Por Alfredo Silva
Há exatos 81
anos, morria Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião, e Maria Gomes de
Oliveira, a Maria Bonita. Seu bando de temidos cangaceiros estava na fazenda
Angico, considerada por Lampião como um de seus esconderijos mais seguros,
quando durante uma noite chuvosa, em 27 julho de 1938, a Volante, polícia
especializada em combater o cangaço, aproximou-se furtivamente do local.
Foi apenas na
manhã seguinte que um dos cangaceiros notou algo fora do comum e soou o alarme.
Era tarde demais! Por vinte minutos, a força militar do Estado disparou suas
metralhadoras portáteis e Lampião foi um dos primeiros a cair.
Desorientados
pela súbita morte de seu capitão, os cangaceiros ofereceram pouca resistência.
Maria Bonita, Quinta-Feira e Mergulhão foram degolados ainda vivos. Dos 34
cangaceiros do bando, 11 morreram no ataque.
Lampião não
era uma alma pura, mas não era uma alma pequena e vulgar, era uma alma grande.
Ariano
Suassuna
Lampião e
Maria Bonita foram as personagens mais famosas do fenômeno do Cangaço, ambos
eram tidos como figuras heróicas e símbolos de resistência à violência do
Estado e dos grandes fazendeiros. No entanto, na visão de alguns, são
caracterizados como assassinos sanguinários.
Não há como
negar, porém, que os cangaceiros não foram bandidos comuns. Enquanto a miséria
descoloria o Sertão, eles andavam orgulhosos, adornados com cores vibrantes e
símbolos de proteção.
Lustrosos,
cheios de brilhos de ouro e prata, lenço de seda no pescoço, bornal adornado
com flores bordadas, bandoleira cuidadosamente coberta com moedas e metais
preciosos, esses homens e mulheres exibiam em suas roupas de couro uma
infinidade de tecidos coloridos. Na secura da vida nordestina, o Cangaceiro era
uma figura grandiosa, exótica, quase alienígena.
Cangaceiro não
vive só de briga. Lampião sabia tocar uma gaita de oito baixos. E seus homens
gostavam de dançar. Havia preferências pelos enfeites de ouro, muitos levavam
moedas esterlinas no chapéu. Ah, era bonito. E o perfume, então? Todos usavam.
E não economizavam.
Depoimento do
Cangaceiro Balão
A adesão ao
Cangaço tinha um preço alto. Era preciso saber que se viveria, a partir daquele
momento, uma vida de guerra e morte eminente. A recompensa para essa vida era
recuperar o orgulho próprio. Ser cangaceiro, muitas vezes, representava um ato
de rebeldia contra a opressão do Coronelismo.
Por isso, a
tropa caminhava sempre perfumada, cantando canções do sertão, orgulhosos de sua
cultura sertaneja, e ostentando a riqueza que tomavam dos opressores.
Desta forma,
um olhar sobre o universo cultural, que tem origem no povo sertanejo, mas
atinge proporções grandiosas sob o fenômeno do Cangaço, nos mostra uma condição
mais profunda do povo brasileiro; revela uma cultura rica, colorida,
espetaculosa que é abafada pelo contínuo cinza da exploração.
Não é possível
reduzir o Cangaço a um simples fenômeno de banditismo social, Cangaço foi
expressão, cultura, descoberta, violência, aprendizado e uma lição sobre um
povo rico e valoroso.
Eu estava
junto de Corisco quando chegou a notícia da morte de Lampião. Ele parou, cobriu
os olhos e disse: acabou-se o divertimento do mundo!
Depoimento de
Pancada
Relembrando os
80 anos da morte de Lampião e Maria Bonita, o especial Sentidos do Cangaço
busca iluminar um pouco da cultura da Cangaço e, por consequência, do povo
brasileiro.
A visão das cores
A razão que o
levou a fazer-se bandoleiro foi achar bonito o traje dos facínoras que
encontrava, notar o temor e respeito que infundiam, e querer ser na vida alguma
coisa.
Depoimento do
cangaceiro Cobra Verde, 1938
Passando pelo
Raso da Catarina, região de caatinga no centro-oeste baiano, em 1930, Dadá,
cangaceira e companheira de Corisco, precisou repousar devido à sua gravidez.
Para passar o tempo, bordou uma textura floral em um bornal de seu marido.
Lampião, ao
ver o bornal enfeitado, ficou encantado e pediu que ela também enfeitasse seu
conjunto de quatro bornais. Dadá, neste momento, inaugurou, com o incentivo do
Capitão Lampião, uma nova tradição estética.
Os dez últimos
anos do Cangaço, que contaram com a presença das mulheres, constituem o período
mais rico esteticamente para os cangaceiros.
Nessa época, o
traje de guerra desses homens e mulheres foi ganhando novas cores. Exímio
costureiro, Capitão Lampião passou a bordar bornais em sua máquina para
presentear seus homens mais valorosos. Assim, o bordado, comum na cultura
popular sertaneja, se tornou uma medalha de valor e orgulho concedida a um
soldado.
