Por Antônio Corrêa
Sobrinho
Uma entrevista exclusiva de D. Sérgia da Silva, a Dadá, que foi raptada pelo
cangaceiro Corisco, perdeu uma perna em 1940, no último combate contra as
forças legais, e hoje enfrenta diariamente a máquina de costura, para sustentar
16 netos.
DEPOIMENTO
D. SÉRGIA DA
SILVA...
Corisco
dividia os homens disponíveis com Lampião. Às vezes, segundo Dadá, passava até
oito meses com Lampião, mas normalmente se separavam depois de dois ou três
meses. Dadá lembra que, às vezes, chegavam a trocar tiros quando vinham no
mato, e ambos pensavam que se tratasse de uma volante.
“Quando não tinha tiro, tinha alegria”.
Assim é que Dadá lembra de sua vida em bando.
- Ah, era tudo de bom. Os coiteiros eram quem trazia as cargas. No tempo de
briga tudo era mais racionado, mas quando tinha uma calmazinha, a coisa era bacana.
Dinheiro não faltava, era aos montes, era o que mais se tinha. A gente recebia
de um tudo. Dizem que eu tenho medo de delatar quem dava armas. Eu sempre digo
a quem me pergunta, que não conhecia. Para que me pergunta? A gente não come
para quebrar os pratos. A gente come pra lavar os pratos, pra quando precisar.
E é mesmo, eu gosto sempre de ter um pouco de reserva com as coisas.
Nos tempos da “calmazinha”, a vida do bando era para descansar e para a
diversão. Os homens limpavam a capoeira e colocavam seus cachorros para brigar.
A briga de cachorros era importante, cada qual queria ter o melhor animal e
alguns deles ficaram famosos. Havia também a “luta de peito”, entre os homens.
Os mais fracos eram eliminados até ficar apenas um, o mais forte e mais hábil.
Os animais, nos tempos de paz, ocupavam quase todo o tempo dos homens e
mulheres. Havia corrida, disputas levadas a sério, principalmente por Maria
Bonita, que tinha um burro chamado “velocípede”, considerado invencível pelo
bando. Cada animal tinha um nome e uma sela ornamentada especialmente com
tirinhas de couro e desenhos que ficaram conhecidos como símbolos do cangaço
como: A burra do Zé Baiano era “Brinquedinho”, a de Lampião era “Simpatia”.
“Fagueiro”, era o nome do burro de Corisco.
Noite de lua, em tempo de paz, os homens se reunião para contar seus casos.
Alguns tocavam viola, outros tocavam gaita. Corisco era bom na sua flauta
amarela e preta, que Dadá guarda até hoje, dentre as poucas coisas que lhe
restaram do cangaço.
- Mas em tempo de persiga a vida não era fácil. Muitas vezes, a gente
encontrava o bornal e o fuzil encostados no canto. Muita gente via que não era
fácil, que era vida pra homem macho e debandava. A entrada de um recruta no
bando era sempre a mesma coisa: Ah... O senhor sabe, eu queria seguir com o
bando... ficar com vocês... E o chefe do grupo perguntava: você é homem mesmo?
E acabavam combinando. Nos primeiros dias, dois homens cuidavam do recruta,
observavam suas atitudes, sua esperteza e seu traquejo com uma arma que lhe
davam, geralmente não muito boa. Somente quando o homem provava que dava para
aquela vida lhe entregavam um fuzil.
Embora nunca tivessem brigado, Maria e Dadá parece que tinham certa rivalidade.
Maria de Déia, como era conhecida, no grupo, era a Primeira Dama do cangaço e
não abria mão do privilégio. Para Dadá, Maria não era bonita e o apelido
somente apareceu depois da sua morte em Angicos, em 38, quando morreu também
Lampião, vítima de uma emboscada de uma volante.
- Maria era como uma criança mimada. Era enjoadinha e encrenqueira. Se Maria
tivesse dando sotaque de manhã, Corisco viajava de tarde. Com Lampião, ela
fazia ele de peteca. Só faltava dar nele, mas homem disposto não briga com
mulher. Quando Maria estava muito levada, Lampião ria e dizia: “... Ave Maria,
hoje ela tá danada, não tem quem possa. Junta ela e Guarani (o cachorro) pra me
atazanar. Mas no dia que era ele que estava zangado, ninguém brincava, Maria
ficava quieta.
