Por: Luana Sena 26 de outubro de 2015
No escritório
de um médico, relíquias e histórias de sangue e sertão provam que Lampião está
mais vivo do que nunca.
Leandro
Cardoso é um cardiologista de meia idade cujo hobby predileto é estar entre os
livros. Não são títulos de medicina, nem poesia, tampouco ficção. O que atrai o
médico são histórias sanguinárias de um passado recente do nordeste brasileiro:
livros, punhais, cartucheiras, chapéus e outros pertences originais ocupam
quatro armários do chão ao teto. Em um dos cômodos de seu apartamento, na zona
leste de Teresina, Virgulino Ferreira, o rei do cangaço, está mais vivo do que
nunca.
A paixão de
Leandro pelo tema começou aos 12 anos, quando ganhou de presente do avô o livro
“Lampião, cangaço, nordeste”. As marcas na dobradura dão pistas sobre o tempo,
mas ele não é o mais antigo – nem seria o primeiro – livro daquela coleção. De
lá para cá, Leandro seguiu lendo e pesquisando tudo o que diz respeito ao
cangaço.
Leandro
trabalhou por dez anos em São Paulo, “a capital mais nordestina de todas”, diz
o médico. No consultório, conversa vai, conversa vem, vez por outra ele
encontrava descendentes de cangaceiros – primos, irmãos, filhos – ou mesmo dos
volantes (Força Volante era a tropa do governo montada para combater os
cangaceiros nos anos 1930). “Eu fui médico da dona Mocinha, irmã de Lampião”,
relembra. Cada personagem descoberto era como uma peça que faltava no
quebra-cabeça do pesquisador.
Em maio de
2002, Leandro recebeu uma ligação inesperada de Aracaju.
A voz do outro lado da
linha disse sem cerimônia:
– A cabeça do
vovô está aqui em casa, você gostaria de ver?
Era Vera
Ferreira, neta de Lampião. Pegou o primeiro avião. Tornou-se o segundo médico a
confirmar que Lampião não era “lombroso” – a expressão remete ao médico
italiano, Cesare Lombroso, criador da teoria de que traços físicos podem
denunciar um perfil criminoso. “Orelha de abano, fronte fugidia, caninos
possantes, eram algumas das características de um lombroso”, explica o médico.
A teoria caiu em desuso, mas a curiosidade dos pesquisadores sobre Lampião
permaneceu porque ninguém nunca tinha tido a oportunidade de examinar tão
profundamente essas características.
Leandro
Cardoso (foto: Mauricio Pokemon)
Lampião e mais
nove integrantes de seu bando foram mortos em 1938 por tropas da polícia na
Gruta do Angico, sertão sergipano. As cabeças foram decepadas e permaneceram
por anos no Instituto Nina Rodrigues, na Bahia, até a família de Virgulino
conseguir na justiça o direito de enterrá-la, no cemitério Quinta dos Lázaros,
em Salvador. Mas, o início dos anos 2000 trouxe fortes chuvas a região, e a
defesa civil obrigou a retirada das urnas do local. Elas foram entregues
novamente as famílias. “Como eu sou amigo da Vera e ela sabia que eu estava
escrevendo um livro, me ligou com essa proposta e eu nem pensei duas vezes”.
O exame
resultou no livro “Lampião: a medicina e o cangaço – aspectos médicos do
cangaceirismo”, escrito por Leandro em parceria com Antônio Amaury Corrêa de
Araújo, umas das maiores referências em cangaço no Brasil. “Eu pude examinar o
occipital dele por dentro e Lampião não era um lombrosiano nato”, diz o médico.
O livro traz ainda outros diagnósticos sobre a figura do cangaceiro mais famoso
da história, como a cegueira no olho direito. “Se você pegar a literatura, cada
um diz uma coisa: catarata, glaucoma, mas tudo da boca pra fora”, afirma o
pesquisador. “Durante um combate com uma volante, em 1925, uma bala pegou num
espinheiro que estava perto de Lampião e ele foi atingido”, explica Leandro. “A
causa mais comum de cegueira no sertão é trauma”, continua. “Se ele tivesse
feito um transplante de córnea, provavelmente voltaria a enxergar, mas naquela
época não existia”. Lampião virou um cego funcional e teve que aprender a ser
canhoto quase aos 30 anos de idade.
