Autor –
Rostand Medeiros
Era uma época onde o rádio se popularizava, mas os cariocas ainda sabiam dos
acontecimentos do seu país e do mundo pelas várias edições diárias dos inúmeros
periódicos que circulavam pela então Capital Federal. Já a distração era
ocupada em grande parte pelo crescente futebol pré-Maracanã, pelos cinemas e os
inúmeros teatros, onde os espetáculos do chamado teatro de revista eram muito
populares[1].
A figura do temido cangaceiro em uma peça do Teatro
de Revista do Rio de Janeiro
No início do século XX este tipo de apresentação teatral apresentava entre
outras coisas aquilo que era considerado picante ou obsceno. Tinha a intenção
de agradar o público de maneira abrangente, a que preço fosse. Nessa época o
teatro popular era a maior diversão e o teatro de revista era o principal polo
da cultura popular.
Com a Primeira Guerra Mundial o Brasil ficou separado do resto do mundo, sem
receber influências do estrangeiro, e cada vez mais o teatro de revista
nacionalizava-se, entrelaçando a música popular de forma estreita e
indissolúvel. Afastando-se do modelo luso-francês surgiu uma nova fórmula onde
a melodia passou a ser parte integrante do conjunto. O teatro popular havia
adquirido um perfil tipicamente nacional iniciando uma nova fase na História
Social da cultura brasileira. Havia neste contexto espaço para as criações
regionais, colocando no palco personagens sertanejos.
No Rio de Janeiro a dupla Jararaca e Ratinho passa a fazer teatro de revista em
1929. Estes artistas faziam números mistos de músicas e piadas, explorando
canções sertanejas, o humor, melodias, o trocadilho, as adivinhações, as
críticas e sátiras políticas[2].
Renascendo das Cinzas
O imigrante italiano Pascoal Segreto, um descobridor de talentos, portador de
uma visão empresarial extraordinária, mantinha várias companhias. Ele investiu
no teatro de revista, sendo chamado pelo ator Procópio Ferreira de “papa do
teatro brasileiro“. O seu principal empreendimento teatral foi a Companhia de
Operetas, Mágicas e Revistas do Teatro São José, este também de sua
propriedade[3].
Em 12 de setembro de 1931, com o São José funcionando como cine-teatro, após a
apresentação de “Amores e Modas”, de Mauro de Almeida, quando tinha início o
filme “A minha noite de núpcias”, de Leopoldo Fróes, o prédio pegou fogo, só
ficando de pé a fachada e as escadas laterais da sala de espera.
Intentando criar a casa da canção nacional, o dançarino e produtor Duque, em
parceria com Segretto, aproveitou a parte não incendiada do teatro e instalou a
Casa de Caboclo, reproduzindo a morada do nosso tabaréu: o madeiramento
rústico, de paus toscos, coberturas de sapé, formando frisas e camarotes; palco
e uma varanda de casa da roça, ao fundo[4].
Pascoal
Segretto – Fonte – Wikipidea.org
No periódico carioca “Correio da manhã”, de 10 de setembro de 1932, as
impressões da nova companhia de revista do Rio de Janeiro foi de certo espanto
com o fato que tudo ali apresentado era “brasileiro”. Comentaram que “tudo é
nosso: toadas, a suavidade das modinhas, desafios”. A apresentação de
espetáculos tipicamente brasileiros não era novidade no Rio, mas a Casa do Caboclo
chamou a atenção de maneira positiva da imprensa e do público.
Atores e Músicos de Primeira Qualidade
Dentro da estrutura clássica, entre quadros cômicos, sambas e marchinhas
carnavalescas, a tônica dominante incidia no humor caipira, como por exemplo,
as famosas imitações que Jararaca e Ratinho faziam de Getúlio Vargas e
Washington Luís.
Em 1922 os
Turunas Pernambucanos desembarcavam no Rio de Janeiro. Entre eles, Jararaca (o terceiro
sentado à direita) e Ratinho (de pé, à esquerda, com o clarinete).
Pela foto
podemos ver que o carioca conheceu a roupa e o imaginário dos cangaceiros ainda
no início da década de 1920
– Fonte – http://mpbantiga.blogspot.com.br/
Certamente que uma das razões deste êxito estava nos atores, atrizes e músicos
que ali se apresentavam. Muitos destes fazem parte de qualquer trabalho
referencial sobre as artes no Brasil. Além de Alvarenga e Ranchinho estava na
companhia uma jovem atriz de 25 anos, chamada Dolores Gonçalves Costa, mas que
ficou conhecida como Dercy Gonçalves. No grupo de músicos um negro forte, que
era flautista, saxofonista, compositor, arranjador e se chamava Alfredo da
Rocha Vianna Filho, mas já era conhecido como Pixinguinha. Dois anos depois da
companhia inaugurada foi contratada uma jovem de apenas 16 anos, chamada
Vicentina de Paula Oliveira, mas que já se apresentava artisticamente como
Dalva de Oliveira. Neste mesmo ano Francisco José Freire Júnior, mais
conhecido como Freire Júnior, estreou na Casa de Caboclo com a revista
“Carnaval do sertão”, de autoria de Duque.
