Por Rangel Alves
da Costa*
Neste período
de final de ano, onde as sensibilidades ainda afloram em singelos corações, há
de se fugir da correria das compras e confraternizações, para o necessário
reencontro o pensamento nostálgico. E é bom rememorar aquilo que a caminhada
não conseguiu apagar da memória. Daí que me recordo agora de uma velha história
que um dia ouvi numa tarde de proseado debaixo de uma tamarineira.
É a história
de menino velho ou de um velho menino. E começava dizendo que com apenas cinco
anos ele já manejava a peleja de adolescente. Com oito anos já debulhava
esforço de rapaz feito. Com dez anos já era adulto de dobra, no esforço, na
lida, na vida. Depois disso, o amadurecimento e o envelhecimento, tudo num
passo só. E ainda não tinha nem quinze anos.
Na verdade,
pouco conheceu e vivenciou sua criancice. Sempre descalço, sujo, buchudinho,
cheio de verminoses, só teve tempo de arranhar a parede para lamber o barro. E
comia lama quando caía pingo d’água. Nunca brincou de cavalo de pau, correndo
atrás de bola de meia, ou galopando feito bicho solto pelos descampados.
Não tinha
tempo pra nada disso. Nem pra brincar debaixo da lua nem sonhar abaixo do
sombreado do umbuzeiro. Pouco entendia de mundo, de vida, de sua meninice, mas
tinha de se acostumar em carregar palma espinhenta para o cesto do gado, tirar
a palha cortante da espiga de milho seco, catar cavaco para o fogão de lenha,
ficar chamuscado das cinzas da coivara queimando na roça.
Certa feita a
professorinha – a única das redondezas – passou por ali e perguntou ao pai
quando a criança ia conhecer o mundo bonito do estudo, das letras. Pelo jeito
nunca, respondeu um homem de rude feição. Nunca tive estudo e parece que ele
também vai virar estrada sem assinar nem assuntar letra juntada. Tentou
justificar.
E prosseguiu dizendo
que o tempo estava tão ruim, a seca tão braba, sem nada sobre a terra que desse
sustento à família, que podia virar cumbuco e não achava vintém pra comprar ao
menos um calçado e uma roupinha pro filho. E menino esfarrapado não deve saber
nem o que é escola. Por isso ele não ia estudar não. Fica feio menino com lápis
na mão e de pé no chão.
Disse mais.
Não ia também porque precisava dele ajudando nos afazeres do dia inteiro. Ele
ajuda muito, é esforçadinho que só, asseverou. A professorinha, completamente
indignada com o que ouvia, disse que aquilo tudo era um absurdo e nada
justificava impedir o menino estudar para ter uma vida digna e muito melhor do
que aquela escravidão infantil ali vivida.
Saiu de lá
debaixo dos olhos feios do homem. Assustada mesmo. Mas não sem antes ouvir que
não passasse mais nem diante da cancela. Os cachorros latiram e ela
apressou-se. E já seguindo, caminhando pela estrada, olhou para trás para
avistar o garotinho recurvado com um feixe de lenha às costas. Chorou, se
envolveu em lágrimas, mas seguiu adiante.
Já estava em
torno dos oito anos, mas com a feição de vinte ou mais. Menino de pele clara,
mas agora já tomada de uma cor de barro queimado, de pote assado em olaria.
Cabelo bom, mas crispado, quebradiço, feio. Cicatrizes pelo rosto e pelo corpo,
as palmas das mãos duras e espinhentas, solado dos pés que nem sentia mais
ponta de espinho. E o olhar...
Antes dos doze
anos e já parecendo alquebrado. Em tudo a luta, o fazer, o revirar, o se ferir
e machucar. E em nada o menino, o molecote, o sertanejinho cheio de vida e de
esperança. Pelo contrário, muito pelo contrário. Talvez nem se reconhecesse
mais, não soubesse sua idade, o que ela significava, para que servia o viver.
Ora, não fazia outra coisa que não ser destruído pelo tempo, e sem ter tempo
pra nada que dissesse respeito a si mesmo.
Lua após
lua, envelhecendo demais ainda adolescente. Continuava vivendo feito bicho do
mato, sem tempo pra outra coisa a não ser lidar com a terra, tanger animal,
montar em jegue magro, afiar facão e foice, colocar cabo em enxada, arrancar
mato com a mão, fazer cerca de forquilha. Duas vezes picado por cobra, atacado
por enxame de abelhas, lombo furado por espinho de quipá.
Chegando a
idade adulta e o rapaz já recurvado, todo definhado, de corpo debilitado e
espírito tomado de desesperanças. Não precisava mais envelhecer para ser
completamente velho, no corpo e para o trabalho. Já não suportava mais fazer
muito esforço, planejar o que lhe restava da vida nem pensar no amanhã. E o
pior, um velho solitário. E com o pior tipo de solidão: esquecido pelo mundo.
Um dia alguém
passou pela estrada e viu um velho chorando junto ao tronco largo do umbuzeiro.
Foi chegando mais perto para ver o que estava acontecendo, mas antes de chegar
ouviu o velho perguntar se trazia um cavalo de pau e uma bola de gude. Era o
envelhecido querendo brincar de menino.
Poeta e
cronista
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