Por Rangel Alves
da Costa*
A vida é
mistério, o viver é segredo. Ninguém tem certeza de nada. Ninguém sabe o que
acontecerá no instante seguinte. Basta abrir a porta e tudo se transformar numa
distância sem fim. Por isso é que sempre mantenho um escrito abaixo do copo com
água e ramo de flor. E diz:
Se eu não
voltar, peço que não se esqueça de acender uma vela aos pés do oratório assim
que o sino da igrejinha tocar ao cair da noite. E, acaso deseje e sua fé
permitir, que ore o Pai Nosso, no silêncio da voz e no diálogo com Deus.
Se eu não
voltar, peço que dê alpiste e água ao passarinho e aos demais pássaros que
chegarem ao redor da janela. Logo ao pé da parede, junto ao jardim ressequido,
há um local apropriado para a comida e a bebida. Ele chega sempre depois que a
alva da manhã começa a chamar o sol.
Se eu não
voltar, peço que abra o meu guarda-roupa e espalhe bolinhas de naftalina pelos
cantos. Não importa que mais tarde minhas vestes fiquem com cheiro docemente
envelhecido. Também não importa que o cheiro forte faça lembrar roupa velha,
pois só se guarda aquilo que se ama e só se preserva para o uso aquilo que se
gosta.
Se eu não
voltar, peço que abra o meu baú e reúna num só álbum todas as fotografias que
restam espalhadas. Encontrará o pequeno baú em cima do guarda-roupa e a chave
dentro da gaveta da escrivaninha. Só peço que tenha o cuidado de não misturar
retratos mais novos com aqueles já amarelados de tempo. Meus pais e meus avós,
com feições já desgastadas de afago, logo no início, e somente depois o
restante das vidas que restaram fotografadas. A minha, de meus irmãos, de meus
parentes e amigos.
Se eu não
voltar, peço que de vez em quando passe um espanador por cima das molduras
espelhadas que se alongam pelas paredes. São retratos antigos, também já
amarelados, mas representando os bens mais valiosos de toda uma história
familiar, desde antigas raízes. Não se importe acaso encontre alguma que pareça
sorrindo, outra que pareça chorar ou ainda outra de tristeza pujante. São assim
mesmo, pois ainda vivem. Ao menos em mim continuam eternizados.
Se eu não
voltar, peço que não deixe às traças os meus livros na estante. Sei que não tem
tempo para isso, mas de vez em quando eu puxava um Jorge Amado e ficava
dialogando com aquelas moças brejeiras, com os coronéis do cacau, com os
meninos de cais e sofrimento. Fazia o mesmo com José Mauro de Vasconcelos. Com
este era quase uma briga, pois jamais aceitava tamanho sofrimento como aquele
infligido ao menino Zezé e seu pé de laranja lima.
Se eu não
voltar, peço que guarde todos os meus cds e discos de músicas clássicas. Pode
ouvir se quiser, mas depois tenha o cuidado de não deixar nenhum por cima de
qualquer lugar. Sonatas, noturnos, cantatas, missas, valsas, prelúdios, tudo
que possa encantar ao entardecer e quando a noite cai. Por mim - e também por
Tchaikovsky, Brahms, Bach, Vivaldi, Beethoven, Dvorak e muitos outros -, peço
que não permita ao desalento o que há de mais doce à humana alma.
Se eu não
voltar, peço que vá recolher as frutas no quintal ao amanhecer. Após a porta
dos fundos, após o velho pilão e o tronco de baraúna deitado ao chão, há uma
diversidade de árvores que brotam frutos nas estações. Um mamoeiro, uma
mangueira, uma goiabeira, um sapotizeiro. Não requer nenhum trabalho, basta
olhar para o chão e encontrará uma colcha apetitosa de frutas caídas e prontas
ao saborear.
Se eu não
voltar, peço que de vez em quando me substitua num ato solene de vida, de
existência, de necessidade espiritual. Na beira do cais, já quando o horizonte
entristecer de seu fogo, espere a sombra da noite chegar e a luar começar a
passear ao redor de tudo. Então caminhe descalço por aquela areia, enquanto
escreve palavras desconexas na língua das ondas. E depois ouça o murmúrio das
palavras escritas. E assim ouvirá a mais bela poesia.
Se eu não
voltar, peço que não se preocupe e não pense em me procurar. Estarei bem onde
estiver. Talvez apenas do lado de fora da casa ou numa estrada longínqua.
Talvez escondido na copa de alguma árvore ou ajoelhado contrito perante o altar
da igreja mais distante. Ou já de retorno depois de haver colhido a flor e o
espinho. Ou permanecendo numa cruz de breve epitáfio: Ele a Deus retornou!
Poeta e
cronista
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