Pelo que conta Dadá, Maria Bonita, se não fosse bela, pelo menos era faceira e
viva. E sabia aproveitar-se dessa condição entre as outras mulheres. Montava em
sua burra enfeitada, fogosa, e dizia pra todos bem alto: “Olha a mulher do
Capitão. Olha os ouros da mulher do Capitão, olha os vestidos”. Um dia Maria
perdeu uma corrida com sua burra e quis sacrificar imediatamente o animal, o
que não fez devido a interferência de Lampião, que sabia acalmar o gênio
explosivo da mulher.
Dadá era diferente. Era mais madura e contava muito com a confiança do Capitão.
Era desconfiada, não deixava o marido “fazer tratos à toa”. Ou ia na frente de
Corisco ou ao pé dele.
- Eu queria estar junto dele, tinha medo de uma emboscada, que atirassem nele.
Logo Dadá aprendeu a lidar com arma e a conhecê-las muito bem.
- A primeira arma que tive era toda enfeitada, bonequinha. Pistolinha bacana,
revolverzinho enfeitado. Quando a coisa engrossou, passei a pegar no fuzil e
parabelo. Quando era tempo de verão, era duro. A “macacada” tomava conta dos
bebedouros. Tem coisas que eu vivi que nem sei contar. Eu nem sei como passei
por tudo isso.
Talvez, se tivesse tido chance de ficar com os filhos, teria sido tão boa como
mãe como o é como avó, que sempre cuida da compra dos livros, ou da saúde dos
netos. Quando um adoece de uma coisa, outro tem uma dor de ouvido, ou uma
gripe.
A vida de cangaço não permitiu a Dadá ser mãe. Outros cuidaram dos seus filhos;
teve sete, mas somente três estão vivos, Maria Celeste, com doze filhos, Maria
do Carmo, com quatro, e Silvio Bulhões, que é economista, “mas que não liga
para mim”, com seis filhos.
O primeiro filho de Dadá nasceu em 1º de maio de 1933, mas devido à dureza da
vida levada por sua mãe, não resistiu.
- O menino mais velho, Josafá, ficou cheio de espinho, magrinho e morreu.
Fiquei com ele três meses, mas o tempo era quente, tinha muita poeira, bagaço e
espinho. E o meu medo era deixar um filho meu abandonado na hora de um ataque
das volantes. Eu tinha meus filhos e não podia carregar. Aquele agreste não era
lugar pra anjo. Quando eu tinha menino, eu ficava ali por perto. Quando o
menino caía o umbigo, eu entregava a uma pessoa de responsabilidade. Maria
Celeste eu entreguei ao Major Medeiros. Maria de Lurdes ficou com o Padre
Soares, mas morreu pequena, e Silvio, com três meses de grávida, o Padre
Bulhões me pediu a criança. Meus filhos não morreram assassinados, mas quando
um menino cangaceiro ia para a cidade contratavam e quando vinha a medicação da
farmácia trocavam por veneno. Nunca pude olhar pelos meus filhos. Somente
quando acabou a perseguição pude me encontrar com eles. Mas nada tive para dar.
Nós compramos muitas coisas, mas quando sabia que era de Corisco, tomavam. Se
soubessem que a gente tinha se encontrado com alguém, tomavam do pobre até a
camisa.
Por tudo isso, Dadá e Corisco sempre viveram com bando, mas sem filhos. Como
marido e mulher, não tinham problemas. Havia muito respeito. Corisco somente se
zangava quando a mulher começava a xingar. Ele detestava nomes feios. Quando
Dadá dizia “peste”, ele imediatamente advertia:
- E a camisa que tu veste. Como tu pode andar com esses nomes na boca?
Para muitos autores que escreveram sobre o assunto, a morte de Lampião, em
Angicos, em 1938, com Maria Bonita “foi passado o atestado de óbito do cangaço
no Brasil”. Dadá, em sua simplicidade, explica a situação em que ficou o
cangaço, com a morte do chefe.
Quando o compadre Lampião morreu, o mundo acabou. Ninguém podia substituir, ele
veio para aquilo mesmo. Uma só palavra bastava. Um “não” bastava. Era um
exemplo do mundo, apesar de feio, alto e magrinho. Ele tinha uma força
diferente dentro dele, quando zangado dizia nomes que nem se sabia o que era. O
sol quente, ele com sede, dava nomes que a terra parecia que ia pegar fogo. Com
a morte dele todo mundo começou a se entregar, sem combinar nada. Nos primeiros
acordos eu fui contra. Eu disse a Corisco: “Se você quiser se entregar, se
entregue. Eu não vou. Eu ouvi dizer que pegam os cangaceiros e matam. As
mulheres, eles cortam os pescoços, como fizeram com Maria, mas não proíbo que
você se entregue, se você quiser ir, e, se caso vencer na vida, me chame depois
que eu vou”.
