Por: Rangel Alves da Costa(*)
O
FILME E O FATO (O VERDADEIRO ZÉ DE JULIÃO)
Por mais que o
filme “Aos ventos que virão”, do diretor Hermano Penna, seja cativante e
comovente, e também mostre na sua trama a injustiça como elemento inibidor da
liberdade e da realização humana, ainda assim não conseguiu alcançar a pujança
e a dramaticidade de “Sargento Getúlio”, película mais famosa do diretor.
Não cabe aqui
fazer comparações, pois são enredos diferentes. Porém, com histórias que se
aproximam. Nos dois a política conduzindo as ações humanas, a violência
transformando a realidade. E se “Sargento Getúlio” foi tão laureado, o foi
exatamente porque mostrou uma realidade nua e crua, sem pinceladas. O que
efetivamente não ocorre com “Aos ventos que virão”.
Este não
surpreende nem fascina. E por um motivo muito simples. Penna preferiu colocar
asas num filme que requeria a perfurante ponta de espinho e as agruras dos
carrascais sertanejos. Sua proposta seria plenamente válida se a sua trama
fosse apenas ficcional. Mas não. É a partir da realidade vivenciada por José
Francisco do Nascimento, ou Zé de Julião, ou ainda Cajazeira no bando de
Lampião, um moço de Poço Redondo, que se baseia o filme.
A partir da
grandiosidade da história originariamente proposta, que seria refletir sobre as
aspirações, perseguições e injustiças envoltas na pessoa do ex-cangaceiro Zé de
Julião/Cajazeira, após a chacina da Gruta de Angico e o seu futuro entrecortado
por extremas situações, certamente que o diretor alcançaria uma inigualável força
narrativa. Contudo, colocou elementos fictícios na história e acabou
fragilizando toda a trama.
Bastava que o
personagem Zé Olímpio ficasse apenas como Zé de Julião. E pronto. Nada
precisaria ser acrescentado se o enredo procurasse traduzir com mais fidelidade
a saga do grande sertanejo que foi revoltoso, cangaceiro, fugitivo, político,
injustiçado e traiçoeiramente assassinado. Bastaria tal contexto e o filme
ganharia muito mais empolgação, dramaticidade e emoção. Ademais, quem conhecer
ao menos um pouco da história do ex-cangaceiro vai sentir um distanciamento
muito grande entre o filme e o fato.
Afamado
pela história, ainda que não pelo conhecimento de seu percurso de vida, Zé de
Julião certamente foi a personagem mais emblemática, mais fascinante e mais
injustiçada de todo o sertão sergipano. Filho de família rica para as posses
sertanejas de então. Seu pai, Julião do Nascimento, era proprietário de muitas
terras e rebanhos. Casou ainda muito moço com Enedina - que mais tarde o
acompanharia na vida cangaceira - e por ali permaneceu ajudando nos afazeres
familiares. Possuía a leitura, a escrita e o senso crítico como os grandes
diferenciais naquela povoação sertaneja de imensa maioria analfabeta e
empobrecida.
Contudo, foi a
visão própria de mundo, permeada de conscientização crítica, que modificaria o
seu destino. Como afirmado, tomava-se de extrema revolta todas as vezes que via
ou ficava sabendo dos contumazes desmandos policiais, submetendo maldosamente o
pobre sertanejo. E não só os mais humildes como aqueles se sobressaíam
economicamente, pois o seu próprio pai, Julião do Nascimento, muitas vezes fora
vitimado pela vil ganância da tropa infame. Constrangia e ameaçava qualquer um
em busca de obter todo tipo de vantagem, principalmente econômica. E aquele
povo já tão sofrido não merecia tal tipo de tratamento, na visão revoltosa do
filho de Seu Julião.
Tomado de
indignação e sentindo que por ali não havia justiça séria e capaz de dar um
basta naquelas tantas injustiças, viu no ideário cangaceiro a única forma de
combater aquela situação opressora. Abusos e absurdos protagonizados pela
polícia, que era a mesma volante que vivia no encalço do bando de Lampião.
Então viu o cangaço como bandeira de luta, como forma de combater os
desmandos se alastrando.
Foi aceito no
grupo juntamente com sua esposa e nele foi alimentando sua luta até a chacina
de 28 de julho de 38. Conseguiu sobreviver ao ataque da volante alagoana
comandada por João Bezerra, mas viu sua querida Enedina ser mortalmente
atingida. Sem a companheira, sem o comando do grande Capitão, sem meios de
prosseguir na luta armada, procurou refazer sua vida com outros planos.
