
filhas a mãe para fora, no terreiro de frente da casa, a modo de ela
despairecer, tomar um arzinho e uns esquentes do sol brando. Ficou ela sentada
numa cadeira, distraindo-se feliz com Ezequiel e Anália, os dois caçulinhas, a
brincarem de pega no terreiro. Não demorou muito tempo, deu-lhe nela
inexplicável cansaço seguido de sonolência. As três filhas, cada qual com um
pote de barro na cabeça, tinham ido vexadas ver água na cacimba. Naquele
momento instante, voltando, notaram que sua mãe, de repente, pendia a cabeça de
lado e virava os olhos para cima, enquanto o queixo afrouxava entreabrindo a
boca.
Compreenderam
a evidência do desenlace...
Num
sufragante, Virtuosa segurou a mãe pelas costas, levantando-a um pouco para
Angélica retirar a cadeira. Ali mesmo foi ela deitada, a cabeça no colo de
Virtuosa que se Sentara no chão. Posição essa mais favorável para ajudar a
doente a desafogar o peito e a respiração, fazendo passar a agonia. Pela
terceira vez — não sabendo que era a derradeira, Mocinha vigiou a vela benta e
lhe colocou acesa na mão.
Ezequiel e
Anália agarraram-se ao regaço da mãe, chorando e chamando:
— "Mamãe!
Querida mamãe!"
Talvez para
sua consolação, nesse instante derradeiro, tenha ela ouvido dos lábios infantis
de seus caçulas essa doce palavra que traduzia inteiramente tudo o que ela fora
na vida — mãe!
O semblante
sereno, o olhar fugindo para a eternidade, tendo diante de si a imagem do
Senhor Crucificado apresentado por Angélica, que a custo repetia entre soluços:
— "Meu
Jesus, misericórdia”, entregou sua alma ao Criador.
— "Sem o
mínimo estremeço o modo de um passarim!"
Mocinha apagou
a vela. Soprava uma aragem macia e refrescante aliviando aquelas almas
transidas de dor... Uma poeira de luz emoldurava aquele quadro de tragédia em
terra estranha e de exílio... Lá para o meio-dia chegaram José Ferreira e João,
simultaneamente com os três chamados de seus esconderijos. Encontraram a morta
deitada numa cama de vento, amortalhada, com os lábios sorrindo para a morte,
de vez que há muito deixara de sorrir para a vida!... Na dor e na lágrima
lamentaram todos a desdita. Os três filhos perseguidos, às pressas colheram cravos
amarelos e bugaris, enfeitaram o leito da mãe defunta e se esconderam de novo.
Não podiam ficar velando.
Somente à
noite, assim mesmo cismados e precavidos, voltariam para o velório. A família e
vizinhos entre lágrimas e soluços de todos, inteiraram a noite fazendo a
sentinela com os cânticos lúgubres das incelenças e o ofício das almas.
No dia
seguinte domingo, pela manhã, conduzida numa rede pelos filhos, que se
revezavam, foi feito o enterro, estrada a fora rezando, e sepultada numa cova
do cemitério do povoado de Santa Cruz do Deserto*, após lhe terem o esposo e
filhos beijado o rosto frio. Três coroas, lembranças do esposo, dos filhos e
dos parentes, além de muitos buquês levados pelos acompanhantes, floriam a
sepultura, que mais parecia um canteiro de festa, e de vida.**
* Povoado de
Santa Cruz do Deserto no município de Mata Grande (cfr. cap. 24).
** Enviado,
cor urgência, de Engenho para Vila Bela, um pombeiro, a fim de avisar aos
Ferreiras das ribeiras do Pajeú e do São Domingos esta morte. Dona Mariquinha
Ferreira, filha do Cândido Ferreira e prima de Virgulino, ao receber a dolorosa
notícia — e ela bem se recorda que ainda na penúltima semana de maio de 1920 —
exclamou, os olhos rasos de lágrimas: — "Tá! Maria Lopes morreu..." E
ela mesma afirma que José Ferreira foi morto trinta e oito dias depois.
MORTE DE JOSÉ
FERREIRA
(29 de junho de 1920)
Pai de Virgulino Ferreira da Silva - Acervo José Mendes Pereira
Foto redesenhada por Diin Laden
Penúria...
