Por Rangel Alves
da Costa*
Nesta
sexta-feira, 18 de abril, a literatura sergipana e a poesia brasileira perderam
um dos maiores expoentes da arte do verso esculpido com a maestria dos grandes
artistas da palavra. José Santos Souza, ou simplesmente Santo Souza, faleceu
aos 95 anos, em sua própria residência, talvez enquanto sonhava ornando uma
estrofe que não seria escrita.
Natural de
Riachuelo, Santo Souza viveu em sua cidade natal até os 17 anos. Estudou
somente até o 3º ano primário, e daí em diante se fez reconhecido na condição de
autodidata. Já em Aracaju, trabalhou como manipulador em farmácia durante mais
de 25 anos. Manipulando fórmulas e medicamentos, talvez o fizesse com o mesmo
esmero com que trabalhava a palavra.
Sua
preocupação maior em escrever a ter seus versos publicados, fez com que muitos
achassem que havia abdicado de sua arte maior, eis que permanecia durante muito
tempo sem publicar qualquer obra. Ainda assim foi grande sua produção
literária: Cidade Subterrânea (1953), Caderno de Elegias (1954), Relíquias
(1955), Ode Órfica (1956), Pássaro de Pedra e Sono (1964), Concerto e
Arquitetura (1974), Pentáculo do Medo (1980), A Ode e o Medo (1988), Obra
Escolhida (1989), Âncoras de Arco (1994), A Construção do Espanto (1998), e
Rosa de Fogo e Lágrima (2004), Réquiem para Orfeu (2005), Deus Ensanguentado
(2008) e Crepúsculo de Esplendores (2010).
Foi um dos
escritores sergipanos mais premiados em concursos literários, sendo também
constantemente laureado pelo conjunto de sua obra, como ocorreu com o Grande
Prêmio de Crítica 1995, concedido pela associação de Críticos de Arte de São
Paulo. Sempre recluso, vivendo das e para as letras, carregava na feição e no
acolhimento a singeleza dos grandes homens. Era o maior poeta vivo de Sergipe e
um dos maiores do Brasil, mas se sentia melhor sendo reconhecido apenas como
Santo Souza. Foi membro da Academia Sergipana de Letras, ocupando a cadeira
nº 03; membro efetivo da Associação Sergipana de Imprensa; além de Membro
Correspondente da Academia Paulista de Letras. Também era integrante da Loja
Maçônica Cotinguiba.
A poesia de
Santo Souza possuía no orfismo sua vertente primordial. Poeta órfico porque
abordando temas sacros, investigando os mistérios da alma, trabalhando
conceitos ritualísticos e colocando o ser humano como dependente de forças
superiores. O ensaísta e crítico de arte Sérgio Milliet, ao referir-se ao livro
Ode Órfica, de 1956, o considerou como uma meditação sobre os mistérios da
vida, bem como a desilusão dos homens. Eis a presença do orfeísmo em sua obra,
nas estrofes iniciais de Ode Órfica I, do livro homônimo de 1956:
Era tão clara
a tua voz, e tão
limpo o teu
canto inaugural, ó noite,
que o tempo
adormecia em tuas mãos!
De início,
rejeitamos teus conselhos
dissimulados.
Nautas fugitivos,
eis que a nave
de Orfeu, que pilotávamos,
não nos
pertence mais, pois a ofertamos
àqueles que
hão de vir colher conosco
a treva e o
medo, embora eles, no lago,
com a vida e
as águas entre os braços, nos
surpreendam no
triângulo da morte,
os olhos
florescendo como peixes
que o teu
milagre, ó noite, fecundou!
Transportamos
pirâmides nos ombros,
para, sobre
elas, construir o mundo
que nós, por
sermos livres, sugerimos.
De música
fizemos nossos mares,
para conter o
céu que nos persegue.
Mas somos
frágeis para suportar
a cabeça do
Eterno, que se inclina
sonhando sobre
nós, enquanto vamos,
ladrões
famintos, carregando sombras.
Morrer? Não
era a morte o que sonhávamos.
Somos pobres
demais para morrer
com tanto ouro
nas mãos, tanto arco-íris
nos olhos
desta aurora que engendramos.
Transportamos
pirâmides nos ombros, escreveu o artista. E para, sobre elas, construir o
mundo, acrescentou. Em seguida diz que o homem é frágil demais para suportar os
grandes sonhos, vez que as esperanças são roubadas por qualquer um. Mas não
significava dizer que o homem deve se curvar e esperar a morte. Não, pois a
vida possui riquezas demais para lhe oferecer. E Santo Souza compreendia isso
em profundidade.
Sua poesia
transcende a simples escrita. Seus versos não são casuais ou ocasionais, vez
que tomados de ritos, místicas, simbologias religiosas, como luzes surgindo
quase mortas em mosteiros medievais tentando avistar os mistérios do mundo.
Neste sentido, é também esotérica, permeada de ocultismos e segredos que devem
ser revelados pelo próprio leitor. Na vida, enxerga o enigma, transforma em
verso e nos brinda com uma profusão de encontros. Tais aspectos podem ser
observados nos seguintes versos de Elegia número 16, do livro Caderno de
Elegias, de 1954:
Criaram flores
de existência efêmera,
criaram noites
e auroras nos caminhos,
aquários
musicais para a canção
e estátuas
para a vida e para a morte.
Criaram o teto
do céu que sustentamos
em colunas de
estrelas e de mares
e os rios que
afagamos, derramando
a poesia da
vida em nossas mãos.
E criaram
também rios insones
que as nossas
mãos jamais hão de acolher:
criaram faces
com sulcos para as lágrimas,
pois havia
corações para sofrer.
Mas sob o teto
do céu que sustentamos
nós somos
flores de existência efêmera
e – estátuas
para a vida e para a morte –
nos deram
olhos humanos para o pranto!
Santo Souza
fazia parte do círculo remanescente dos grandes poetas sergipanos. Seu percurso
foi longo e com estrada laureada já desde outros tempos, ainda na vivência e
convivência de um fazer poético verdadeiramente comprometido com a poesia
enquanto arte delineada tanto na forma como no conteúdo. Sua preocupação com a
visualização, o brilho e a intensidade dos versos foi uma de suas principais
características.
O artista não
se contentava com a pedra bruta. Talhava a pedra para oferecer a arte, e tudo
num remanso que só mesmo o tempo para compreender o que tanto tecia, forjava e
cinzelava aquelas mão negras, sempre cuidadosas com cada verso. Sabia que não
tinha a eternidade para preservar sua escrita, e somente o cimento férreo da
criatividade poética para eternizar o seu canto. E por isso mesmo forjou a
palavra para a imortalidade, pois sabendo que o homem era apenas o seu
condutor. Neste sentido, lê-se no seguinte excerto do Canto II, do livro Ode
Órfica:
Era vasto o
domínio. Nosso olhar
limitava o
destino das fronteiras
por onde a
morte inútil circulava.
Calculamos o
tempo e o esperdiçamos.
Fomos tardos
no avanço, e cedo vimos
fugir de
nossas mãos o leme, e a rota
se perdeu.
Nosso canto, diluído
nas águas, já
não rege o itinerário
desta sagrada
luta que engendramos:
perdido o
jogo, a morte nos suplanta.
Mas o jogo
jamais estará perdido, Santo Souza. Mesmo que o canto já não direcione o
itinerário da sagrada luta, ainda assim o poeta continuará com sua voz sob os
templos onde as musas eternizam a grande arte dos escolhidos.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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