*Rangel Alves
da Costa
Talvez o
Eclesiastes ainda não tenha se revelado em mim. Procuro acreditar que amanhã
será outro dia, que a boa semente enfim vingará e que se cumprirá a sina de o
sorriso aparecer depois da tristeza. O Eclesiastes se esqueceu de mim.
Como um dia li
de um poeta qualquer, chega um tempo de ser um tempo tão revoltoso que já não
serão mais ouvidos os trovões das tempestades nem o estilhaçar vidraças pelos
raios que abruptamente caem aos pés. E nem o pingo grosso faz molhar o que já
tão inundado.
Todos os dias eu
procuro onde deixei meus sentimentos e não há jeito de encontrá-los. Quero ter
de volta minha sensibilidade e não consigo mais senti-la dentro de mim. Mãos
táteis que apenas tocam e não sentem. Um tanto faz assim de tanta dor. Dói ser
assim.
Dói viver perante
um jardim de pedra, adiante e dentro de mim. Como um arco-íris sem cor ou uma
borboleta sem brilho, eis o matiz do olhar que nunca mais avistou nada além de
brumas e cerrações. Tanto faz a lua, tanto faz o sol. A vida e seu inverso,
tudo tanto faz.
Eu não queria
nem ser assim nem estar assim. Tenho poemas inacabados, escritos ainda em
sementes, talvez alguns sonhos que precisam despertar em realidade. Preciso
lembrar-me de colocar açúcar no café e de acender a lamparina quando tudo é
escuridão.
Jurei jamais
sofrer por amor, comprometi-me a jamais lamentar perdas vãs, a não acenar ou
entristecer por adeuses que não deveriam continuar. Mas acho que tudo de mim se
foi com o que tanto prometi. Quando tudo partiu, então me restei assim perante
o jardim de pedra.
Eu era tão
diferente. Coisas simples, mas singelas, assim como o entardecer, o sol se
pondo, a sonata, o noturno, tudo me fazia tão bem. Acendia um incenso e deitava
no tapete flutuando na Barcarola de Offenbach, navegando pelo Danúbio todo azul
com Strauss, sentindo conforto espiritual com aquele Jesus de Bach.
De repente foi
como os espelhos sumissem de minha frente, as janelas e portas se fechassem, as
estações deixassem de ter importância. Quanta importância eu dava à flor viçosa
e à folha seca! Mas agora, tanto a flor como a folha se perderam no jardim de
pedra.
Comecei a
sentir-me assim quando deixei de caminhar ao redor do jardim, de sequer pensar
em observar borboletas e colibris voejando sobre as flores. As folhas secas se
acumulando infinitamente, o mato tomando os canteiros, meu velho banco quase
sumindo pelos outonos.
Sim, ainda
avisto adiante begônias, lírios, rosas, cravos, jasmins, girassóis, violetas e
outras flores. É amanhecer, e ao sol nascente as flores parecem mais vívidas,
mais perfumadas e coloridas. Mas apenas parecem. Mas como distinguir uma flor
de outra flor, um perfume de outro perfume, se tudo está petrificado no jardim?
Tanto faz que
as flores estejam assim tão vívidas, perfumadas e coloridas. Meus olhos apenas
veem, apenas avistam, mas sem qualquer sentimental correspondência. Já não sou
sensível a manhãs nem a jardins, já não avisto mais senão o ferro, a ferrugem,
a pedra, o pó.
Eu bem poderia
ter um muro no lugar da janela e ainda assim teria a mesma manhã. Eu bem
poderia avistar túmulos no lugar das plantas floridas e ainda assim não
enxergaria nem jazigos nem roseirais. Eu bem poderia ter a noite no lugar do
alvorecer e ainda assim tudo seria a mesma visão.
O meu gato não
está aqui. Também tanto faz. Talvez o meu cachorro esteja miando e o gato
latindo. Não ouço nem vejo nem um nem outro. O que me rodeia o faz por mera
insistência. Não sei se ando calçado ou descalço, se grito ou silencio. Penso
que retratos antigos são folhas mortas e os lanço à ventania.
Sei que há um
jardim além da minha janela. Sei que há um jardim bem depois da porta lateral.
Também sei que há amendoeiras imensas e folhagens que caem dentre os muros,
formando um tapete ocre-acinzentado. E também que há um velho banco tomado de
folhas onde eu costumava sentar ao entardecer.
Sei por que
minha memória desperta ao que faz doer. Somente na memória tudo isso ainda
vive. Ainda assim tudo chega como punhal, como lâmina afiada, como ponta de
espinho, como cálice de sutil veneno.
Não sei, não
sei. Não envelheço para a insensatez. Eu queria ouvir uma notícia boa. Eu
precisava ter a certeza de que alguma coisa boa acontece na vida. Algo que
chegasse como um motivo, um suspiro, um alívio. Mas nada acontece além do
jardim de pedra.
Escritor
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