Na prateleira,
o livro escrito por Leandro divide espaço com mais de 100 títulos. Há ainda uma
videoteca com filmes como “O cangaceiro”, de Lima Barreto (1953), “Nordeste
sangrento”, com o estreante ator Paulo Goulart (1963) e “Baile perfumado”, de
Paulo Caldas e Lírio Ferreira (1996). Entretanto, o filme mais precioso ali é
um DVD um tanto caseiro com 11 minutos de imagens de Lampião e seu bando,
registrados pelo sírio-libanês Benjamin Abraão na década de 1930. “Lampião
aceitou que o libanês os filmasse porque ele era secretário de Padre Cícero”,
explica Leandro. O filme ficou por anos preso nos porões da ditadura Vargas e
só se conhecia, afinal, seis minutos de gravação. “Benjamin passou meses lá com
os cangaceiros, é provável que existissem horas e horas de gravação, mas boa
parte do filme foi perdida ou danificada”. Foi Leandro e o cineasta Wolney
Oliveira que encontraram, na cinemateca brasileira em São Paulo, mais cinco
minutos inéditos de imagens.
Parte do
acervo do pesquisador (foto: Mauricio Pokemon)
Além do acervo
literário e visual, o médico também guarda peças originais do vestuário dos
cangaceiros: chapéu, bornais floridos, cartucheiras, alpargatas e punhais – um
deles foi presente de Moreno, considerado um dos cangaceiros mais valentes do
bando de Lampião. “Parando minha recordação, eu ainda matei 21”, diz Moreno,
aos 99 anos, no documentário “Os últimos cangaceiros”, lançado este ano no
Brasil. Leandro conheceu Moreno e a mulher, Durvinha, cujas histórias de vida
daria um filme. E deu! (Leia abaixo!)
Leandro fala
de cada detalhe da indumentária do cangaço com um misto de admiração e êxtase.
Ele sabe de cor as falas de Lampião no filme mudo. Tem na mente as datas dos
combates, faz viagens frequentes para regiões que foram marco do “banditismo
social” brasileiro e refuta pesquisadores. Para ele, um dos maiores equívocos é
confundir o cangaceiro com a figura de um bandido. “O código penal da época era
surra, bala e punhal”, explica. “Tratar o cangaceiro como bandido é um erro
porque esse era o modus operandi daquela época”, defende. “A polícia
agia assim e o coronel também”.
O médico vê o
cangaço como uma manifestação contra a colonização, “um irredentismo
brasileiro”, diz, citando a teoria de Frederico Pernambucano de Mello. “Cada
vez mais eles foram empurrados pro sertão porque queriam viver sem lei nem
rei”, afirma. O que os diferencia do bandido comum? “O bandido tende a se
ocultar, viver na surdina. O cangaceiro não. Ele não se acha bandido porque tem
um código de ética muito próprio. Você acha que um cara que se veste daquele
jeito quer ficar oculto?”
Relíquias do
irredentismo brasileiro (foto: Mauricio Pokemon)
O estilo
cangaço também é outro ponto de equívoco sobre o que se prega a respeito de
Lampião. Ao contrário do que vemos nas imagens da época, todas sem cores, as
roupas não eram cinza, muito menos de estampa camuflada. “Parecia alegoria de
carnaval”, brinca o pesquisador. “A roupa é espalhafatosa, mas nada daquilo é
supérfluo”, explica enquanto mostra a forma correta de se abotoar um bornal.
“Eles usavam quatro bornais em volta do ombro. O cara carregava mais de 30
quilos e podia rolar no chão que não saia nada do corpo”. Muitos desses
detalhes estão no livro “A estética do cangaço” (Frederico Pernambucano de
Mello), que traz ainda curiosidades sobre lenços, perfume francês, óculos
alemães e outros delírios de consumo do vaidoso Lampião. “Era tudo muito bem
feito, costurado em máquina, tinha uma preocupação visual”, diz o médico. “O
faroeste americano não chega nem perto”.
Em outubro
deste ano, algumas dessas peças vão estar expostas no 4º Congresso Nacional do
Cangaço que acontece pela primeira vez no Piauí, na cidade de São Raimundo
Nonato. Organizado pela SBEC (Sociedade Brasileira de Estudos Sobre o Cangaço),
o evento vai reunir (de 27 a 31) os maiores pesquisadores brasileiros sobre o
tema – Vera Ferreira, neta de Lampião, confirmou presença para uma palestra.
