MEMÓRIAS DO
HOMEM
QUE DECAPITOU
MARIA BONITA
Por Leonencio
Nossa
“NEGRO”, QUE
ERA POLICIAL NAQUELA ÉPOCA ,
GARANTE QUE
MARIA BONITA JÁ ESTAVA MORTA
OROCÓ (PE) –
Ele ajudou a cortar a cabeça de Maria Bonita com faca tão afiada quanto a
própria memória. Depois de trocar tiros e punhaladas com cangaceiros na
juventude, Augusto Gomes de Menezes, um policial aposentado que acaba de
completar 85 anos, virou contador de histórias do cangaço e de Orocó, cidade
sertaneja a 620 quilômetros do Recife, às margens do rio São Francisco. Um
lugar violento e pobre, com 10 mil moradores, onde mais de 5% das crianças
morrem nos primeiros dias de vida.
Negro, como
era chamado pelos colegas de polícia, participou de um capítulo decisivo da
história do Sertão. O cenário é a fazenda Angicos, em Flor da Mata, atual Poço
Redondo (AL), na manhã de 28 de julho de 1938. O bandido Virgulino Ferreira da
Silva, o Lampião, escondia-se no local com seus homens. “Morreram nove
cangaceiros e duas cangaceiras, Enedina e Maria Bonita”, inicia a prosa. “Maria
Bonita morreu pertinho dele, Lampião, assim como daqui ali naquela parede”.
Sentado numa cadeira de plástico, na sala da casa de estuque, onde mora com
duas filhas, Negro não reivindica papel de destaque na ação que resultou na
decapitação do bando de Lampião. “Quando eu cortei a cabeça dela (Maria
Bonita), não estava mais viva, não”, diz. “Num combate anterior, eu gritei pra
ele (Lampião): ‘Traz tua mãe, filho da peste, pra tirar raça de homem valente!’
Ele gritava pra gente também: ‘Taca espora na tua mãe, aquela égua’”, exclamou.
Pesquisador da
Fundação Joaquim Nabuco, do Recife, Frederico Pernambucano de Mello afirma que
Negro é personagem desconhecido pela história, talvez por ter sido soldado raso
da campanha contra Lampião.
Na avaliação
de Mello, o depoimento do aposentado ao “Estado” não apresenta contradições,
especialmente na descrição do massacre de Angicos, e preenche lacunas, como por
exemplo, a morte do cangaceiro Mané Velho, em 1937. O pesquisador planeja uma
viagem a Orocó para conhecê-lo.
Hormônios – O
aposentado mostra uma foto da época. “Este aqui sou eu”, aponta para um dos
retratados. “Já este aqui é o cabo Terror, que tinha esse apelido porque era um
terror mesmo.” Negro desafia o crespúsculo de Orocó. Entre um cigarro de palha
e outro, vai construindo imagens mais vivas que o presente, feitas de duelos e
sangue.
“Só de bornal
nas costas eu tenho cinco anos”, fala numa alusão ao período em que ficou
isolado na caatinga. “Desses cinco anos, só descansei oito dias”. Negro ri do
fato de o povo de Orocó ter pensado que ele deu o primeiro tiro em Lampião. O
aposentado esclarece que não foi bem assim. “Muita gente ainda jura que ele
morre por mim, não sabe?” Negro deixa claro que só quem viveu o período é capaz
de acreditar nos feitos atribuídos a Lampião. “Numa fazenda em Simão Dias,
mataram dois rapazes, defloraram uma moça e cortaram a língua de uma velha”,
diz. “A gente perguntou a ela o que acontece, e ela: ahhh... Não disse nada.
Coitada, não tinha culpa, pois não tinha língua.”
Homens
valentes e mulheres decididas não fizeram sozinhos a história do cangaço.
Muitos integrantes do bando de Lampião viviam a explosão dos hormônios. Menores
também foram sados na repressão aos bandidos. Negro era um deles. Nascido na
cidade baiana de Curaçá, em 1916, foi recrutado ainda menino pelo governo. Não
tinha completado 22 anos quando participou do combate de Angicos.
“Com 14 anos
peguei na espingarda para perseguir gente ruim e só saí quando acabou o
derradeiro, em 1941”, afirma, numa referência ao fim do cangaço. E era na
caatinga, longe das vilas e cidades que os meninos descobriam a sexualidade. A
caça aos cangaceiros levava os jovens das volantes a ficarem meses afastados de
mulheres. O jeito era se virar com animais ou, se tivessem sorte, cangaceiras
capturadas.
PARA PEGAR
BANDIDO NA CAATINGA , SÓ SE FOR A PÉ
Policial
aposentado discorda dos meios usados pela polícia e pelo Exército
Um dos últimos
sobreviventes do combate de Angicos, o policial aposentado Augusto Gomes de
Menezes, o Negro, discorda das ações atuais das polícias e do Exército contra
assaltantes de caminhões e traficantes de drogas em Pernambuco. Ele releva o
fato de os fuzis e as metralhadoras terem substituído os punhais no sertão. “Eu
não posso informar nada da polícia de hoje, mas o que eu acho é que carro com
sirene não é modo de perseguir gente ruim”, afirma. “Na caatinga não dá para
entrar de carro.”
