Por Jerdivan
Nóbrega de Araújo
Os castigos do
velho Professor Guimarães a mim impostos, ali na S.A.O.B: Sociedade Artística
Operária Beneficente, nenhuma experiência e aprendizado que servisse para minha
vida futura. Não tinha eu nove anos de idade ainda, e já era submetido aos
rígidos preceitos e doutrinas de um professor cujos métodos ficaram para trás,
havia muito tempo: pelas vezes que eu cheguei atrasado a aula, me valeram
muitas palmatoradas,
A nova pedagogia, segundo Paulo Freire, não mais permitia aqueles castigos,
mas, fosse alguém falar ao Professor Guimarães do Método Paulo Freire, da
alfabetização por imagens; das cartilhas Sodré; ou, Aracy Idelbrand com seu
“Caminho Suave”, “Bitu” da “Editora Melhoramentos”, certamente também ficaria
horas no canto da parede de joelhos, ouvindo o bater do vento nas grandes
janelas azuis que davam para a Usina de Beneficiar algodão, de Paulo Pereira.
Quantas vezes eu fiquei de frente aquele velho Mapa Mundi, encardido e
desatualizado, decorando capitais de países europeus?
Se “o dedo dói”, doeria menos sem aquelas infames palmatoradas. E, mesmo “a uva
que vovô viu” era de um azedo intragável de se pronunciar diante da presença
pastoral do mestre.
A rigidez disciplinar do professor Guimarães era tanta que até os pais tinham
receio em procurá-lo para reclamar dos castigos por ele impostos aos seus
rebentos.
Sentávamos uns ao lado dos outros em carteiras improvisadas. Porém, o silêncio,
enquanto o professor não entrava na sala de aula era sepulcral. Era apenas uma
sala de aula, na verdade um salão de mais de 100 metros quadrados, para as três
séries, sem nenhuma divisão que definisse quem estava em que fase do
aprendizado.
Aproximavam-se onze horas da manhã quando as panelas na cozinha do velho
professor começavam a ferver, incensando o ambiente do cheiro gostoso de carne
frita e feijão. Aí a fome entre os alunos despertava mais ainda, de forma que
dava para ouvir o barulho das lombrigas nas nossas barrigas vazias. Sim, por
que a cozinha fora localizada bem acima do palco, onde outrora era um camarim.
A S.A.O.B tinha a forma de um teatro. O salão fora transformado na grande sala
de aulas e, a parte por trás do que nos carnavais fazia a vez do palco, morava
o velho mestre.
Lembro-me de uma história que tinha na minha cartilha que narrava a saga de um
menino que havia ganhado um pão da sua mãe e, ao agradecê-la, esta disse que
ele deveria mesmo era agradecer ao padeiro... Ele sai nas carreiras, mas, ao
agradecê-lo, o padeiro diz que ele deveria era agradecer ao caminhoneiro... Que
diz que ele deveria agradecer ao usineiro... Que diz que ele deveria agradecer
ao agricultor... Que diz que ele deveria agradecer ao sol... Que diz que ele
deveria agradecer a água... Que diz que ele deveria agradecer a mãe terra...
Que, por fim, diz que ele deveria agradecer a Deus.
Ao final, o professor Guimarães, propositadamente, perguntou para Bíer, um dos
alunos mais humildes da sala, e que desde o inicio da história dormia feito um
anjo, o que ele teria feito se hoje pela manhã ele tivesse ganhado da sua mãe
um pão.
Bier, ainda sonolento responde:
– Eu não teria comido as batatas que o senhor deixou esfriando em cima da mesa
da cozinha.
Todos nós ficamos sem entender a resposta até que o professor foi à cozinha e
deu por falta de toda a batata que deixara sobre a mesa.
O relacionamento entre Bier e o mestre, depois deste episódio nunca mais foi o
mesmo, que chegou até a levar uma surra do Professor Guimarães. Na primeira
oportunidade Bier foi a forra e sentou-lhe o livro de “Admissão ao Fundamental”
com toda a sua força na cabeça do professor, levando o velho ao chão. Bier
fugiu pegando o caminho do rio, depois, de vários dias desaparecido, voltou a
Pombal, nunca mais entrou em uma sala de aula e foi ser ajudante de mecânico na
oficina de Negro Nero.
Por onde andará Biér???
O Professor Guimarães era um homenzarrão, de uma estatura que o diferenciava
dos demais filhos de Pombal. Talvez uns noventa quilos distribuídos em,
acredito, um metro e noventa de carne e osso. É lógico que o nosso medo lhes
dava esta estatura gigantesca. Se olhássemos de baixo para cima, sentíamos o
mesmo pavor que deveria ter sentido os judeus diante dos carrascos nazistas.
Se o filho não estava bem nos estudos, nenhuma ameaça era mais eficaz do que
dizer que ia matriculá-lo na escola do Professor Guimarães. Era o suficiente
para que o Boletim seguinte saísse do vermelho.
A tabuada cantada era ouvida pelos que passavam ao longe nas imediações da
S.A.O. B, assim como choro dos que a erravam. A leitura em voz alta ecoava nas
“tesouras” de madeiras que sustentavam o teto, da escola, de forma a perturbar
o sono diurno dos morcegos, ou provocar revoada das andorinhas que se aninhavam
nas frestas das telhas.
Na época, eu me deslocava da Rua de Baixo para a S.A.O.B, arrastando a minha
wakiki, numa lerdeza tamanha que chegavam à pergunta se eu estava passando mal.
Na verdade era a vontade de nunca chegar a S.A.O.B para entregar minhas brancas
e macias mãos a sanha da palmatória do velho mestre. Era o que fazia de mim
aquela figura triste que atravessava de um lado a outro da cidade em passos e
vestes Charplinianas para se entregar a maldade do velho professor.
Ao olhar aquela figura que povoava os meus piores pesadelos de menino,
perguntava-me de onde saíra um ser tão sem coração, ao ponto de aplicar
palmatoradas em uma criança de nove anos, só por que esta não conseguia
entender que duas vezes dois eram quatro e não quarenta e quatro.
Intrigava-me, também, o fato do professor, ao se encontrar com meu pai em
longas conversas ali no Mercado Publico, olhasse para mim como se nunca me
tivesse me visto. Ora, como podia se eu estivera apanhado dele naquela mesma
manhã? Era como se, ao tocar a sirene da Brasil Oiticica, hora que ele nos
liberava, seus alunos deixassem de existir.
Para ele não éramos pessoas: éramos apenas cérebros em ainda vazios, prontos
para armazenar as primeiras informações que serviriam para o resto das nossas
vidas, porém, com a sua forma de educar, acabava por criar bloqueios
irreparáveis nestes cérebros e corpos desnutridos.
Não sei em que ano o Professor Guimarães morreu, mas soube que ele deixou dois
livros publicados com histórias tão velhas quanto ele. Dois romances
ambientados no Século dezoito, que remontavam os terreiros e eitos dos velhos
engenhos de cana de açúcar.
Acho que ele era mesmo um senhor de engenho, que não havia tomado conhecimento
do advento lei Áurea. Talvez fosse o reflexo da sua própria história. Quem vai
saber?
Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e Gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com