Por Alfredo Bonessi
O Cangaço foi um fenômeno social
que teve como berço o Sertão Brasileiro. Originou-se logo após o descobrimento
do Brasil e germinou nas cidades interioranas do Nordeste Brasileiro, onde a lei era a vontade do mais forte, o senhor dono das terras. Esse fenômeno surgiu
como um grito de revolta e indignação aos desmandos desse poder absoluto, que estava acima de todos e até mesmo da
própria lei – pode-se dizer que o Cangaço foi uma revolta de homens valentes
contra as formalidades sociais da época
– insurretos – insubordinados contra as normas vigentes de uma sociedade em
transição entre a burguesia portuguesa escravocrata e preconceituosa e o pobre sertanejo de enxada na mão, escravo
da fé, do dogma religioso, da
superstição, vítima da natureza
inclemente que não aceitava a intromissão
de pessoas frágeis, sem vontade de viver e fáceis de matar.
O Cangaço foi composto por gente
sertaneja, da terra, que nada temia, nem mesmo a morte. Não se tem noticias
que um Cangaceiro não tenha se
comportado com valentia e dignidade na hora da morte, mesmo ferido e sabendo
que a hora derradeira havia chegado.
Na guerra contra o Cangaço valia
tudo, e nunca na história das sociedades a fofoca matara tanta gente.
Bastava falar mal de um inimigo, inocente ou não, tanto para a polícia como para os cangaceiros, que seria morte
certa dessa pessoa.
O Cangaço como todo o movimento social
fora-da-lei cometeu exageros e crimes hediondos, a maioria injustificáveis, às
vezes contra pessoas inocentes, algumas delas a serviço da lei, como prova de
desacato e provocação a corporação a que serviam.
O Cangaço começou a definhar
quando atrapalhou o comercio, impedindo o progresso local, e quando surgiram as
estradas e o rádio de comunicação, quando veículos motorizados foram empregados
em sua perseguição e quando sertanejos foram colocados como guias a frente das volantes a procura dos cangaceiros. Podemos
afirmar que Lampião, principal chefe de bando e considerado o Rei dos Cangaceiros,
morreu sem saber da tática principal da policia que acabaria o levando a morte:
-
a intriga entre um coitero e outro;
- quando a policia descobria um
coitero, o deixava de molho, a espera de uma boa oportunidade para agir contra
ele, normalmente o aliciava como informante, ao invés de puni-lo com a chibata
e a tortura;
- o cerco de várias volantes ao
mesmo tempo, se reunindo em um lugar pré-determinado pelo comandante - chegando
ali recebiam novas ordens e novos itinerários de busca;
Essa estratégia, essa nova forma
de combater, longe dos olhos dos
coiteros, fazia com que os informes dos movimentos da policia que chegavam a Lampião eram aqueles que a
policia desejava que ele soubesse, mas
não eram verdadeiros, o único objetivo
era deixar transparecer que a força estava inativa, inoperante, estava
acomodada, quando na verdade mais de 3 mil homens se movimentavam sem cessar,
diuturnamente, fechando o cerco contra o bando de cangaceiros.
Muitos chefes de bando e
historiadores culpam as mulheres como o principal fator de extinção do Cangaço
– na minha ótica, a mulher favoreceu ao afrouxamento das regras de
sobrevivência do cangaço, por questões obvias: elas não combatiam, não
cozinhavam, eram mais sensíveis e delicadas,
simplesmente eram mulheres mesmo do pessoal e por tudo isso o bando
precisava sempre andar beirando a água,
sejam nascentes ou rios ou caldeirões de
água depositadas pela chuvas.
A presença da mulher foi marcante
no bando dos cangaceiros porque o número de estupros das sertanejas diminuíram;
muitas mulheres do bando mandavam mais
que os homens, davam as suas opiniões pessoais nas questões internas do grupo,
salvaram pessoas da ponta do punhal, e foram algozes na condenação de outras cangaceiras a morte, nos
casos de saídas do bando. Pode-se dizer que com a chegada das mulheres a
tenacidade guerreira do grupo de cangaceiros arrefeceu um pouco, os homens se
acalmaram mais – o bando virou um feudo do crime, onde havia rei e rainha, quem
mandava e quem obedecia; todos os olhares e toda a consideração eram para as mulheres, principalmente a mulher do
chefe. Os homens eram ferozes, valentes, justiceiros, guerreiros, altivos,
prepotentes, arrogantes, mandões, para os de fora do bando, mas dóceis,
afáveis, atenciosos, cortejadores, galantes para com as suas mulheres – as
mulheres eram para eles um precioso objeto, um bem valioso, mais que a sua
própria vida – a mulher representava
a honra, o status, o
poder de seu dono - por isso
era coberta de jóias - era o centro de
todas as atenções por parte dos membros
do grupo – por causa disso a cangaceira era o alvo preferido das piadas e
descompostura dos policiais durante os combates.