Mas não era
nada fácil a vida de ex-cangaceiro. Foi perseguido, caçado, tido como valioso
prêmio. Sempre acossado, vagueou pelo sul da Bahia, retornou a Sergipe, passou
uma temporada no Rio de Janeiro até retornar novamente a Poço Redondo, dessa
vez para resolver problemas familiares, vez que o seu pai havia falecido. Seu
desejo era permanecer no seu lugar, tomando conta do seu quinhão na herança,
mas teve de retornar a Nova Iguaçu para cuidar de outros negócios seus deixados
por lá.
Ainda naquelas
distâncias, saudoso, martirizado pela vontade de retornar de vez, não suportou
mais e decidiu regressar. Ao retornar dá início ao seu plano maior: ser o
primeiro prefeito do então emancipado município. A antiga povoação havia
alcançado sua independência política em 1953. E a primeira eleição já estava
sendo organizada.
Mesmo sendo
lembrado pelos adversários como o “ex-cangaceiro”, Zé de Julião era benquisto
demais perante a população. E sua vitória era dada como certa. Disputou com
Artur Moreira de Sá, um político famoso em Porto da Folha, de onde Poço Redondo
acabava de ser desmembrado, e o resultado foi surpreendente, pois deu empate:
134 votos para cada um. Pelo critério da idade, Artur Moreira acabou sendo
eleito, pois mais velho que o adversário.
O resultado,
contudo, não foi motivo para desânimo, pois ele já se mostrava fortalecido o
suficiente para ser o escolhido na eleição seguinte, a de 1958. Assim achava e
assim planejou. Não sabia, porém, que teria como adversário, além de um
candidato propriamente dito, também as principais lideranças políticas do
estado, a corrupção eleitoral, a justiça tendenciosa e toda sorte de
perseguições. Vinte anos depois e a face de ex-cangaceiro ainda era explorada
pelos concorrentes. Fato marcante é que aqueles declaradamente seus eleitores
deixaram de receber os títulos eleitorais.
Mesmo jogado
às feras, acossado de todo lado, vendo a injustiça imperar, resolveu não
fraquejar e decidiu levar adiante seu sonho de ser prefeito. Contudo, não havia
como vencer sem ser votado, e a maioria de seus eleitores não podia votar. No
dia da eleição, sabendo que os títulos negados lhe tiravam qualquer chance de
vitória, convidou alguns vaqueiros amigos e, como numa cavalhada desenfreada,
com todos montados nos melhores cavalos, saiu invadindo seções eleitorais e
saqueando urnas. No lombo dos animais as provas das aviltantes manobras
políticas.
Não só teve
seu sonho desfeito mais uma vez como se viu encurralado pela justiça. A ordem
de prisão foi prontamente expedida. A polícia procurava-o por todo canto, mas
ele continuava ali pertinho, no vizinho município baiano de Serra Negra e sob a
proteção do poderoso coronel João Maria. Contudo, tempos depois é cercado pela
polícia sergipana e preso. Passou pouco tempo na penitenciária e foi liberado
por interferência política, sob a promessa de que transformaria sua revolta em
aceitação governista. Sem saída, aceitou, mas não engoliu o acordo. Era do seu
feitio ser assim.
Em liberdade,
planejava ser candidato novamente, mas foi insistentemente aconselhado por
amigos a passar uns tempos noutro estado até a situação política e judicial se
mostrar mais confiável. Então comprou passagem e seguiu. Mas dizem que nunca
chegou ao seu destino. Outra versão diz que já estava em Salvador quando
resolveu retornar. Não propriamente a Poço Redondo, mas para ficar escondido
nos arredores esperando o momento certo para acertar contas com antigos
desafetos políticos.
Nada disso
pode ser confirmado. O que se tem como verdade é que viajou e se manteve por um
tempo afastado de seu berço de nascimento. E também que retornou, pois numa
manhã de domingo, 19 de fevereiro de 1961, Zé de Julião foi encontrado morto,
assassinado, num lugar chamado Bastiana, nos arredores de sua querida cidade.
As motivações desse crime ainda hoje são controversas. Muitos asseveram que foi
morto à traição e a mando daqueles com quem pretendia ajustar contas, resolver
na bala mágoas políticas ainda não esquecidas.
Eis, portanto,
parte da história real desse grande sertanejo. E, repito, bastava Penna não
fugir tanto da veracidade da trama.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e
"Evangelho Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas
Sertanejas" e "O Livro das Palavras Tristes"; contos em
"Três Contos de Avoar" e "A Solidão e a Árvore e outros
contos"; poesias em "Todo Inverso", "Poesia Artesã" e
"Já Outono"; e ainda de "Estudos Para Cordel - prosa rimada
sobre a vida do cordel", "Da Arte da Sobrevivência no Sertão -
Palavras do Velho" e "Poço Redondo - Relatos Sobre o Refúgio do
Sol". Outros livros já estão prontos para publicação. Escritório do autor:
Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP 49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com