Corisco preferiu ficar com a opinião da mulher. Diziam que ela o governava. Ela
desmente, mas concorda que “quando pegava numa ideia, ele me ouvia muito”.
Numa reunião melancólica e triste, Corisco falou para seus homens que poderiam
ir embora, entregar-se, tomar qualquer destino. Quem ficou com medo, entregou
suas armas ao chefe, e abandonou o grupo. Corisco seguiu o seu caminho, agora
irreversível, já que vários tinham depositado confiança nele.
Segundo Dadá, o maior desejo de Corisco era abandonar aquela vida. Uma vez
pediu permissão a Lampião para abandonar o cangaço. Chegou a ir para Sergipe,
sua terra, para viver como lavrador, ao lado de Dadá, sonhando criar filhos,
umas duas cabeças de gado para o futuro dos meninos e esquecer os tiros, os
sobressaltos, as fugas. Não passou de sonho. Foi reconhecido e forçado
novamente a se unir a Lampião. Tinha que se conformar, “não podia beber de
qualquer água”.
Em 39, de maio para junho, viveu seu penúltimo combate, seguido por oito homens
e sua mulher Dadá, “que valia por dez”.
- Tudo que ia se dar com a gente eu via. Eu tinha visões, via passar pernas,
via assim aquela fileira passando, me assustava. Comecei a temer porque se eu
tivesse um sonho hoje podia preparar que tinha de ser aquilo. A gente tava
viajando para Sergipe, para pegar um gado que Corisco queria dar para uma
menina nossa. Mas essa viagem foi a maior atrapalhada. Um dia acordei assustada
com as visões e disse: não fico mais aqui. Empaquei nisso. E tinha razão. Tinha
oito dias que nós estávamos ali descobertos. Um rapaz que estava com a gente
bebeu demais e disse numa venda que estava com Corisco. Um soldado que
trabalhava na rodagem foi a Jeremoabo e contou onde estava Corisco e começou a
perseguição. Nós saímos numa segunda-feira, uma hora da tarde, às sete da
noite, a roça estava cercada de volantes.
Durante toda a viagem para buscar o gado em Sergipe, aconteceram coisas
estranhas. Andavam, andavam, andavam, e, quando reparavam, tinham andado em
círculos. Quando iam passando pela terceira vez, pelo mesmo riacho, pulou um
sapo amarelo pintado de preto, pulando “na nossa frente”. Dadá advertiu: “Olha
aí”. Corisco ficou com raiva e esmagou o sapo com a coronha do fuzil. Depois
todos se sentiram tranquilos, menos Dadá. Se já era cuidadosa, passou a
observar ainda mais cada movimento no mato. Cuidava mesmo assim de tudo,
principalmente de um menino de 14 anos, chamado Roxinho, que fazia parte do
grupo e a quem dera um fuzil, forrara o cantil como só ela sabia fazer e
confeccionou com carinho cada peva de seus arreios; eram oito pessoas, ao todo.
- Quando a gente ia atravessando uma catingueira, eu ouvi aquela rajada e não
vi mais ninguém por causa daquela poeira levantada pelos tiros. Depois vi Corisco
atirando e me acenando com a mão, me chamando para junto dele. Quando a
“macacada” ouviu ele me chamar de Dadá começou a gritar também pelo meu nome.
Já estava Guerreiro baleado, levantando e caindo e me chamando. Como eu não
tinha mais bala no parabelo e era impossível botar balas no pente, eu me
abaixava e metia pedra na cara dos “macacos”. Roxinho foi baleado e quando
cheguei junto de Corisco, ele disse: “Dadá, olha pra aqui. A mão estava
dependurada, presa nos nervos, depois que uma bala varou também o ombro. Com um
lenço, enrolei o braço dele e disse: Vombora. Seguimos pela camaratuba, um mato
mole, deixando aquele rastro mole no chão. Corisco ia pendendo para frente,
perdendo as forças e eu gritando: “vombora, vombora, vamos morrer andando”.