Negro lembra
que para caçar cangaceiros o jeito era andar a pé, sem mula ou viatura. Vida na
caatinga era à base de carne, farinha e rapadura. A farinha ficava no bornal. O
jeito era meter a mão no bornal. “A gente não tinha tempo de assar carne, comia
crua mesmo, tirava a dente”, conta. A escassez de água levava o grupo a apelar
para a rapadura. “A gente passava até sete dias sem beber”, dramatiza. “Isso
escureceu a vista de todo mundo.”
O policial
aposentado se casou e enviuvou duas vezes. Da primeira união, com Ocília
Barbosa, em 1940, nasceram dez filhos. A mulher morreu 33 anos depois, quando
os dois já estavam separados. “Ela caiu de repente e morreu”, lembra. Quem
também morreu por nada, há oito anos, foi Antônia Maria do Nascimento, com quem
teve mais oito crianças. Dos 18 filhos de Negro, restaram dez. Amigos não
faltam; de solidão, reclama pouco. O maior problema, segundo ele, é o salário
mínimo que recebe da Previdência Social.
A casa de
Negro não tem televisão nem guarda-roupas. Também faltam baús. Segredos e
histórias de uma polícia violenta e criminosa estão na memória do homem que
após participar das volantes foi chamado para lutar na Segunda Guerra Mundial –
chegou a se apresentar em Salvador, mas a guerra acabou uma semana antes.
Negro
colaborou com o Exército na repressão aos integralistas da Bahia, durante o
Estado Novo de Vargas, e no auge do regime militar, nos anos 60. Sobre essa
época, pouco revela. Desconfia-se que passava informações sobre a geografia da
região. “Depois de sair da volante, eu trabalhei nesse negócio de pistolagem”,
diz sem ir adiante. Em 1965, no governo do marechal Castelo Branco, gente do
Exército andou prometendo “coisa” para o policial aposentado. (L.N.).
PARTILHA DE
BENS DO CANGAÇO GERAVA DISCÓRDIA ENTRE POLICIAIS
Tenente teria
ficado com maior parte do tesouro do bando de Lampião.
Os macacos,
como os policiais eram chamados pelos cangaceiros, travaram duelo particular
pela divisão do tesouro do bando de Lampião. Um dos integrantes da volante que
massacrou os criminosos, em 1938, Augusto Gomes de Menezes, o Negro, revela que
o chefe, o tenente João Bezerra, morto nos anos 70, ficou com a maior parte da
fortuna, cerca de 1200 contos de réis e cinco quilos de ouro. O prêmio máximo
da Loteria Federal valia, à época, 200 contos de réis. “A gente tinha ordem do
presidente que quem matasse cangaceiro ia ficar com os objetos dos mortos”,
diz.
Negro afirma
que o tenente não repartiu a fortuna e dá a lista dos nomes dos colegas de
farda que teriam sucumbido numa suposta operação travada por João Bezerra para
evitar a partilha. “Zé Gomes foi morto por um pistoleiro e Mané Velho conseguiu
escapulir.”
Mais de 60
anos depois da maior façanha da volante, Negro ainda tem raiva do tenente. “Eu
não fui perseguido pelo João Bezerra, mas ao mesmo tempo posso dizer que fui;
eu trabalhei demais”, diz resignado. “eles prometeram um negócio para mim e
nunca saiu.” Ele jura que não ficou com nenhum pertence dos cangaceiros. “Eu
peguei dez contos de réis de um, mas um colega me traiu.”
O pesquisador
Frederico Pernambucano de Mello desconhece as perseguições, mas confirma a
revolta dos soldados e a promessa de partilha. Há 40 anos estudando o cangaço,
Mello diz que Mané Velho era homem violento e que causava medo entre os
colegas. Após o massacre de Angicos, Mané Velho cortou as mãos do cangaceiro
Luís Pedro para ficar com os anéis de ouro.
Fotos das
revistas da época mostram as cabeças dos onze cangaceiros expostas na escadaria
da prefeitura de Piranhas, em Alagoas. O crânio de Lampião aparece no centro. A
mórbida cena é atenuada pelos chapéus com pedaços de ouro e signos de Salomão e
pelos bornais. “A estética do cangaço é uma arte nascida em circunstância de
conflito; seus símbolos não são apenas estéticos, mas possui funções místicas”,
avalia Mello, um dos curadores da Mostra do Redescobrimento.
“Numa
comparação universal, o traje do cangaceiro só se compara ao do samurai
japonês.” Nas andanças pelo sertão, Mello encontrou pessoas que afirmaram que a
cena de maior impacto na vida foi ver o bando de Lampião. “Tinha-se a impressão
de que o grupo, ao chegar às cidades, estava trajado como se fosse pular
carnaval”, diz. “Era uma mistura de pavor e êxtase; um êxtase estético, épico e
viril.” (L.N.)
Imagem
ilustrativa da matéria, de Augusto Gomes de Menezes (Negro).
Do acervo do pesquisador do cangaço Antônio Corrêa Sobrinho.
http://blogdomendesemendes.blogspot.com