O Nordestino Mais Comentado no Rio
Em uma entrevista ao jornal “Diário da Noite” (Ed. de 5/7/1933, pág. 3), Duque
comentou que seu sucesso em terras estrangeiras se devia muito ao nosso
folclore, as características das raízes do Brasil, mas que para ele era muito
pouco conhecido pelo público brasileiro em geral. Por isso a razão de criar
aquela companhia teatral. Para Duque, tudo que fosse regional e chamasse
atenção deveria ser apresentado na Casa do Caboclo. E se havia algo que vinha
do Nordeste e repercutia com força nos jornais cariocas, eram as ações do
cangaceiro Lampião e seu bando.
Antônio
Lopes de Amorim Diniz Miranda, o Duque.
Mesmo atuando em uma região onde a infraestrutura era quase nada, as
comunicações precárias, o apoio do Governo Federal mínimo, as peripécias e
façanhas de Lampião eram publicadas quase diariamente em alguns periódicos
cariocas.
O nome de Lampião tomou outra dimensão no Rio quando, no primeiro semestre de
1931, o capitão do Exército Carlos Chevalier, piloto da Aviação Militar,
decidiu criar uma expedição militar ao interior nordestino. Pensava em utilizar
aviões e aparato bélico moderno para caçar e matar o “Rei dos Cangaceiros”.
Esta pretensa ação militar causou muito estardalhaço na imprensa e no meio do
povo. Logo voluntários esbravejando muita valentia apareciam nas páginas dos
jornais querendo pegar em armas. O negócio teve tal alcance que o plano foi
apresentado a Osvaldo Euclides de Sousa Aranha, então ministro da justiça.
Homem inteligente e capaz, mas certamente por ser gaúcho de Alegrete e
desconhecer o sertão nordestino, Aranha caiu como um verdadeiro pato nesta
maluquice desenvolvida pela mente necessitada de holofotes de Carlos Chevalier[5].
O inusitado plano encheu as páginas dos jornais cariocas, mas jamais saiu do
papel para a ação prática. O capitão se tornou motivo de piada e Lampião se
tornava cada vez mais conhecido na Capital Federal. Com um nome tão popular
entre os cariocas, logo Lampião e o cangaço seriam atrações na Casa do Caboclo.
Lampião Vem Para a Festa
A peça foi promovida e dirigida por Duque. No final de agosto de 1933 ele
divulga na imprensa que em breve estrearia “Lampião chegou ao arraiá”.
A primeira apresentação ocorreu no sábado, 26 de agosto. Segundo os jornais
cariocas o autor e diretor buscou explorar “a popularidade trágica do célebre
cangaceiro nordestino”, mas sem esquecer o lado cômico, reservando aos
espectadores “uma surpresa engraçadíssima” durante as cenas. Infelizmente os
jornais não detalharam como seria o enquadramento deste contraste entre “a
popularidade trágica” envolvendo a figura de Lampião, com “uma surpresa
engraçadíssima”. Mas pelo próprio nome da peça “Lampião chegou ao arraiá”, deveria
ser uma cena que evocaria uma chegada inesperada do cangaceiro em meio a
festejos juninos. Mas isso é pura especulação!
Para promover
a peça a “troupe” da Casa do Caboclo decidiu realizar uma “passeata” pela Praça
Tiradentes, onde se encontrava o Teatro São José, inclusive com os atores
montados em alimárias.
Pela foto (acima) existente deste evento, podemos ver que o nível de reprodução
cenográfica das roupas e equipagens do grupo de cangaceiro de Lampião ficou
muito a desejar.
Nesta época Lampião e outros cangaceiros já haviam sido fotografados e,
aparentemente pelo sucesso da companhia teatral, o problema desta cenografia
tão limitada não foi dinheiro. Provavelmente tinha mais haver com a ideia de
“Lampião chegou ao arraiá” ser uma peça cômica, onde o detalhamento não merecia
a devida atenção.
Conclusão
“Lampião chegou ao arraiá” foi, como a maioria do trabalho desenvolvido por
Duque na Casa do Caboclo, um sucesso. Ela não sofre nenhum processo de censura
e nem os jornais tratam das apresentações de forma negativa. Mas igualmente não
trazem maiores detalhes.
Atores e
atrizes da Casa do Caboclo.
