Por Frederico
Pernambucano de Mello
O dia 19 de
maio de 1936, uma terça-feira, poderia ter sido igual a todos os outros no arruado do Morro Redondo, distrito de Catimbau, do município de Buíque, Pernambuco, com a população - toda ela conhecida entre si, quando não aparentada ou unida pelo compadrio -entregue às fainas monótonas da vaqueirice e do trajo do algodão e da mamona. Pelas duas horas da tarde, quase todos já tinham almoçado, o silêncio é quebrado desde longe por aboios e rinchos de jumento, num crescendo de tropel de cavalos em disparada. Todos atribuem a aproximação rápida a vaqueiros, com seus chapelões de couro, e se tranquilizam, ainda que curiosos por tanto barulho, tão de repente.
Logo os fatos iriam mostrar que estavam enganados, que não se tratava de vaqueiros farreando alegremente e que o lugarejo humilde, arredado do mundo e até mesmo das trilhas do cangaço, estava sendo ocupado por uma das frações mais brutais do bando de Lampião, a que era comandada pelo cunhado do chefe, o não menos famoso cangaceiro Virgínio
Fortunato, o Moderno. O grupelho de dez pessoas integrava-se de oito homens, com o chefe, e duas mulheres, todos a cavalo - o que denotava estarem seguros da ausência da polícia—deslocando-se divididos taticamente em três frações separadas entre si por cerca de 500 metros.
No coice, apenas o chefe Virgínio, em companhia das mulheres, inclusive a sua própria, a bela Durvalina Gomes, a Durvinha, a quem a cabroeira tratava por Maria Bonita para disseminar o pavor de que Lampião, em pessoa, estivesse por perto, e mais Rosalina, a Doninha, mulher do cabra Rio Branco, O cangaceiro Moreno, de coragem comprovada, lugar-tenente do chefe, fazia a cabeceira ou vanguarda com mais dois cabras. Todos tinham-se juntado momentaneamente para a atropelada em direção ao Morro Redondo, cientes de que surpresa e pavor eliminam reações. Ali estavam, no cáqui ou na mescla azul dos uniformes vistosos, além de chefe e lugar-tenente, os cangaceiros Chumbinho (o segundo), Jararaca (o segundo), Ponto Fino (o segundo), Serra de Fogo, Canário e Rio Branco, alguns paisanos do lugar arriscando que no mato, à espreita para possível ação de retaguarda, teria ficado o cabra Azulão (o segundo). Um deles conduzia uma harmônica nova.
As missões de rapina, chamadas pelos cangaceiros de volantes, para mexer com os policiais que denominavam assim as suas frações móveis de tropa, não eram incursões aleatórias. Algum planejamento as antecedia, assuntando-se sobre a abertura dos caminhos, locais sujeitos a emboscada, presença de força policial próxima e sobretudo o levantamento dos ricos da terra. Não foi surpresa que entrassem na rua trazendo preso, montado em um cavalo, o capitalista do lugar, Firmino Cavalcanti, mais conhecido como Firmino de Salvador, dominado, com o Irmão, o velho Epifânio, em seu sítio Breu, um centro algo próspero de agricultura e de compra de couros e cereais. Muito ao estilo do bando de Lampião, vinham presos a resgate, cumprindo às famílias, além de levantar o dinheiro, arranjar um positivo de coragem que viajasse até encontrar o grupo e resgatar a vítima. Uma dificuldade, se considerarmos, além de tudo, que esse resgate não era menor que a quarta parte do valor de um automóvel à época, podendo ir, em alguns casos, ao dobro de tal valor. O equivalente a dois carros pela vida de fazendeiro próspero foi moeda comum no sertão dos Anos 20 e 30 do século passado. No tempo de Lampião.
Os bandidos, ágeis, saltam dos cavalos e vão ganhando as casas a chicotear a todos pela frente, aqui e acolá brandindo os fuzis sobre os mais apavorados, lançando ameaças, a população nivelada pelas denominações comuns de fi da peste, fi d'uma égua, cão, amancebado, descarado, ditas em altas vozes. O cangaceiro Serra de Fogo impressiona por gritar a cada instante: "Veja logo o dinheiro pr 'eu não ser mais ruim do que eu já sou!" Outra marca negativa vem das mulheres cangaceiras, que não poupam os chicotes no rosto e no lombo dos mais próximos, numa ação de gênero de todo incomum nos sertões.
Durvalina e Virgínio Fortunato da Silva
O chefe Virgínio, faiscando de ouro sobre o traje colorido e imponente, exalta-se por não encontrar em casa o filho do prisioneiro Firmino, a quem incumbiria, no plano traçado, ir a Buíque levantar o dinheiro do resgate. O jovem Pedro de Albuquerque Cavalcanti achava-se no mato, dando campo, no traquejo do gado da família. No bando havia dez anos, desde quando enviuvara de uma irmã de Lampião morta pela bubónica no Juazeiro do padre Cícero, Virgínio desce do burro e entra na casa de Pedrinho Salvador— como era conhecido - advertindo a mulher deste, d. Ester, com palavras graves. Botando os olhos muito vermelhos sobre esta, recomenda que Pedrinho "fôsse ver o dinheiro no Buíque assim que chegasse". E se recosta numa mesa, servindo-se de cerveja quente, cara fechada, importante, parecendo consciente de seu absolutismo.