O pobre do
José Ferreira, com tanta coisa amarga e trágica sem trégua se sucedendo, ficou
desatinado, abatido, sem gosto pra nada na vida, curtindo os penares da dor e
da saudade e os sobressaltos de uma desgraça ameaçadora e iminente. Chamou os
três filhos que continuavam ocultos, e lhes disse: — "Vocês aqui não podem
mais ficar. Vão para Pernambuco que depois eu tomo o mesmo caminho". Não
podia, de súbito, se afastar de perto da sepultura da finada esposa. Seguiram
os três filhos para Espírito Santo do Moxotó, onde ficaram; trabalhando na
propriedade de seu Terto. José Ferreira vendeu os dois burros para comprar
roupa de luto para todos de casa.
A diligência
do diabo...
Cartas do
delegado de Água Branca — comprado por Zé Saturnino — ao Chefe de Polícia de
Alagoas, carregando em cores os assucedidos mais recentes: a revolta dos
Porcinos; a invasão de "perigosos bandidos" vindos de Pernambuco,
onde cometeram "muitos crimes"; o caso do soldado Jagunço em Mata
Grande; a desfeita à polícia em Água Branca quando ela, "com bons
modos", procurou desarmar aqueles "criminosos bandidos", os
quais ao depois desfeitearam o comissário de Paricônia;. um "bandido,
ainda jovem, comprando armas"; "a ameaça e o terror ganhando as
populações"... Alarmado diante de tudo isso, resolveu o Governo cortar
pela raiz todos esses males. Para tal, determinou ao delegado de Viçosa, 2°
Tenente José Lucena, famoso por excessos de severidade, fazer uma diligência
por aquelas bandas conflitadas. Ao chegar em Água Branca, foi Lucena inteirado
de tudo o que ocorrera. Inclusive por carta de Zé Saturnino tivera conhecimento
do nome dos "três perigosos bandidos e criminosos": os irmãos
Virgulino, Antônio e Livino, além de Antônio Matilde, que, armados, haviam
descido do Navio para aquele município alagoano. De primeiro, dirigiu-se Lucena
à fazenda Chupete, para perguntar ao Capitão Sinhô pelos irmãos Ferreiras. —
"Despachei eles para o Coronel José Abílio, de Bom Conselho; não costumo
ter bandido comigo" — descartou-se o capitão. Carecia não se inocentar.
Lucena não ofendia coronel e protegido da política de cima. Mas somente cabra
solto, isolado ou de grupo. Seguiu, então, Lucena, na pista deles, em direção
de Santa Cruz do Deserto.*
* Da fazenda
Chupete seguiu Lucena no sucaro dos Ferreiras guiado por Zé Batista Quirino e
outros mais da mesma família. Zé Batista sabia exatamente paro onde se havia
mudado o velho José Ferreira. Tinham os Quirinos transações com os Ferreiras em
razão do carguejamento de mercadorias. A aproximação dos Ferreiras com os
Marcos, inimigos dos Quirinos, levou estes à denúncia de traição. Além de seus
soldados, compunham a tropa de Lucena alguns cachimbos, juntamente com Amarílio
e os Quirinos.
O
assassínio...
Na casa de
José Ferreira, só tristeza. Tinha ele ido ao cemitério e não compreendia por
que desta vez chorara muito mais do que das outras. Revelara aos filhos o que
dissera à falecida, já na cova enterrada, que não havia mais sentido para ele
continuar a viver. Queria ir pra de junto dela. Repassou, de minúcia e
fagueiro, os bons tempos de antanho, de paz e ternura. Recordou particularmente
a última festa; do Senhor São João, há dois anos atrás, em que a finada, tão
bonita e saudável, tão vistosa e alegre, dançara com ele... Hoje, era ele mais
morto do que ela morta! No dia seguinte, 29 de junho, terça-feira, precisamente
38 dias depois da morte de D. Maria Lopes, de manhãzinha, o tempo chuviscoso,
ele com mais João e as três meninas fora adjutorar, como alugados, os trabalhos
de um roçado vizinho, a modo de trazer para casa alguma coisa de ganho para o
de-comer carecente. Voltara logo para casa José Ferreira, cansado e escanchado
em Condave, trazendo dependurados, de cada lado das ancas do velho burro, dois
sacos contendo quatro mãos de milho plantado em São José e colhido agora para o
São João.*
* A mão de
milho em Alagoas: 25 espigas não debulhadas; em Pernambuco: 50.
Ao chegar no
terreiro de frente da casa, bem perto do lugar em que a esposa falecera,
apeiou-se. Correram pressurosos e choramingando de fome os dois menores e lhe
tomaram a bênção. Abraçou-os o pai, afetuosa e longamente, acarinhando e
beijando. Em seguida tirou os sacos e derramou as espigas num balaio. De
cócoras, apanhava as espigas, tirava a palha, que avoava para Condave comer.