O toque do couro
Vinham tão
ornamentados e atreviados de cores berrantes que mais pareciam fantasiados para
um carnaval. Todos armados de mosquetão, ostentando trajes originais
bizarramente adornados, entram cantando suas canções de guerra, como se
tivessem em plena diabólica folia carnavalesca.
Jornalista
amador ao presenciar a entrada do grupo na cidade de Tucano, Bahia, 1928
O traje do
cangaceiro era imponente. Com toda sorte de adaptações necessárias para
enfrentar a caatinga, só poderia ser comparado em força e engenhosidade aos
trajes dos cavaleiros medievais ou dos guerreiros samurais.
Na cabeça
vinha o chapéu de couro, ícone da cultura sertaneja. A aba, quebrada para
evitar que o vento o derrubasse em cavalgadas, também servia para não impedir a
visão acima da testa. Com toda uma salva de saberes e engenhosidades
necessárias, tornava-se, desta forma, mais difícil para os cangaceiros caírem
em emboscadas.
Nas laterais
do chapéu, se prendia uma pequena chuva de fitas de couro que serviam para toda
sorte de emergências, como uma alpargata arruinada, um ferimento aberto. Sobre
a testa e pela lateral do rosto, pendiam cintas que serviam para a fixação da
peça sobre a cabeça. Nelas eram fixadas moedas de prata e ouro, libras e
pequenas medalhas com dizeres como “Deus te guie”. O uso do chapéu de
cangaceiro não era apenas funcional, era uma peça também simbólica.
Em volta do
pescoço, era preso um lenço de seda chamado jabiraca. A cor preferida pelos
homens era o vermelho, mas existiam outras. Era, também, uma peça bonita e
cheia de funcionalidades. Com ele, se podia filtrar água barrenta ou espremida
de raízes e tubérculos como o xique-xique, servia também para secar o suor do rosto
e aplicar torniquetes. A peça não era fixada através de nós, suas pontas
desciam por uma coleção de anéis de ouro, que davam uma pista sobre a patente
do cangaceiro.
Todo conjunto
era composto por uma complexidade de correias. Por baixo, vestia-se a túnica,
feita de brim ou tecido grosso. Sobre os ombros, em “x”, eram colocadas as
cobertas, “a de deitar e a de se cobrir”. Sobre as cobertas vinham os bornais,
também dispostos em “x” e fixados com uma tira na altura da cintura.
Por cima de
tudo isso, estrategicamente posicionadas, vinham as cartucheiras de munição. O
peso das roupas, equipamentos, munição, mantimentos e todo tipo de miudezas
passava de trinta quilos – quase dez a mais do que o recomendado pelo Exército
para soldados dessas regiões.
O primeiro
grande feito de Lampião como líder de um grupo foi o assalto a casa da Baronesa
de Água Branca, em 1922, em Alagoas.
Em uma ação
espetacular, os bandoleiros invadiram a cidade, renderam as tropas do exército
e assaltaram as casas mais ricas. Por último, entraram na casa da Baronesa, de
onde tiraram uma grande soma de dinheiro, joias, incluindo um crucifixo de ouro
que mais tarde seria usado por Maria Bonita, e toda uma miríade de objetos que
apenas a elite tinha acesso.
A partir
disso, Lampião tomou gosto por hábitos da elite, incluindo o uso de perfumes
franceses.
A voz do sertanejo
O bando
cantava as toadas do xaxado em primeira, segunda e terceira voz.
Depoimento de
Dona Maura Lima de Araújo, presente durante visita do bando de Lampião à
fazenda da Pedra
Enquanto a voz
oficial condenava o Cangaço, a cultura popular sertaneja ilustrava seus feitos.
As lendas dos capitães eram contadas em versos de feira e na literatura do
cordel.
As aventuras
dos cangaceiros eram logo cantados em repentes nas feiras das cidades mais
próximas. Cada artista que escrevia parecia torcer para o seu bando preferido.
No grupo de
Lampião, Zé Baiano, Moura e, depois, Jitirana dividiam as composições.
Frederico Mello, em seu livro, conta inclusive, que o próprio Lampião cantava,
apesar de Dadá dizer que sua voz era esfarrapada.
O paladar do Sertão
Convencemo-nos,
à força de observações repetidas, que tais coisas se usam porque as usa Lampião
e seus sequazes que, mesmo bandidos, são, ao espírito rude do sertanejo,
paradigmas de bravura e intrepidez.
Relatório da
Comissão Acadêmica Coronel Lucena ao interventor federal de Pernambuco, 17 de
agosto de 1938
Na dureza da
caatinga alimentar-se exigia sabedoria. Dispondo apenas dos produtos
encontrados nos mercados do nordeste, e eventualmente alguma caça, a tropa
precisava preparar-se para travessias que podiam durar semanas. A base da
alimentação era carne, salgada para maior durabilidade, a farinha e a rapadura.
Em dias de
fartura ainda se consumia leite, café e requeijão. No aperto, porém, até mesmo
o xique-xique, espécie de cacto da caatinga, virava a refeição da vez.
A carne,
geralmente de bode, era consumida sempre assada em fogueiras, uma vez que
cozinhá-la exigia mais tempo de fogo aceso, e a fumaça poderia denunciar a
posição do bando.
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