A fuga de Corisco e Dadá, em sua penúltima batalha, durou três dias e três
noites de insônia, fome e sede, andando pela dourada, “um mato verde que
ninguém esconde rastro”. Depois tiveram que atravessar a macambira, espinhos,
“e tudo o mais”. Para alcançar um lugar seguro, como as alpercatas de Corisco
eram muito pesadas, Dadá calçou as suas no marido, rasgou o vestido e enrolou
nos pés.
- Que tem de morrer para o ano, não morre este não.
Mais uma vez, durante a marcha, encontraram “macacos”, trocaram tiros e conseguiram
escapar. Quando atravessavam uma várzea surgiu um soldado. Dadá conta que ainda
teve tempo de apanhar o seu fuzil, que estava pendurado no ombro de Corisco, e
atirar primeiro. Quando tentou subir uma ribanceira para ver se ainda havia
mais “macacos” por perto, deram “mais uma rajada de tiros tão grande que
arrancaram o barranco de terra do tamanho de uma mesa. Me levantei com aquele
bolo nas costas, os olhos cheios de terra e corri arrastando o fuzil”.
Ao fim da fuga, dos homens que estavam com Corisco sobrou apenas um, “Caixa de
Fósforo”. Dadá mandou que ele fosse conseguir água, comida, roupa, qualquer
coisa numa fazenda próxima, mas não confiou e continuou arrastando Corisco com
medo de Caixa de Fósforo voltar com os “macacos”.
“O cabra de Corisco voltou sozinho, mas, um dia depois, disse que tinha se
perdido; mentira, não resistiu e dormiu”.
Talvez Corisco só tenha saído com vida desse combate porque os três encontraram
uma “farmácia”, um pote grande enterrado por coiteiros numa roça. Finalmente Dadá
pôde olhar o ferimento do marido e passar outro medicamento, além de raspa de
quixabeira, uma planta do sertão que dá umas frutinhas negras.
- Botei cachaça em cima e deixei. Quando rasguei o paletó com o canivete,
estavam aquelas placas pretas enormes. Eu carregava uma binga cheia de fumo.
Destampei e botei fumo em cima das placas. O homem estava com aflição de dor,
mas depois disso desceu aquele suor e ele disse que passou toda a dor. Quando
ele arriou o braço, desceu aquela água preta, bicho assim. Rasguei toda a roupa
dele de faca para curar a ferida.
Passaram-se três meses e dezenove dias para Corisco ficar bom. Dadá lhe tirou o
ferimento com farinha, cebola, lavava tudo com raspa de aroeira, deixava de
molho com emplastro e no outro dia lavava tudo de novo. Para chegar um curativo
levava dois dias e duas noites. Caixa de Fósforo viajava, aproveitando a noite
e trazia algum medicamento. Mas como o cotovelo continuava inchado, Dadá abriu
com um canivete. Mas, com todo cuidado de mulher enfermeira, cozinheira,
parteira, anjo, Dadá não devolveu à mão de Corisco os movimentos. Ele, o Diabo
Louro, escondia a mão para não verem que estava aleijado. Portava arma, mas
tinha que confiar na mira de Dadá, porque não podia apertar o gatilho.
- Eu tive um sonho. Nós estávamos ali e passava uma rede de defunto assim, pelo
alto do céu, coberta de urubus. E eu dizia: “tá vendo, Corisco, ali é Zé Baiano
que já mataram, vamos embora.
Se todos os sonhos de Dadá eram uma previsão segura, quando ela acordou de
manhã e contou o seu sonho a Corisco, estava contando também o fim do cangaço,
se é que se pode falar na existência de apenas um cangaceiro, mesmo assim com a
mão inutilizada, oito meses antes.
Dadá mais uma vez acreditou nos seus sonhos e chamou o marido, que tinha parado
na Barra do Mendes, apenas para fazer companhia a um homem que tinha perdido a
sua mulher. Dadá estava fazendo as roupas de luto do viúvo, mas estava disposta
a deixar a linha preta, a tesoura e a agulha para seguir seu caminho errante
com o marido, a quem protegia como um guarda-costas. Aquele homem com quem se
casaria um dia em Porto da Folha, Sergipe, com um padre rezando o Ofício,
“morrendo de medo”, era o ser mais valioso para ela. Defendera-o dos ataques
das meninas mais novas, atraídas por seus longos cabelos amarelos e bigodes
tratados e fazia o mesmo agora, contra o Zé Rufino que o caçava. Por isso Dadá
insistia em deixar aquela Fazenda e seguir viagem. Corisco disse que tinha
mandado um rapaz no povoado fazer umas compras e, tão logo chegasse,
reiniciariam a viagem, como sempre sem destino certo. Mas quando o rapaz voltou
da venda, a força policial tinha chegado primeiro.