Chumbinho bota a cara bexigosa na janela, avisando o chefe de que as montarias estavam cansadas. Este, numa demonstração de que o absolutismo tinha limite, chama um cabra para cuidar da devolução dos cavalos, mas "com cuidado, que são do coronel Arcelino de Brito".
Saindo à ruazinha de lama, Virgínio divulga entre os curiosos um rapaz alto, magro, novo de 22 anos, caboclo quase índio, a quem se dirige com energia:
- Venha cá,
cabra! Se corre, morre!
O jovem, que
jamais vira um cangaceiro em sua frente, no máximo os jagunços cordatos do coronel Félix de França e do capitão Antônio Leite, aproxima-se sem receio, sendo-lhe indagado se era da terra, ao que responde afirmativamente. Segue-se nova pergunta:
- Você sabe
onde fica o Xilili? Quero que você me bote na estrada que vai para lá. E vamos logo, cabra!
Passando a
perna no cavalo novo que recebera, apita chamando os companheiros. Para sua surpresa, o jovem —que sabia onde ficava o lugar - levado pela ingenuidade põe-se na frente dos cavalos e responde
que ignorava aquele rumo. O chefe cangaceiro se enfurece, risca o cavalo e grita não entender como alguém dali não conhecesse o lugar procurado, próximo de onde se encontravam, segundo estava informado. Atordoado, o jovem mantém a negativa implausível. E mundo lhe desaba sobre a cabeça, todo o seu futuro vindo a se definir nos poucos minutos que se seguem. E arrastado pelos cabras para trás de uma cerca, derrubado no chão a coice de fuzil e fica à espera do chefe, numa eternidade de segundos.
Virgínio apeia calmamente, calça umas luvas amarelas e vai até as mulheres pedindo que procurassem uma sombra porque tinha que fazer "um serviço". Uma destas lhe atira no rosto sem nenhum respeito:
- Que tanto
"serviço" é esse, rapaz! Chega de tanto "serviço"!
Sem se
alterar, o chefe vai até onde estava o jovem, levanta-o pela abertura da camisa, encara-o, e sentencia com uma dureza de Velho Testamento:
- Eu agora vou
fazer um "serviço" em você mode você não deixar descendença de famia em riba do chão. Desça as calças!
O rapaz cobre
o rosto e cai, compreendendo finalmente no que se
metera. Saio grito:
- Valha-me
Nossa Senhora!
E a resposta
incrível:
- Ah, não tem
o que fazer. É Nossa Senhora mesmo que está mandando.
O punhal longo
corre rápido pela virilha da vítima e estoura o cinturão com movimento de alavanca. Calças arriadas, Virgínio ordena:
- Segure (os
testículos) senão eu toro com tudo (com o pênis)!
Embainha o
punhal de quatro palmos e dois dedos (seria perdido horas depois e recolhido à delegacia do Buíque) e bate mão de uma peixeira, faca ainda pouco conhecida no sertão à época. Um golpe só e o bandido tem nas mãos bolsa e testículos do jovem. Caminha, ainda lentamente, reingressa no arruado e chega à porta de d. Ester, com as mãos em concha ensanguentadas, e diz, educadamente:
- Dona, eu
tinha visto que a senhora estava com feijão no fogo. Quer os colhões de um porco?
E despeja tudo
na panela de barro, sem esperar resposta. O feijão espuma. A mulher agradece. Virgínio sai e vai juntar-se aos companheiros.
Risadagem. De cima do cavalo, dirige-se ao jovem caído, a perder muito
sangue, e receita exatamente a assepsia eficaz da vaqueirice:
- Bote sal,
cinza e pimenta!
O
lugar-tenente Moreno volta da rua, onde se detivera a ameaçar com o mesmo "serviço" ao também jovem Antônio Leite Cavalcanti, o Antônio Grosso, e ao prisioneiro Epifânio que, velho e desiludido de futuro, reage duramente ao bandido, caindo-lhe na admiração. Moreno grita na rua:
- Oh, véio
macho! Ninguém me toca mais num fio de cabelo dessa onça... Só assim eu vou sabendo que muié pariu home no Morro Redondo!
Ao juntar-se
ao grupo, Moreno já encontra o chefe aos safanões com um paisano acertado para guiá-los até a Serra do Coqueiro, mas que dizia não poder fazê-lo como o chefe queria: "sem incruzá cum rodage, tri' de trem, linha de telegue nem cortá arame". Uma aula de como a geografia do cangaço empurrava cada vez mais seu elemento humano para os grotões arredados de todo progresso...
A custo, aceitam torar os arames de uma solta e se perdem para o norte, num chouto denotador de pouca preocupação com perseguidores.
No dia 25 do mesmo mês, vindo de Rio Branco (atual Arcoverde) na segunda classe do trem da Great Westem, o jovem Manuel Luís Bezerra, o Mané Lulu, filho de Francelina e Luís Bezerra, naturais, como o filho, ali mesmo do Catimbau do Buíque, chegava ao Recife, ficando por um mês no Serviço de Pronto Socorro da Capital, após o que voltaria a pé para a sua residência.
Fonte:
Fundação Joaquim Nabuco
Fonte: facebook
http://blogdomendesemendes.blogspot.com