Por Rangel Alves
da Costa*
O amor é
sentimento natural ao ser humano e se expressa ainda que nas condições mais
difíceis da vida. Na luta, o coração ouve o seu pulsar; na paz, a alma cativa
sua presença. E mesmo na refrega cangaceira não seria diferente. A verdade é
que o amor esteve mais presente no cotidiano cangaceiro do que se poderia
imaginar. E somente a doçura e beleza da mulher sertaneja para vencer sem
guerra aqueles corações celerados.
A concepção de
violência e brutalidade tantas vezes escondeu a feição sentimental também existente
naqueles corações sertanejos, amorosamente pulsantes como quaisquer outros.
Ademais, cangaceiros não estavam envoltos apenas nos seus aspectos de rudeza,
ignorância e ferocidade. Eram pessoas normais, e como tal também amantes,
enamorados, apaixonados. Contudo, mesmo a existência de um código de conduta
que também cuidava das relações amorosas, há relatos de sedução dos
bandoleiros perante as meninas sertanejas, traição e adultério no próprio
bando. Como algumas vezes ocorreu, trair o companheiro significava trazer no
corpo desonrado a sentença de morte.
Ora, um enredo
shakespeariano nas brenhas do mundo adentro! O meio realmente não era dos mais
apropriados. Entrecortando os sertões, ora num canto ora noutro, com poucos
instantes de sossego ao redor dos esconderijos, os cangaceiros sempre estavam
mais preocupados com a volante inimiga que qualquer outra coisa. Mas isto não
significa que deixassem de reservar instantes para ouvir a voz do coração e das
carências amorosas. Quem não tinha companheira no bando, certamente fazia dos
forrós nas povoações e fazendas uma forma de atrair mocinhas e donzelas.
Assim, mesmo
na vida aperreada do bando havia o reencontro daquelas pessoas com os seus
íntimos, com os seus laivos sentimentais. A lua imensa lá em cima fazia surgir
a saudade de alguém. Quando recolhidos em algum recanto coiteiro, os casais se
juntavam para apreciar as belezas da noite, o silêncio cortado pelas folhagens
esvoaçadas pela ventania, os vaga-lumes piscando na escuridão. E em momentos
assim, de saudade e ternura, de vez em quando um realejo era levado ao lábio,
um pífano ecoava dolente, uma velha sanfona abrasava os sentimentos.
E ainda em
ocasiões assim, onde a ilusória paz da escuridão trazia sonhos e desejos,
afortunados eram aqueles que podiam levar suas companheiras para as beiradas
dos rios, para detrás das pedreiras e dos morros, para os escondidos nos tufos
da mataria. E a entrega se dava por cima dos areais espinhentos, com os corpos
roçando em pontas de pedras e cipós, ao lado dos calangos e bichos rastejantes.
Mas difícil satisfazer plenamente os instintos num cotidiano apressado em tudo.
E eis os
instantes onde o desejo, a paixão, o instinto amoroso e o prazer, provam a
existência de um mesmo e prazeroso sexo no ser indistinto e nas situações ou
contextos mais inusitados. E simplesmente porque casais, porque pessoas que se
amavam e se desejavam, e não estavam naquela jornada inglória apenas para matar
ou morrer. Mas também para compartilhar do possível amor.
Zé de Julião - o Cajazeira
Muitos casais
faziam parte do bando de Lampião. Alguns já formados antes mesmo de enveredar
pelos caminhos cangaceiros, como foi o caso de Cajazeira e Enedina, e outros
constituídos após, quando o cangaceiro se interessava por alguma flor sertaneja
e tudo fazia para levá-la pelas veredas de sol e de lua. Os rapazes, chegados
ao bando geralmente muito moços, apenas saídos da adolescência, somente depois
encontravam nas povoações aquelas que lhes seguiriam pelos perigosos caminhos.
Apenas alguns já chegavam de aliança e par.
