*Rangel Alves da Costa
O homem era coronel mesmo, não de patente militar, mas na patente do poder e do mandonismo. Mas tinha mais força que qualquer outro coronel patenteado que existisse. Se este era subordinado, devendo obediência hierárquica, o outro era o mais alto escalão da força impositora pelos feudos e vastidões nordestinas. Assim perante o homem, perante a política, políticos e governantes.
Chegava ao gabinete dos governantes, cuspia na antessala e entrava sem se fazer anunciar ou pedir permissão a ninguém. Tinha poder suficiente para agir assim aonde chegasse. Perante a sua chegada, sempre uma surpresa assustadora, o governante maior chegava a estremecer. Nada podia dizer senão agradar. Levantava trêmulo e feito vara verde se encaminhava para o aperto de mão, para o abraço, para se colocar à disposição feito um reles subserviente.
Terno de linho branco, endurecido pela goma fincada pelo ferro de passar. Chapéu imenso na cabeça, botinas brilhosas no sebo de vaca, um lenço caído no bolso esquerdo do paletó. Feição rude, queimada de sol, bigode esbranquiçado e vasto, tudo moldurando um rosto ainda moço para tanto poder seguindo o seu passo. Mas sem deixar à mostra, uma pistola carregada na cintura e mil pistolas e mosquetões, mil jagunços e pistoleiros espalhados por todo lugar.
Tanto e todo poder num homem só. Mandava e desmandava no seu mundo e no mundo de todo mundo. Respeitado, querido, odiado, enojado, devotado, ultrajado. A verdade é que mesmo o ódio não era suficiente para ser enlameado pelo nome. E quem era besta de dizer, citando o nome, que o coronel não prestava, que o mandachuva era isso ou aquilo? Ora, ninguém queria virar comida de aves carnicentas, de gaviões e urubus. E as tocaias sem fim diziam bem de quantas vozes haviam silenciado pelos sopros de fogo.
Outro coronel metido a valente, certa feita mandou-lhe um recado desaforado e não demorou muito para ser tocaiado e acertado pela mira certeira de Bicho Feio, o jagunço. Sua palavra era uma ordem, sua ordem uma obrigação, sua cusparada um prazo dado para tudo ser feito, e bem feito. Solitário, porém. De tão amedrontador que era, o medo de todos fazia com que fosse evitado a todo custo. Mas rodeado de pessoas inseparáveis: jagunços, pistoleiros, facínoras de toda espécie.
Poderoso demais, em demasia mesmo. Mas não tão poderoso assim se considerado o temor de um homem por outro homem. Sim. O coronel dono do mundo, dono do poder e do mais que lhe aprouvesse, estremecia por dentro toda vez que ouvia o nome famoso que andava pelos arredores da região: Virgulino Ferreira da Silve, vulgo Lampião. E chegava a vermelhar de raiva só em saber que o líder cangaceiro também era chamado de rei das caatingas e dos sertões.
No seu pensamento tipicamente coronelista, só havia um rei ali e era ele, não o tal Lampião. Mas o pior é que não podia fazer nada, pois tinha medo desmedido do homem. E por isso mesmo vivia procurando saber notícias do bando cangaceiro, querendo saber se estava nas proximidades e como costumava agir quando resolvia invadir povoações inteiras. Tudo ouvia com extrema preocupação, chegando mesmo ao extremismo do arrepiamento, mas sempre reagia dizendo que ai daquele desaforado do Lampião se ousasse colocar os pés ali. Seria recebido na bala.
Um dia Lampião chegou. Mesmo ainda distante do latifúndio avarandado do coronel, assim que este recebeu a notícia da aproximação logo se tornou num homem irreconhecível. Pálido, ora cabisbaixo ora colocando a cabeça por todas as frestas da janela, andando de lado a outro, num nervosismo que mais parecia na maior das aflições. E estava mesmo. Quem percebeu logo aquele estado de choque foi o vigário local que ali estava a chamado do poderoso. O mandachuva desejava aconselhamento do da batina perante aquela tenebrosa situação. Mas o padre resolveu ser ligeiro e sincero: “Não há Coronel que não seja amigo do Capitão. É uma questão de sobrevivência. Se o coronel acolhe Lampião, este ficará agradecido e devendo favores, o que resultará em sua proteção. Do contrário, terá a fera do cangaço todo dia na sua porta”.
Então o terrível, porém acovardado coronel, escolheu o próprio vigário como seu mensageiro de urgência, e para fazer exatamente o contrário do aconselhamento do padre. E tecendo ainda uma traição. O encargo era exatamente convidar o líder cangaceiro e seu bando para um regabofe dos mais caprichados, mas quando ali chegassem seriam todos recebidos à bala. O padre tentou demover a ideia, mas não teve jeito. Mas neste momento, eis que chega um jagunço apavorado e tremelicando, quase sem poder falar: “Lampião taí...”.
“Taí não, tô aqui”, disse Lampião já em pé adiante da porta. “É aqui a casa do famoso Coronel Fudêncio?”, perguntou o Capitão já ao lado do vigário fraquejante e entregue às orações. Mas coisa espantosa aconteceu em seguida. Tomado de cólera e espanto, com o sangue querendo borrifar de tanta raiva, o coronel abriu a boca para dizer umas duas ao cangaceiro. E começou a dizer mesmo: “O que faz aqui, seu, seu, seu... Seu exemplo de homem nordestino, o mais valete dos homens. Se achegue, a casa é sua, e o que depender de mim já está em suas mãos”.
E assim a valentia se transformou em submissão. E o mando coronelista mais uma vez se ajoelhou aos pés do cangaceiro maior, do Capitão Lampião.
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