Debulhava o milho numa gamela para depois fazer xerém no pilão, facilitando
assim o trabalho das meninas que, ao regressarem, era só preparar o angu. O
qual dessa vez não seria comido puro. Tinha ele comprado um bom taco de carne
de bode e um litro de farinha. O "café" (almoço) seria sustancioso.
Estava José
Ferreira dessa maneira entretido quando, escornetando a concha da mão na
orelha, ouviu um tropel. Com mais, estava sua casa cercada de soldados. A uma
distância de três braças gritou Lucena para o velho José Ferreira: — "Cadê
os seus três filhos bandidos?" Ferido em seus brios e honra, José Ferreira
retrucou, com todo o desassombro e altivez, alto, firme e pausadamente: —
"Não, sinhô! Bandidos, não! Meus filhos não são bandidos. Querem forçar
eles a ser. Mas eles são é home!..." — "É assim que responde a um
oficial, velho malcriado, cachorro da mulesta" revidou furioso Lucena.
E, sem mais,
descarregou ele próprio a pistola no peito daquele pobre velho, pacifico e
indefeso, que caiu, por estranha coincidência, ali, no mesmo chão onde falecera
sua esposa. Na queda, de chofre e de bruços, por cima do balaio, o corpo
esparramado, o braço direito estirado segurando na mão um cabucé, torceu o
rosto de lado e balbuciou:
—
"Coma... coma..."
Pareceu, nessa
única palavra, que a derradeira preocupaçao de seu coração paterno era
desafaimar 'as crianças. Elas, as crianças, apavoradas, dispararam, aos berros,
por dentro do mato. Um soldado para agradar ao comandante deu na direção delas
um tiro de fazer medo, provocando gargalhadas nos seus companheiros de
selvageria. Lucena vasculhou a casa de Zé. Ferreira, encontrando de arma apenas
um quicé!
Ao retirar-se
notou dois homens ,vindo, desconfiados e irriquietos, na sua direção. Sem saber
nem perguntar quem eram, ordenou uma descarga de fuzil, matando um e ferindo o
outro, que correu. Uma senhora e u'a moça que vinham a certa distância ficaram
levemente feridas. Não era ele o senhor absoluto da vida e da morte?!
Os dois eram o
velho Fragoso e seu irmão Zequinha. Aquele, viúvo e dono da fazenda Engenho,
onde, por caridade, cedera uma humilde casa de morador para José Ferreira ficar
até que resolvesse seu destino. A senhora era a dona da casa e a moça sua
filha. Atentando nos disparos, tinham ido ver, desarmados, o que acontecia,
sendo seguidos pelas duas mulheres.*
* É
absolutamente autêntica, _ com todos os seus pormenores, a descrição.
'assassínio doi. pobre; manso e indefeso velho José Ferreira., assim como das outras
circunstâncias. Em vez de debulhando milho, alguém fantasiou José Ferreira
tirando leite de uma vaca ...
Vezo da
polícia, para justificar seus crimes: alegar que houve "resistência".
Assim fez Lucena: O cúmulo do grotesco: o alquebrado velho José Ferreira
enfrentando sozinho uma formidável volante e "tiroteiando" com uma
quicé, isto é, com um toco do facas Quando João Ferreira, filho da vítima, em
entrevista, usou a palavra "tiroteio", entendeu dizer que houve tiros
de um lado, o da volante.
Quase profético
o Padre Epifânio Moura, vigário de Água Branca: — "Esse crime vai trazer
muita desgraça para o sertão". O povo: — "Mataram dois cidadãos de
bem só pru gosto de matar!" — "É do esperar que não fique nisso,
não". E, de fato, o povo não se enganou. Tão revoltante crime lançou
Virgulino e seus irmãos no cangaço. Criou Lampião! A situação piorou. Diante do
ressurgimento do cangaceirismo, agora em forma diferente, recrudescido e
desafiador. Chamou o Governador alagoano aquele homem de sua confiança, o único,
a seu ver, que enfeixando poderes absolutos e indiscriminados, poderia
liquidar, de um golpe, todo aquele mal, muito embora enegrecendo o seu nome e o
da História. Este homem: — Segundo Tenente José Lucena de Albuquerque Maranhão.
Esteve confabulando no Palácio do Governo, em Maceió, no dia 4 maio de 1921.
Depois destituído da delegacia policial de Viçosa, iria com carta branca,
acabar com o banditismo em todo o estado. E assim e vexado com uma poderosa
volante de vinte e quatro homens, deixaria no dia 10 de maio, a cidade de
Palmeira dos Índios “na direção do sertão.” A ação repressiva de Lucena chegou
a ser "desumana", conforme ele próprio reconheceu. (Cfr. Adendo ao
capítulo 45.)