Enedina, esposa de Cajazeira
Muitas são as
histórias relatando as formas como se deram as uniões entre as mocinhas
sertanejas e aqueles rapazes galanteadores e temidos a um só tempo. Os
cangaceiros, cabeludos, banhados em perfumes, sempre carregando ornamentos
dourados por todo lugar, famosos demais aonde chegassem, causavam verdadeiro
rebuliço naqueles corações ainda inocentes. E de repente o temor dava lugar ao
amor. Já namorando Canário, Adília se disse enganada quando o rapaz a convidou
para uma viagem. Não sabia que era para acompanhá-lo no bando de Lampião, como
de fato ocorreu. Mas o acompanharia ainda que soubesse de antemão o destino que
teria.
Os cangaceiros Adília e Canário
Mas não era
nada fácil para as mocinhas de então. Mesmo apaixonada, desejosa de ser levada
de casa pelo braço cangaceiro, nem sempre conseguia seu intento, pois a família
tudo fazia para afastá-la das vistas daqueles homens tão perigosos. E muitos
pais até se mudavam por medo de ter sua filha levada para a vida bandida. Mas
quando era o cangaceiro que lançava o olhar sobre a mocinha e nela via uma
companheira ideal, então não havia o que fazer. A jovem era levada a qualquer
custo.
A cangaceira Sila esposa do cangaceiro Zé Sereno
Sila conta que
ficou compromissada ainda novinha, com cerca de treze anos, com o temido Zé
Sereno. No dia marcado, ele compareceu para levar consigo sua menina. Muitas
outras mocinhas ou mulheres já feitas encontraram naqueles homens das caatingas
a oportunidade de expressar seus desejos tão oprimidos naqueles sertões de
então. Acompanhavam os cangaceiros não só porque se sentiam atraídas por
aqueles símbolos de rude beleza, mas também pela necessidade de partilhar de
uma vida onde fossem reconhecidas como verdadeiras mulheres.
Mas o amor
trágico não ficou ausente do cangaço. São famosos os casos envolvendo as
cangaceiras Lídia, Cristina e Rosinha, mas esta última pela própria ausência do
amor cativante e protetor. Lídia, companheira de Zé Baiano, considerada a mais
bela entre todas as cangaceiras, traiu seu homem com o cangaceiro Bem-te-vi e
por aquele foi impiedosamente morta. Cristina, companheira do cangaceiro
Português, foi acusada de manter um romance com Gitirana. Perdoada ou enganada,
quando fazia o caminho de volta pra casa foi morta por Luís Pedro, amigo do
corneado.
Por sua vez,
Rosinha, mulher de Mariano, caiu nas desgraças após a morte deste. Grávida,
pediu a Lampião para ir passar uns tempos na casa da família. Mas temendo que a
cangaceira revelasse segredos do bando, o Capitão exigiu sua volta. Contudo,
seu destino já estava traçado, vez que sua sentença já estava dada pelo próprio
Lampião. Eis que havia o código de conduta no bando não permitindo que mulheres
deixassem suas fileiras, ainda que em estado de viuvez.
Mariano e Rosinha
Como afirmado,
os casais eram muitos no mundo cangaceiro e dentre os mais famosos estão
Corisco e Dadá, Zé Sereno e Sila, Canário e Adília, Cajazeira e Enedina, Luiz
Pedro e Neném, Zé Baiano e Lídia, e Criança e Dulce. Mas propositadamente não
citei Lampião e Maria Bonita. E não o fiz porque o mais famoso dos casais
cangaceiros talvez esteja além de uma mera síntese conjugal na vida bandoleira
dos carrascais.
Neném e Luiz Pedro
Em Lampião e
Maria Bonita toda a pujança de um amor que não mediu esforços para acontecer e
que aconteceu contradizendo a lógica daquele momento. Ele, o maior, o líder,
certamente podendo escolher como companheira qualquer mocinha que encontrasse,
preferiu lançar o olhar numa mulher casada. E ela, infortunada na vida amorosa
que levava, não pensou duas vezes em se entregar aos braços do Capitão. E os dois
se entrelaçaram naquele triste leito de morte de 38.
Poeta e
cronista
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