Material do
acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
COMO SE FORJA
UM CANGACEIRO
TRAÍDO E
CAPTURADO
Volta-Seca
Escapa de um Cerco de Vinte Homens – À Procura de Honorina – Refúgio na Fazenda
Dos Irmãos Roxo – Traição dos Coiteiros.
EU estava numa
situação bem desagradável, cercado por mais de vinte soldados dispostos a dar
cabo de mim. Comandava o destacamento o tenente José Joaquim, um militar
valente e cumpridor de suas obrigações, coisa rara em se tratando de polícia
estadual. Eu me entrincheirei atrás de uma pedra e resisti ao tiroteio, com
Maria Honorina ao meu lado, assustadíssima. A mocinha estava acostumada às
refregas do bando, mas aquela situação não era nada boa, tipo de “fim de
carreira” para quem anda fora da lei. Eu mesmo tinha pouca esperança de me
salvar, mas não desanimei; pelo contrário, pus-me a matutar um meio de sair
daquela situação. A minha sorte era os soldados serem covardes. Valentia, ali,
só a do comandante, que logo a pôs à mostra. Mandou que eu me entregasse, isso
a uns cinquenta metros de mim. Respondi que viesse buscar-me, e o tenente José
Joaquim levantou-se, empunhando um parabélum, e gritou aos comandados:
“Avança!” Mas não deu um passo, pois eu já o tinha sob a mira do meu fuzil e
fiz fogo. Atingi-o no peito e ele caiu ensanguentado. Eu gritei de cá: “Levanta
pra levar outro tiro, macaco!...” Mas ele não levantou, e seus comandados não
quiseram imitá-lo, preferindo atirar de onde estavam.
ESCAPO
ENQUANTO as
balas passavam por cima ou batiam nas pedras, fazendo um ruído irritante, eu
continuava a estudar um meio de fugir. Eu me encontrava no limite das terras
dos irmãos Roxo e havia uma cerca de arame farpado. Do outro lado, o mato era
alto. Se conseguisse atravessar a cerca, sem que os soldados percebessem,
estaria salvo. Rastejando como cobras, eu e Honorina chegamos até à cerca e,
cavando rente ao último fio de arame, conseguimos passar sem que os soldados
dessem pela fuga. Uma hora depois estávamos longe. Tenho a impressão de que a
covardia dos soldados era tanta que eles ficaram lá, atirando de longe, o dia
inteiro...
Resolvi então tomar um rumo para enganar a volante. Arranjei dois cavalos e
mandei que Honorina fosse para a casa da avó e que não saísse, pois depois eu
iria busca-la. Ela me obedeceu e eu rumei para o outro lado, para Salgadinho.
Nesse lugar passei vários dias, até que resolvi buscar Honorina, já supondo
estar tudo mais calmo. Vim pelo mesmo caminho da ida e passei pelo ponto onde
Leobino fora morto. Os soldados haviam enterrado o rapaz numa cova rasa e nem
uma cruz puseram. Algumas pedras em cima, para indicar que era uma sepultura, e
nada mais. Leobino era um bom menino, um futuro Volta-Seca, iniciando-se na
carreira do crime. Era dócil e obediente como todos nós quando estávamos
praticando para cangaceiro. Não tardaria, porém, a assimilar nossa ferocidade
com a convivência que teria e, então, para o futuro, estaria à altura de ser
“cabra” de Lampião. Pobre Leobino... Talvez fosse melhor morrer assim no
início, pois o fim de todo cangaceiro é triste.
CILADA
PROSSEGUINDO,
porém, fui para a casa da avó de Maria Honorina e não a encontrei.
Informaram-me que ela se encontrava na casa de uma tia, e para lá me
encaminhei, mas qual não foi minha surpresa ao me informarem que Honorina
estava na casa da avó... Compreendi então que os parentes da moça queriam
afastá-la de mim.
Com essas andanças, eu não me afastava das proximidades da fazenda dos irmãos
Roxo. Como já disse, esses irmãos sempre acoitaram o bando de Lampião, mas, sem
eu saber, após o combate que travei com o tenente José Joaquim, os irmãos foram
apertados pela Polícia para dizerem onde eu estava ou, pelo menos, me
delatarem, caso eu voltasse ao lugar.
Sem saber do que se passava, dirigi-me para a fazenda e fui pedir comida. A
família Roxo estava reunida, justamente estudando a possibilidade de me
apanhar... Quando apareci, ficaram surpreendidos, mas fizeram tudo para ocultar
e eu, ingenuamente, nem desconfiei. Quem me atendeu foi Adão Roxo, com quem eu
tinha muita intimidade. O cínico fingiu-se de contente:
- Então o tiroteio com a tropa do tenente José Joaquim foi forte, hein?