Leandro, que coordena o evento, também vai ministrar palestra e lançar nova
edição de seu livro – serão cinco dias entregue a histórias de sangue e sertão
pra faroeste americano nenhum botar defeito. “A gente não acredita no que a
gente tem”, diz o pesquisador intrigado com o fato de Hollywood vender há anos
Billy the Kid como o maior fora-da-lei de todos os tempos. “Ele matou três
pessoas! Três! Agora veja Lampião”, propõe. “Se Tarantino visse um negócio
desse ficaria louco!”.
Os últimos
cangaceiros
Ninguém
podia imaginar que o pacato casal Jovina Maria da Conceição e José Antonio
Souto, ambos com mais de 90 anos, tinham um passado tão misterioso quanto
impressionante. Por quase cinquenta anos eles esconderam dos filhos um segredo
revelado somente no século XXI: eles foram cangaceiros integrantes do bando de
Lampião.
Os
pesquisadores nunca chegavam a um consenso sobre o paradeiro daqueles que
escaparam ao confronto sangrento em Angico, no Sergipe – alguns apontavam Ceará
e Maranhão como possíveis destinos dos cangaceiros. Outros afirmavam que eles
haviam morrido. Porém, escondidos atrás dos nomes falsos sobre os quais
refizeram suas vidas em Belo Horizonte, estavam, na verdade, Antônio Ignácio da
Silva, o Moreno, e Durvalina Gomes de Sá, a Durvinha.
Ele, cearense,
e ela, pernambucana, estavam no interior do Ceará quando souberam da morte de
Lampião e dos demais companheiros, em 1938. Disfarçados de retirantes, seguiram
rumo ao sul, mudaram de nome e fizeram um pacto de nunca contar a ninguém o
segredo.
Lançado em
2014, filme mostra casal que pertenceu ao bando de Lampião (foto: divulgação)
A história
teria mesmo ido ao túmulo, não fosse o fato de, pelo caminho, os cangaceiros
terem deixado um filho, aos três meses de vida, aos cuidados de um padre em
Tacaratu, no interior de Pernambuco. Acometido por uma doença em 2006, Moreno
resolveu revelar a família o desejo que tinha de reencontrar o primogênito. Os
filhos puseram-se a procurar o irmão, em Tacaratu, quando se depararam com a
surpresa: “Ah, o filho dos cangaceiros?”
Com a
revelação, pesquisadores de todos os cantos voaram para colher de perto os
novos relatos e as recordações de Moreno e Durvinha – sabe-se que ela foi, num
primeiro momento, mulher de Virgínio, cunhado de Lampião. Com a morte dele,
Moreno assumiu Durvinha – era proibido mulher sozinha no bando.
A história
virou enredo do documentário “Os últimos cangaceiros”, produzido por Wolney
Oliveira. É o primeiro longa-metragem documental sobre o cangaço e, no seu
lançamento mundial, em 2014, foi premiado em festivais de cinema no México,
Havana e Bolívia. Moreno e Durvinha não chegaram a ver o filme pronto – ela
morreu em 2008, ele, centenário, dois anos depois.
Além de
relatos dos ex-cangaceiros, filhos, parentes (e o reencontro com Ignácio, o
filho mais velho, deixado no Pernambuco), o longa traz cenas inéditas das
gravações feita pelo libanês Benjamin, nos anos 1930 (aquelas, recuperadas por
Leandro e Wolney na cinemateca). A produção conseguiu colorir frame a frame
algumas imagens, que, além de modernizar, dão uma ideia mais realista da
estética do cangaço. Outro trunfo são as legendas nas falas de Lampião e seu
bando: uma equipe especialista foi contratada para decifrar o que os
cangaceiros falavam no filme mudo. Wolney colocou Moreno e Durvinha para se
reverem nessas imagens – o resultado, emocionante, está no documentário.
Virgulino
Ferreira, o rei do cangaço, está mais vivo do que nunca (Foto: Mauricio
Pokemon)
http://www.revistarevestres.com.br/reves/revestemdetudo/faroeste-no-chinelo/
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