Manoel Severo, Aristéia e João de Sousa Lima
Aristéia Soares é uma das sete pessoas ainda vivas que fizeram parte do movimento do cangaço no Nordeste; com muita lucidez, ela conta histórias de amizade e sofrimento.
A aparência frágil de quem já viveu 95 anos esconde uma mulher de garra e coragem, que possui uma memória invejável, capaz de ajudar na reconstrução de parte da história do cangaço. Natural de Canapi, a alagoana Aristéia Soares de Lima é uma das sete pessoas ainda vivas que fizeram parte do fenômeno ocorrido no Nordeste brasileiro no final do século XIX e início do século XX. Vivendo atualmente no povoado Jardim Cordeiro, localizado no município de Delmiro Gouveia, ela é um arquivo vivo do cangaço, presença feminina que expõe com lucidez o papel da mulher dentro do movimento.
Antes de ser entrevistada na casa onde reside, Aristéia entrou no quarto para se perfumar, hábito provavelmente herdado da época em que foi cangaceira já que, como ela mesma enfatizou após alguns minutos de conversa, os cangaceiros usavam um perfume muito bom, como ela nunca viu igual. “Perfume bom era o daquela época. A pessoa estava acolá e daqui a gente sentia o cheiro. Hoje não existe mais perfume desse jeito”, disse.
Como conta o historiador João de Souza Lima, vaidade era marca registrada entre os cangaceiros, que tinham a mulher como um objeto de ornamento. Elas andavam cobertas de joias, com colares e anéis em ouro, além das roupas feitas de mescla azul — tecido que era resistente às andanças pelo meio da caatinga. “A mulher era um enfeite, um símbolo sexual”, diz.
Apesar dessas características marcantes, nem todos as cangaceiras possuíam os mesmos privilégios. É o que conta Aristéia Soares. “Eu nunca vi nem o ‘azul’ do ouro. A única coisa que ganhei foi um par de brincos de Cruzeiro”, diz, explicando em seguida que Cruzeiro era um cangaceiro apaixonado por ela.
Para passar a fazer parte do movimento as mulheres tinham que ser casadas com algum cangaceiro. Todas elas acompanhavam seus maridos onde quer que eles fossem, mas não participavam diretamente dos saques e nem dos combates contra os volantes — que eram os policiais da época e, ao contrário do que muitos pensam, eram os verdadeiros vilões da história.
Aristéia conta que entrou para o cangaço porque os volantes perseguiam sua família, batiam no pai, no irmão e nos tios, tendo um deles morrido após ser espancado pela polícia. “Meu pai apanhou, meu irmão e um tio meu morreu de pisa porque a polícia achava que a gente era ‘coiteiro’, e ninguém era. Ou corria ou a polícia matava; foi por isso que eu entrei para o cangaço”, explica.
Moreno e Durvalina
Ela não chegou a conhecer Lampião e nem Maria Bonita, pois fazia parte do bando comandado por Moreno, marido de Durvalina Gomes de Sá (Durvinha), mulher de quem fala com muito carinho e com a qual se reencontrou há dois anos, antes de ela morrer, no ano passado.
Durvalina à esquerda e Aristéia à direita
No reencontro, Durvalina e Moreno, por conta da idade já avançada, não reconheceram Aristéia em um primeiro momento. Somente depois que ela, fazendo uso da memória invejável que possui aos 95 anos, contou detalhes das aventuras vividas por eles na caatinga e conseguiu fazer com que o casal - que viveu junto até a morte de Durvinha — finalmente lembrasse dela.
Aristéia era casada com Cícero Garrincha, cangaceiro conhecido como Catingueira, única pessoa que diz ter visto morrer após ser baleado pelos volantes. Em seu último livro, intitulado Moreno e Durvinha — sangue, amor e fuga no cangaço, João de Souza Lima conta que o tiro atingiu Catingueira no tórax, deixando seu coração exposto, a pulsar. Depois de baleado, Catingueira ainda levantou e foi levado carregado pelos amigos de cangaço por um bom tempo, até que não resistiu. “Moreno enterrou ele”, lembra Aristéia com tristeza.
A morte do marido representou o fim do cangaço para ela, que decidiu se entregar à polícia, apesar de ter recebido a proposta de Cruzeiro para que ela passasse a ser sua esposa e, assim, pudesse continuar suas andanças pela caatinga com o bando. “Ele queria, mas eu não. Preferi me entregar. Moreno e Durvalina me aconselharam a sair”, contou.
Na época, Aristéia estava grávida do primeiro filho e deu à luz no município de Santana do Ipanema, onde ficou presa após se entregar. A criança foi entregue às tias dela e, depois que cresceu, ganhou o mesmo apelido do pai: Catingueira. Mesmo se o marido não tivesse sido morto e Aristéia não tivesse se entregado à polícia, o filho dela seria, obrigatoriamente, deixado com outra pessoa, pois era assim que acontecia cada vez que uma cangaceira dava à luz.
Aristéia foi presa em abril de 1938 e, em julho do mesmo ano, Lampião e Maria Bonita foram assassinados, motivo que fez com que o movimento do cangaço enfraquecesse, chegando ao fim, definitivamente, pouco tempo depois.
Aristéia foi presa em abril de 1938 e, em julho do mesmo ano, Lampião e Maria Bonita foram assassinados, motivo que fez com que o movimento do cangaço enfraquecesse, chegando ao fim, definitivamente, pouco tempo depois.