Eram dezoito homens e meteram fogo em tudo. Atiraram em Corisco e quando eu
pulei uma cerca, não achei o pé. Só ficou pegado com um nervo. Eu dizia: corte
isso, me dê a faca que eu corto, mas eles não atendiam. Veio um soldado para
cá: acaba de matar essa... E eu disse, me dá esse fuzil e me chama de novo
desse nome sujeito amarelo, magro, desgraçado. Eu cortava ele pelo meio...
Foram colocados em um caminhão e seguiram acompanhados pelos soldados, que iam
cantando o tempo inteiro da viagem. Corisco agonizava e morreu doze horas
depois de baleado. Dadá chamou Zé Rufino, comandante da força policial e pediu
que mandasse os soldados pararem de cantar. Antes de morrer, quiseram dar água
a Corisco, mas ele não aceitou. “O que tiveram de fazer por mim, façam por
Dadá”. Sempre que tinha forças para falar perguntava se a companheira ainda
esta viva. Trinta anos depois da morte de Corisco, Zé Rufino, sentindo que
estava muito doente, mandou chamar Dadá para lhe pedir perdão. Agarrou-se em
suas mãos e, cheio de arrependimento, ouviu o perdão de Dadá, que só fez
questão de lembrar que Corisco não tinha morrido em combate, mas desarmado, porque
não podia sequer pegar numa colher.
- Não concordo com o procedimento dos autores. Trocam tudo. Mentem. Dizem
coisas que não aconteceram, inventam. Minha revolta é contra o filme de Glauber
Rocha, “Deus e o Diabo na Terra do Sol”. Ele foi errado em não combinar comigo.
Diz que é assunto público. Mentira. Não pode ser. Eu existo. Estou viva. E não
tem nada de cangaço ali. O que o filme tem é uma bandalheira, sujeira, povo
sujo enrolado com uns molambos nos pés. Corisco, um homem bacana daquele
(mostra fotografia do marido, com toda a sua bolsa, os braços arqueados de
tanto equipamento). O filme mostra Corisco dando um tapa em mim – isso é o que
mais me revolta. Ora, eu, hoje, uma pessoa me gritando eu não gosto, quanto
mais pra me dizer que vai me dar um tapa. Nem Corisco. Todo mundo ali me
respeitava. Até hoje, quando encontro os sobreviventes, eles me abraçam e
começam a chorar.
O filme “Corisco, Diabo Louro” foi o que lhe rendeu algum dinheiro, além de uma
estada de três meses em São Paulo. Mesmo assim, prometeram uma avant-première
em seu favor, que nunca houve.
Dadá se queixa da moça que se apresentou em um programa de televisão,
respondendo sobre o cangaço e que vem explorando o seu nome constantemente.
Chega em muitas cidades para lançar seu livro e fazer conferências, prometendo
a presença de Dadá. Depois, inventa uma desculpa qualquer.
Dadá se aborrece na hora. Depois esquece tudo, envolvida pelos 16 netos que
sustenta. Agora tem uma grande esperança. Está fazendo artesanato. Belas bolsas
enfeitadas como as dos cangaceiros, bordadas com linhas coloridas. Pretende
vender, e com o dinheiro, se tudo der certo, comprar uma casinha longe da Rua
dos Perdões, onde o ruído dos automóveis e caminhões lhe tiraram o direito à
paz que não encontrou desde que veio para Salvador, em 1940. Porque os soldados
achavam que todos os que morreram com balas de arma curta foram baleados pela
mulher de Corisco.
Até mesmo para ela, tudo mais parece uma fábula desde que aquele homem magro de
bigode e cabelo amarelo a montou na garupa do seu burro e andou doze anos pela
caatinga. Somente os 33 anos que a separam daquela vida deixa o cangaço
distante. Tão distante como aquele homem de pouca conversa, boca pequena, que
gostava de rezar, e que quando entrou no cangaço o cabra Jararaca disse: “Deixa
que eu tomo conta deste. O apelido dele é Corisco.”
Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa
Sobrinho
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