A desolação da
abominação! *
Alarmados
pelos tiros, João Ferreira e as três irmãs abalaram para casa.
No maior
desespero reviraram o cadáver, fecharam-lhe os olhos e o conduziram para dentro
de casa. — "Mas, cadê Ezequiel e Anália?" — "Onde estavam
escondidos?" — "Ou será que foram roubados?" — perguntavam-se
angustiados uns aos outros, noutro desespero somado. . Feito loucos, saíram
João e Angélica às procura deles, chamando-os repetidamente com toda a força
dos gritos. Encontraram, enfim, os coitadinhos, com bem cem braças, num estado
horrível, assombrados e atordoados, rasgados dos espinhos e tocos de pau, sujos
de terra, quase sem mais falar de tão roucos, caídos no chão, semimortos de
fome e pavor! Tragédia de rara concepção ou de difícil visualização nesse
quadro desumano de miséria e barbaridade! — "Pareciam (as crianças) dois
filhotes de ema perdidos no mato, piando de fome!..." Atirados os irmãos
aos ombros, retornaram às pressas. No entanto, o grave da situação era que
ninguém cia vizinhança, com medo de Lucena, queria se aproximar, para
amortalhar e sepultar as vítimas. João Ferreira mandou comunicar o triste
acontecido ao delegado de Mata Grande, Maurício de Barros** que atendeu
prontamente e pessoalmente veio ao local, providenciando, por sua conta e
risco, o enterro, mas de um modo tão atabalhoado, dadas as circunstâncias de
terror, que João Ferreira nem viu quando os corpos, altas horas da noite,
candeeiro aceso na frente, foram levados! - "José Ferreira também era
filho de Deus e não bicho para os urubus..." — dissera Maurício, essa
destemida autoridade e mais tarde integrante da polícia pernambucana. Sem que,
ninguém da família assistisse, José Ferreira foi sepultado numa cova do
cemitério de Mata Grande, na manhãzinha do dia 30 de junho de 1920, a última
quinta-feira do mês.***
Unidos à mesma
gleba do Pajeú, que os viu nascer, unidos numa vida de vinte e seis anos de
amor conjugal; unidos ao mesmo chão do Moxotó em que expiraram o último alento,
deveriam seguir o mesmo destino de continuar diante de Deus.
* Naquela
época, culto sacerdote-vigário, corajosamente vergastou do púlpito e censurou
severamente, condenando esses abomináveis fatos, tomando por tema de confronto
as Sagradas Escrituras no famoso texto, cap. 9, v. 27, do profeta Daniel":
— "O maldito Coronelismo, simbolizado no deus pagão-político, prepotente,
cruel e desumano foi erigido sobre o altar da Justiça — divina por natureza —
sob à qual procuravam se abrigar os humildes e ofendidos, os pobres e fracos,
cuja vida é um perpétuo holocausto de seus direitos sagrados! Profanação, na
linguagem bíblica chamada de "abominação da desolação" ou desoladora
e horrorosa abominação".
**. Maurício
Vieira de Barros. Lampião, a 29 de novembro de 1930, o prendeu juntamente com
um soldado, nas Negras (Aguas Belas), quando ainda estavam deitados e dormindo.
Levou-os presos até Pau Ferro (hoje Itaíba) município de Águas Belas. A porta
da casa de Maurício, disse Lampião: — "Vou matar o soldado. Você não,
porque lhe devo um grande favor: enterrou meu pai! Lhe poupando a vida, paguei
a dívida. Se continuar a me perseguir e eu lhe pegar você não tem jeito, não.
Morre, visse?!" Apesar das súplicas de Maurício, Lampião matou ali mesmo o
soldado e soltou o prisioneiro. Maurício havia verificado praça na Polícia
Militar de Pernambuco, chegando a ser sargento. Foi comandante de volante. Era
perverso, cometendo muitos crimes. Etelvino Lins, Interventor do Estado,
expulsou-o da polícia. Chamava a atenção seu bigodão, Ainda vive com seus
noventa anos.
*** Defronte
da igreja de Santa Cruz do Deserto visitou o autor deste livro um velho, em sua
casa, o qual ajudou no enterro e, sem registro de óbito, no sepultamento de
José Ferreira em Mata Grande, território da jurisdição policial do delegado
Maurício Vieira de Barros. O nome do velho, o autor não guardou, mas tem como
testemunhas o Dr. Tarcísio de Freitas então engenheiro chefe do DNOCS, emt
Palmeira dos Índios.