Sila era uma criança quando se
comprometeu que seguiria com o cangaceiro Zé Bahiano, mas acabou fugindo de casa com Zé Sereno, primo desse. Em termos de
sanguinário e violento não se sabe quem era o maior, mas quando os comparamos
ao dinheiro e a agiotagem, Zé Bahiano é infinitamente mais rico que Zé
Sereno. Sila alegou sempre para a imprensa que a entrevistava, que seguiu ZÉ Sereno porque esse ameaçou toda
a sua família – não acreditamos nisso. O fato é que esses cangaceiros deixavam
transparecer uma riqueza e um poder que só existia na mente deles, simplesmente
impressionava as mocinhas da época, que viviam em completa servidão na casa dos
pais, longe de tudo e que precisavam sobreviver da roça queimada pelo sol, da
escassa chuva quando havia, nutrindo a esperança de ver qualquer um homem que raramente passava pela frente de sua casa. Normalmente a
vida da sertaneja se resumia entre a roça e o curral, a cozinha, e as noites
enluaradas, onde contemplava as estrelas
do firmamento, deixando-se embalar pelos
devaneios dos causos e das historinhas contadas pela avó e pela mãe –
até que o sono as separavam em mais uma noite de sonhos e de ilusões.
Acertada a fuga, Sila saiu pela janela de sal casa e logo
adiante, na primeira noite, foi
estuprada em cima de uma enorme pedra - foi mulher como devia ser a mulher de um
cangaceiro – escolha feita por ela, fato esse marcante para sua mente juvenil
de 14 anos, e que nunca mais saiu de sua memória. Daí por diante foram correrias, fugas espetaculares da polícia, noites mal dormidas, chuva, frio, fome, sede
e abortos provocados, algumas raras
vezes o sossego a beira de uma fogueira, os encontros com os outros bandos, a
carne assada nas trempes, o café delicioso
e o dedo de prosa com as amigas, as costuras e os bordados das roupas do
pessoal e o preparo do enxoval do novo filho. Mas amor de sonho de menina nunca
houve – Zé Sereno tinha muita coisa para se preocupar – precisava viver daquilo
e sobreviver como fera em um ambiente hostil e ainda ludibriar a polícia –
dependia do coitero para tudo – o cangaço era movimento e o grupo de cangaceiros, chefiado por ele, não podia ficar parado em um só lugar. Viver
aquela vida, que não era vida e que não
podia deixar de vive-la, foi um tormento
para Sila.
Ao romper do dia naquela manhã de
28 de julho de 1938 estava acordada quanto um tiro isolado despertou a natureza
na Grota de Angicos – Sergipe. Em seguida mais tiros, levantou-se rapidamente e saiu correndo em uma direção seguida de alguns
companheiros. Balas ricocheteavam por todos os lados, a macega espinhenta se
dobrava a sua frente pelo corte dos projéteis. Não teve tempo de olhar para
atrás . Viu uma amiga cair morta,
amparou um cangaceiro que estava com o braço dependurado e quando os
tiros ficaram mais longe se reuniu com os sobreviventes do grupo de cangaceiros
para tomar um fôlego – estava milagrosamente
salva, mas toda lanhada nas pernas pela ação dos espinhos da caatinga.
Depois vieram as entregas – rendição para a policia – a
viagem a São Paulo – o encontro com a cidade grande, berço de recolhimento de
todo retirante nordestino. Seria nova vida ? – não foi. Apesar de ir fazer
aquilo que mais gostava – costurar – sofreu
os efeitos que uma cidade grande provoca em todos os seus habitantes: a
indiferença. Em um aglomerado urbano de milhões de pessoas, a atenção, o
carinho e a afeição passam despercebidos,
de nada valeria gritar para a multidão que foi cangaceira. Restou
criar os filhos e netos e conviver com o marido feroz e violento.
Em dado momento ressurgiu para as
noticias de jornais, rádios e TVs onde tentava explicar o inexplicável: como
foi que entrou para o cangaço. Viajou para muitos lugares, encontrou-se com
outros remanescentes do cangaço – todos tinham algo a contar e a explicar, mas
a grande maioria confundia datas e fatos, alguns escondiam mal feitos, outros
não se lembravam de nada, mas grande parte deles guardavam
silencio, ainda receosos da ação da justiça e da vingança por parte dos
familiares das vítimas do cangaço.
Muito se tem escrito sobre a guerra cangaceira – muito ainda se há de
escrever – o tema é inesgotável. Sobreviveu a terra, o sol, a caatinga. Ainda hoje o chão está marcado
pelo sangue dos policiais e dos
cangaceiros – ainda hoje se pode ver as marcas das balas encravadas nas pedras
e nos matos – ainda hoje os espíritos desses guerreiros se encontram nos
caldeirões, nas aguadas da vida espiritual
para trocarem pensamentos dos feitos da guerra cangaceira vivida na
terra.
Para o sertanejo nada mudou. A
terra é a mesma, a política é a mesma, o gado morre do mesmo jeito, o sertanejo
anda de moto, usa iPhone e possui computador. Em cada sertanejo de hoje existe
um pouquinho de cangaceiro e um pouquinho de volante – e o pior bandido de
todos que existe nesse momento são os políticos – com uma grande diferença dos
guerreiros daqueles tempos – agem em nome da legalidade e são protegidos por
lei.
Resta-nos trazer aqui as palavras finais do grande
chefe volante, Coronel João Bezerra, que
eliminou o Rei dos Cangaceiros, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião:
“Hoje
eu não perseguiria Lampião. Hoje eu acho que ele não era bandido. Hoje
existem bandidos bem piores do que ele”.
(João Bezerra)
Tarde demais.
Fortaleza,Ce, 05 de junho de 2016
Alfredo Bonessi – GECC - SBEC
Enviado pelo professor, escritor e pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com