Certamente este e outros espetáculos que tinham como figura central o “Rei do
Cangaço” foram produzidos no Rio de Janeiro. Seguramente estas apresentações
ajudaram a popularizar entre os cariocas (talvez de forma destorcida) a imagem
de Lampião[6].
Esta popularização só tendeu a crescer nos anos vindouros da década de 1930,
principalmente com o trabalho de libanês Benjamin Abrahão Botto. As fotos e o
filme por ele realizado, e censurado pelo Estado Novo, de um lado ajudaram a
manter na mente de todos os brasileiros a imagem de Lampião, Maria Bonita e
seus “cabras”. Mas esta exposição também contribuiu para que as autoridades do
regime de força de Getúlio Vargas acentuasse junto às autoridades estaduais
nordestinas a necessidade do fim deste cangaceiro. Como de fato ocorreu no dia
28 de julho de 1938.
Referências
– Para compreender melhor como era A Casa de Caboclo, ver uma
representação do especial da TV Globo “Dercy de verdade” - http://globotv.globo.com/rede-globo/dercy-de-verdade/v/dercy-se-apresenta-na-casa-de-caboclo-e-e-superaplaudida/1762999/
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1413-77042009000100005&script=sci_arttext#tx27
http://www.dicionariompb.com.br/freire-junior/dados-artisticos
www.mackenzie.br/…/O_teatro_popular_Rio_de_Janeiro__a_cidade_
polifonica__1930-1945_.pdf - Cadernos de Pós-Graduação em
Educação, Arte e História da Cultura, “O teatro popular: Rio de Janeiro, a
cidade polifônica (1930-1945)”, artigo produzido sob a coordenação e
organização de Arnaldo Daraya Contier (Professor do Programa de Pós-Graduação
em Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana
Mackenzie.), com a participação de Andréa Cristina Primerano, Andréa
Rodrigues, Keila Haddad de Oliveira, Nívea Lopes (Alunas do Curso de Mestrado
do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da
Universidade Presbiteriana Mackenzie).
http://www.allaboutarts.com.br/default.aspx?PageCode=12&PageGrid=Bio&item=0801M2
[1] O que se
chama teatro de revista é um género de teatro, de gosto marcadamente popular,
que teve alguma importância na história das artes cênicas, tanto no
Brasil como em Portugal, que tinha como caracteres principais a
apresentação de números musicais, apelo à sensualidade e a comédia leve com
críticas sociais e políticas, e que teve seu auge em meados do século XX.
[2] José Luís Rodrigues Calazans, o Jararaca, era natural de Maceió,
Alagoas, e Severino Rangel de Carvalho, o Ratinho. era paraibano
da cidade de Itabaiana. Formaram uma dupla caipira, ou sertaneja, e fizeram as
respectivas carreiras praticamente enfocando o gênero regional. Além de cantores
foram compositores, atores e humoristas. Atuaram no teatro, rádio, cinema e
televisão.
[3] O Almanak Laemmert aponta que o Teatro São José possuía em 1926 a lotação
de 2 frisas, 28 camarotes, 840 poltronas, 57 balcões e 30 gerais.
[4] Duque, cujo nome verdadeiro era Antônio Lopes de Amorim Diniz Miranda, era
protético dental de formação, mas dedicou-se à dança, criou coreografias,
compôs canções que ficaram famosas. Excelente dançarino encontrou dificuldades
e, em 1906, foi para Paris. Sua habilidade no maxixe foi fundamental para o
sucesso na França. Maria Lino foi sua primeira parceira na Europa, mas a
parceria mais longeva foi com a francesa Gaby. Logo, Duque abriu uma escola de
dança em Paris e se apresentou com sucesso na América do Norte. De volta ao
Brasil, escreveu e dirigiu revistas, ensinou no Conservatório Teatral e fundou
a Casa de Caboclo.
[5] Sabemos que Carlos Saldanha da Gama Chevalier é autor do livro “Os 18 do
Forte”, uma coletânea sobre a vida do militar e revolucionário Siqueira Campos.
Em 1 de outubro de 1927, o então 1º tenente Chevalier, realizou no Campo dos
Afonsos (RJ) o primeiro salto de paraquedas no Brasil. Foi utilizado um avião
Breguet 14 pilotado pelo 1º tenente Aroldo Borges Leitão e tendo como
observador o capitão Átila Silveira de Oliveira.
[6] Provavelmente o teatro de revista deve ter produzido outros trabalhos com
foco em Lampião e no cangaço. Sabemos que em outubro de 1938, após sua morte,
foi encenada no Rio a peça “Lampeão, o caboclo máu”.
Extraído do blog "Tok de História" do historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros:
http://lampiaoaceso.blogspot.com.br/2014/05/influencias.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com