Lampião e Maria Bonita
Ela chegou a ver as cabeças do casal de cangaceiros mais conhecidos da história do Nordeste expostas em Santana do Ipanema, enquanto permanecia presa.
Além da sofrida morte do marido, Aristéia também teve que superar a morte da irmã Eleonora, que era casada com o cangaceiro Serra Branca — líder de um outro grupo. Ela foi assassinada junto com o marido pelos volantes e teve a cabeça decepada.
A idade avançada não fez com que Aristéia esquecesse das amizades que fez no período em que foi cangaceira. Ela lembra com saudade das amigas já mortas Durvalina, Quitéria, Cristina e Nacinha, destacando que todas elas eram muito bonitas e lembrando que nunca conheceu Maria Bonita. “Durvalina era muito bonita e boa. As outras eram também graciosas, mas Maria Bonita eu nunca conheci não”, diz. Quando questionada se sente saudade da época do cangaço, Aristéia é rápida ao responder: “Deus me livre”. Para ela, assim como para outras pessoas, o cangaço era uma opção, um estilo de vida.
“As pessoas entravam para o cangaço pelas mais variadas razões. Uns queriam se vingar de alguém, outros queriam ter uma vida melhor com os saques, alguns queriam matar a fome e outros queriam fugir da perseguição da polícia, que, na verdade, era quem matava e estuprava.
Corisco e Dadá
Algumas mulheres entraram para o cangaço porque achavam o estilo de vida dos cangaceiros bonito, outras foram raptadas e trocadas por ouro, como é o caso da cangaceira Dadá, que só se apaixonou pelo marido Corisco tempos depois, e morreu, em 1994, ainda apaixonada por ele, mesmo estando casada com outro”, conta João de Souza, que há 12 anos se dedica a estudar o cangaço.
Ele foi o responsável por dar vida novamente às histórias que estavam guardadas a sete chaves na memória das pessoas hoje quase centenárias, sendo o responsável pela descoberta da alagoana Aristéia — que até então ocultava essa parte de sua história. “Daqui a dez anos essas memórias estarão perdidas, temos que resgatá-las enquanto ainda é tempo”, afirma.
João fala da dificuldade para fazer com que os ex-cangaceiros — sejam eles homens ou mulheres — falem sobre a época vivida na caatinga do Nordeste. É como se o medo da polícia ainda prevalecesse. Aristéia não confessa o medo, mas afirma que até hoje não gosta de falar no assunto. “Não gosto de falar, mas é o jeito. Antes eu não contava porque ninguém me perguntava”, disfarça, sem ter muita noção da importância do seu depoimento para compor a história do Nordeste brasileiro.
Hoje, mais de 70 anos depois do fim do cangaço, Aristéia leva uma vida normal, cercada pelo carinho do filho Pedro Soares, da nora Damares Rodrigues, dos seis netos e dos cinco bisnetos que moram com ela.
Aristéia fala com entusiasmo sobre duas viagens de avião que fez em 2007 e 2008, como se as suas aventuras mais recentes fossem, de fato, as melhores de sua vida. “Um dia eu tava na roça com minha amiga e vi uns urubus voando, aí falei pra ela que um dia eu ia voar também. Minha amiga ficou ‘mangando deu’. Queria que ela estivesse viva pra eu mostrar a ela que consegui voar. É bom demais. Você não sabe se o avião tá parado ou tá voando. Gostei demais”, conta sorrindo.
Muitos anos depois de fazer parte de fatos que marcaram a história do Nordeste brasileiro, hoje, Aristéia passa seus dias em casa, junto à família. O que ela mais gosta de fazer? Ir à missa ou assisti-la na televisão. “Eu assisto à missa todos os dias, de manhã e à noite. Eu adoro”, diz.
Na semana passada, um evento ocorrido na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em Paulo Afonso, lembrou o centenário de Maria Bonita, primeira mulher a entrar para o cangaço. Coincidência ou não, a mulher conhecida como a “Rainha do Cangaço” faria 100 anos no dia 8 de março — data conhecida como o Dia Internacional da Mulher.
O historiador João de Souza expôs na universidade todo o material que conseguiu colher ao longo de 12 anos de pesquisa. Em meio às fotos, vestimentas e mosquetões, um objeto merecia atenção especial: um punhal que pertenceu à Maria Bonita. “Uma vez ela foi baleada perto de Garanhuns (PE) e Lampião pagou a um homem para carregá-la ferida. No meio do caminho, ela deixou cair o punhal, que foi encontrado pelo mesmo homem que a carregou e a deixou no local indicado por Lampião ao voltar pelo mesmo caminho”, contou.
O 1º Seminário Internacional “O Centenário de Maria Bonita — a Rainha do Cangaço -, além da mostra cultural sobre o cangaço, contou com palestras, peça teatral, exibição de filmes, lançamento de livro e diversas palestras. Entre as presenças ilustres, o evento — encerrado na última sexta-feira — contou com participação da ex-cangaceira alagoana Aristéia Soares de Lima, 95 anos.
Todo o material exposto na Uneb será doado pelo historiador a um museu que contará parte da história do cangaço no Nordeste e que ficará localizado no município baiano de Paulo Afonso.
Extraído blog: O Cangaço em Foco
Postado por:João de Sousa Lima
Web site: www.coisasdemaceio.com.br/modules/news/article.php?storyid=8739 Autor: joaodesousalima.blogspot.com - http://www.coisasdemaceio.com.br/