- É, foi brabo mesmo, respondi.
E ele com sorriso:
- Você feriu o tenente e ele quase morreu, sabia?
- Que pena não morrer – lamentei eu, preparando-me para beber água.
- Você chegou a fazer calo na mão de tanto atirar, Volta Seca? – perguntou-me
ele, querendo ver minha mão. Deixei que ele me pegasse a mão e então,
segurando-a firmemente, seu semblante passou de alegre a zangado, dizendo:
- Você está preso, Volta-Seca!
Olhei para ele, intrigado, e arrisquei:
- Não brinque, Adão...
Mas ele, mais sério ainda, retornou:
- Está preso, mesmo¹
Com um sorriso de ironia eu disse:
- Adão, pra brigar com você não preciso nem da
ajuda de Deus... e, dizendo isso, dei-lhe uma rasteira e puxei o parabélum.
Mal Adão saíra, surgiram várias pessoas, que pude depois contar serem quinze.
Compreendi logo a cilada, apontei a arma para Adão e dei no gatilho. Pela
primeira vez um parabélum falhou na minha mão! Adão Roxo respirou aliviado,
enquanto sua família me agarrava.
ENTRE A VIDA E
A MORTE
NÃO foi
difícil para tanta gente me dominar e em seguida me amarrar. Um deles propôs
que me matassem e cobrassem o prêmio de minha captura. Os irmãos Roxo logo
toparam a ideia, incentivados pela mãe, uma velhota ruim como cascavel. Essa
velha, por dinheiro, fazia tudo, e, aliás, tudo que aquela família possuía era
à custa dos cangaceiros, pois ser coiteiro, para eles, era uma profissão
rendosa. Só me denunciaram porque, não só eu estava sem dinheiro, como pela
pressão que o tenente José Joaquim fizera contra eles. Felizmente, entre tanta
gente ruim, havia duas mocinhas boas que não concordaram com a ideia de me
matarem, e tanto se opuseram, que seu ponto de vista prevaleceu.
Fui levado então para o arraial Duas Barras, do município de Santo Antônio da
Glória, amarrado e tratado como bicho. Quando cheguei, os soldados, ao me verem,
quiseram logo dar cabo de mim, e tê-lo-iam feito se não surgisse o tenente José
Joaquim, o mesmo que eu baleara. Esse militar estava enfaixado e ainda
enfraquecido pela perda de sangue, mas, ao me fitar, não se alterou. Com
serenidade, falou:
"Ninguém toca neste homem. Ele está preso e garantido pela
lei! Quem tocar num fio de cabelo dele, terá que se ver comigo! Tratem ele bem,
e o que tocar nele, ponho na cadeia. Estamos entendidos?”
Todos entenderam, e o
tenente mandou que me desamarrassem e me pusessem na cadeia. Em seguida,
telegrafou ao chefe de Polícia do município, capitão Facó, que mandou me
transferissem imediatamente, recomendando também que não me maltratassem.
FERA ACUADA
DAÍ por diante
fui sempre transferido de local, mas sempre bem tratado. Do arraial de Duas
Barras fui para Santo Antônio da Glória, levado pelo tenente Douradinho, e em
seguida, sempre demorando pouco nesses locais, mandaram-me para Jeremoabo. Até
aí eu fui sempre livre, mas daí por diante me levaram com as mãos amarradas. Em
todo lugar aonde eu chegava era alvo de curiosidade, e todos me fitavam como se
eu fosse uma fera. É possível que fosse mesmo... Lembro-me de que, desde que
fui preso até um ano depois, mais ou menos, não conversei com ninguém! Só
respondia por monossílabos, e queria estar sempre só. A solidão me atraia, e a
presença de qualquer pessoa me irritava.
Tão zangado eu era que, quando entrava num trem, amarrado e bem guardado por
soldados, estes pediam aos passageiros que não me olhassem, pois eu não gostava
e ficava furioso... De fato, revoltava-me ver alguém me fitando muito. Um homem
não quis respeitar essa observação e, sentado em frente a mim, não parava de me
fitar. Aqueles olhares tão penetrantes me incomodaram tanto que, na
impossibilidade de agredi-lo, dei-lhe uma cusparada na cara!... Isso causou um
mal estar terrível no trem, e daí por diante ninguém mais olhou para mim, pelo
menos que eu percebesse. Eu devia ser mesmo uma fera...
CONTINUA...
Fonte: facebook
Página: Antônio
Corrêa Sobrinho
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