*Rangel Alves
da Costa
Não estava bem
na passagem do ano. Era como se um intenso e profundo remorso lhe entranhasse.
Pesar terrível, contrição tão intensa que se esforçava para não chorar.
Revestido em máscara de presente, porém levando na alma as dores do passado.
Mas era festa
de despedida de ano. Tinha de se mostrar feliz e receptivo. Mas a cada abraço
recebido, a cada desejo de felicitações, e tudo mais parecia uma punhalada fria
e mortal. Não via a hora de fugir disso tudo, de subir à montanha onde tudo se
revela sem fingimentos.
Que ator
fingindo seu próprio personagem! Esboçava sorrisos, alegrias e contentamentos,
mas verdadeiramente não estava bem. De vez em quando se afastava de todos
levando o copo à mão e procurava a solidão enluarada para mirar os astros e
pensar na vida. Já quase meia-noite e ele ali se perguntando: o que fiz ao
longo do ano para agora comemorar?
Fingiu
abraços, fingiu beijos, fingiu palavras, tudo fingiu. Sentiu-se contente quando
sentou ao pé da cama para se lançar em profundo sono. Não estava bêbado. Nem
toda a bebida do mundo teria conseguido embriagá-lo naquela noite. Sua
embriaguez era outra. Era de consciência.
A verdade é
que o remorso ainda lhe consumia. Estava bêbado de remorso, angustiado de
remorso, sonolento de remorso, sofrido demais por remorso. E o que é remorso
senão abatimento na consciência pela percepção de haver cometido erros? E o que
é remorso senão a íntima certeza de culpa?
Na sua mente,
outra verdade não existia senão a de que não deveria acordar num novo ano tendo
deixado para trás tantos erros, tantos sonhos não realizados, tantas dívidas
consigo mesmo. Ora, havia se prometido que aquele seria o ano das grandes
realizações em sua vida, dos grandes atos e das grandes honrarias morais e
pessoais.
Havia se
comprometido a si mesmo que não almejaria além daquilo que efetivamente pudesse
realizar e, por isso mesmo, construir com os pés no chão para saber o alcance
de sua obra. Mais amar, mais viver, mais brincar, mais compartilhar, mais
caminhar, mais viajar, mais agir perante mundo e realidade. Queria a felicidade
nas pequenas coisas.
Mas um ano
inteiro e pouco ou quase nada realizado. Adormeceu nesse mal-estar culposo e
que parecia irremediável. Sonhou que o ano não havia acabado, que ainda havia
tempo de realizar ao menos parte do prometido a si mesmo, que bastava abrir a
porta e correr atrás de remediar os prejuízos.
Acordou de
súbito. Levantou como um redemoinho que levanta da terra sair em disparada. Em
menos de dez minutos e já estava abrindo a porta de casa para fazer o
impossível: voltar no tempo. Contudo, consciente dessa impossibilidade, então
começou a correr para remendar o passado, costurar possibilidades, construir o
que não havia conseguido durante todo o ano passado.
Um trabalho de
Hércules. Um novo Ulisses vivendo a intensidade das horas. Ou apenas um louco
querendo afastar a insanidade através de ilusões? Mas o que se viu daí em
diante foi um novo homem dentro daquele envelhecido de um dia, foi um novo ser
reparando mil gestos e realizando mil ações negligenciadas no passado.
Correu a
abraçar velhos amigos. Bateu às portas mais humildes para reconhecer aquela gente
empobrecida como pessoa, como ser humano em máxima essência, acenou ao
distante, visitou enfermos, levou flores às velhas amizades, levou incenso e
mirra por onde passou. Conversou com a pedra, com o passarinho, subiu à
montanha, ajoelhou para orar. E orou. Dialogou com Deus como jamais havia
feito.
Varreu a casa.
Passou pano na casa. Jogou fora coisas velhas e sem uso. Abriu as janelas e
deixou o sol entrar. Foi ouvido cantando uma bela canção. Dividiu o pão,
dividiu a mesa, estendeu a mão a quem lhe estendia a mão necessitada. Não quis
ouro, não quis prata, não quis diamante. Mas quis abraçar o sol. Quis viver a
intensidade da vida.
Durante o ano
passado inteiro nada disso havia sido possível. Ou simplesmente postergado. E
num só dia do ano, ou a partir da manhã do primeiro dia, e tudo já parecia
vida. E jurou a si mesmo que assim seria a cada instante e segundo do ano.
Será?
Escritor
Membro da
Academia de Letras de Aracaju
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