Lampião inspirou muita literatura, mas não foi a origem da palavra cangaço. No século XIX, ela já designava bandoleiros nordestinos que carregavam o rifle deitado sobre os ombros, lembrando a canga, arreio de madeira que vai sobre o pescoço dos bois, e o nome pegou. Canga, cangaço, cangaceiro. Filho de um pequeno proprietário rural, o rapaz sabia ler e era hábil artesão em couro. Mas entortou sua biografia em l915, quando acusou um empregado do vizinho José Saturnino de roubar uns bodes. A rixa entre as famílias durou anos. Em 1919, Virgulino e dois irmãos, Livino e Antônio, caíram no crime. Matavam gado do inimigo e assaltavam. No encalço dos três irmãos, a polícia prendeu um quarto, o inocente João. O pai, José Ferreira, fugiu. No caminho, hospedou-se na casa de um amigo, onde foi morto pela polícia. Virgulino, diz a lenda, jurou: "De hoje em diante vou matar até morrer "Crueldades varrem o Sertão. Não dá para enumerar as atrocidades cometidas por Lampião. Sob o escudo da vingança, ele tornou-se um "expert" em "sangrar" pessoas, enfiando-lhes longos punhais corpo adentro entre a clavícula e o pescoço. E consentiu que marcassem rostos de mulheres com ferro quente, Arrancou olhos, cortou orelhas e línguas. Castrou um homem dizendo que ele precisava engordar. Não há nada que justifique práticas assim. Mas muitos pesquisadores tentam explicá-las. "Lampião é um produto do seu meio", arrisca
Paulo Medeiros Gastão, presidente da Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço, com sede em Mossoró (RN). "Ele foi levado por fatores ligados à vida no sertão, como ignorância, secas, ausência de governo e de Justiça", diz Gastão. Mas argumentos assim, alegados por muitos estudiosos, não são suficientes para entender Lampião. É o que garante o historiador americano Billy Jaynes Chandler, especialista do assunto: "Sua história, com todas as suas excentricidades, é toda dele". O ambiente em que o bandido cresceu, porém, tem seu peso.
De acordo com Vera Lúcia F. C. Rocha, da Universidade Estadual do Ceará, "o código de honra do sertão não culpabiliza os homens que matam por vingança, mas enaltece sua coragem". Vera, que lançou o livro Cangaço: Um Certo Modo de Ver, lembra que aquela sociedade repete para os meninos: "Seja homem". Será que era a essa expectativa que Virgulino Ferreira tentava atender?
Ele não tinha compromisso com classes sociais, embora tenha surgido num ambiente de injustiça. Era amigo de qualquer um que o apoiasse e inimigo dos que o contrariavam. Fossem coronéis ou miseráveis.
Nada a ver com Robin Hood. Não são poucos os que vêem em Lampião um Robin Hood nordestino. "Ele foi bandido, mas também teve atitudes de distribuir o que tomava", diz o pesquisador
Antônio Amaury C. de Araújo, de São Paulo, que escreveu seis livros sobre o cangaço. É, houve passagens assim. Em 1927, o bando entrou em Limoeiro do Norte (CE) jogando moedas para as crianças. Cena semelhante acontecera em Juazeiro, quando, num dos mais absurdos episódios da história brasileira, o bandido foi convocado para combater a Coluna Prestes. "
O historiador inglês Eric Hobsbawm chegou a classificá-lo como um "bandido social" - não exatamente um Robin Hood, mas um tipo vingador. "Sua justiça social consiste na destruição", disse Hobsbawm, que foi criticado pela avaliação. Billy Chandler, por exemplo, acha que Lampião só poderia ser considerado um bandido social por ter raízes em um ambiente injusto, nunca por se preocupar com a justiça social. Villela concorda.
Para ele, Lampião resistiu a um tipo de migração vergonhosa, a migração do medo, que empurrava para longe gente ameaçada por inimigos ou pela policia. Para não passar por covarde, assumiu o nomadismo e a violência. As boas ações seriam um "escudo ético", na opinião de
Frederico Pernambucano de Mello, superintendente de Documentação da Fundação Joaquim Nabuco, de Recife. Lampião, apesar de perverso, queria ser visto como um homem bom. Truques que davam certo. O conhecimento do ambiente e o uso de algumas táticas davam vantagem ao cangaceiro. Rastros: Uma forma de escondê-los era andar em fila indiana, todos pisando na mesma pegada. O último ia de costas, apagando-a com plantas.
Comunicações: Quando entrava numa cidade, o bando cortava o fio do telégrafo e tomava o posto telefônico, impedindo pedidos de socorro. Estradas: Eram evitadas. Os bandoleiros iam por dentro da caatinga.
Psicologia: Não deixavam a polícia avaliar o resultado dos combates. Levavam os mortos e, quando não dava, cortavam-lhes as cabeças, dificultando a identificação.
Apelidos: Quando um integrante do grupo morria, seu apelido era adotado por um novato. Essa é uma das razões que faziam os cangaceiros parecer invencíveis, pois os nomes eram imortais.
Alarmes: Sempre havia cães acompanhando o bando. Eles funcionavam como sentinelas. Havia também um sistema banal de alarme. Consistia em cercar o acampamento com fios ligados a sinos.
(Fonte: Super Interessante, Jun./97)