Há na velhice um cais defronte a um mar imenso. E neste cais um velho querendo ser marinheiro, viajante das águas, sempre desejoso de navegar pelas distâncias sem fim.
O cais lhe parece uma estrada já conhecida. Chão molhado de suor e de luta, de lágrimas e tantos outros derramamentos. Cais molhado de tempo e de serenos da idade.
Há uma pedra no cais onde o velho costumava sentar ao entardecer. Ao amanhecer também. O dia inteiro. Ora, a velhice chega e sempre chama à solidão das pedras do cais.
De vez em quando se demorava mais sentado na pedra. O tempo passava que nem sentia. Ao longe mirava um mundo de águas, silhuetas chegando e partindo, apitos e sons.
O farol sempre lhe parecia de uma estranheza sem fim. Quando a noite chegava e o faroleiro subia ao alto, era como se lhe abrisse um lenço diante do olhar marejante.
Aquela luz do farol como vulto amarelado na água. Aquela luz amarelada passeando por cima das ondas. Aquela luz dançando uma valsa solenemente triste. O velho entristecia.
Durante o dia, o rasante das gaivotas até atrapalhava sua meditação. Gostava do silêncio murmurejante, da paz. Somente assim podia meditar sobre a solidão da vida e do cais.
As revoadas seguiam sob seu olhar miúdo. Já não conseguia avistar o bando passarinheiro se distanciando pelos céus, pelos horizontes. Instante de também querer voar.
Quando mais jovem, ou quando ainda moço na flor da idade, gostava de estar ali apenas para avistar os barcos chegando e partindo, a vida gritante e apressada do cais.
Um cais de marujos, de capitães, de trabalhadores braçais, de carregadores, de prostitutas, de meninos de rua que ali faziam suas camas de sonhos e desesperanças.
Cestos de frutas olorosas chegando, cachos e mais cachos de bananas, fardos de couros, sacos de milho e de feijão. E aqueles homens num esforço danado para ganhar tostão.
Com o passar dos anos, nada disso lhe encantava mais. Passou a tudo ver pelo lado do sofrimento, da agonia, da dor. Ora, ali no cais não havia motivo algum para a felicidade.
Deixou de estar ali por causa disso. Não se ausentou de vez, apenas resolveu que somente se sentaria naquelas pedras em instantes de silêncios, de murmurejos das águas.
Já estava cansado, lanhado da luta, se sentindo velho demais para presenciar sofrimentos e aflições. Precisava meditar sobre a vida, repensar a vida, refletir a vida.
Já estava marcado demais pelos grilhões da estrada e pelos ferros do tempo. O tempo escraviza o ser. A luta acorrenta, maltrata, salga a pele depois de tê-la açoitado em fogo.
E eis chegado o tempo de libertar-se das agruras e buscar a paz merecida. Libertava-se em si mesmo e sentia-se novamente disposto a fincar seus pés pelo chão do possível mundo.
Queria apenas viver o tempo que lhe restava viver. Sabia que não poderei alcançar os mesmos horizontes de outrora, mas abriria suas asas pelos horizontes que pudesse encontrar.
Tanto dói refletir, meditar, reencontrar-se a si mesmo, reabrir os velhos álbuns e baús da memória. E ali, sentado à beira do cais, na pedra do cais, seria como pássaro em voo.
No seu pensamento, mesmo a janela de casa estando aberta para o sossego do entardecer, nada disso seria mais cativante do que estar sentado numa pedra de cais.
Resolveu então retomar seu caminho de mar e ter a pedra de cais como seu altar de deus solitário. E então esperava o sol se pôr para lentamente seguir ao seu beiral de areia.
A pedra do cais já o conhecia. Molhada, encharcada, respingando ondas, ainda assim parecia se enxugar perante a sua presença. E de sua boca ouvia um cumprimento de boa tarde.
Que imagem triste se emoldurada. Um velho, um entardecer avermelhado, um cais, uma pedra, um mar imenso. E o velho mirando adiante como se ali estivesse um mundo.
E estava. Aquele mar de mistérios era um mundo. Avistando as águas, estendendo olhar sobre as águas, o velho ia viajando pela estrada criada em pensamento. E seguia adiante.
O que lhe importava não era o mundo além-mar, não era o porto além das águas, não era a pedra existente em outro cais, mas tão somente o mistério indecifrado naquelas águas.
Um leito azul, esverdeado, escurecido após o anoitecer, calmo e grandioso, mas que certamente seria uma estrada para algum lugar melhor do que aquele do cais.
E num entardecer de cais e de velho sentado à beira do cais, na sua pedra de todo dia, de repente os passos seguindo em direção ao imenso mar, rumo àquela estrada misteriosa.
E o velho andando, seguindo mais, molhando os pés, as pernas, os joelhos, o corpo inteiro. Desapareceu por um instante. Parecia ter sumido no mar. Mas não. Retornou.
Colocou os passos novamente na areia do cais e caminhou adiante. Foi, lentamente, seguindo adiante. Sentia-se renovado depois do banho de mar. Imaginava, enfim, poder voar.
Moradores mais
antigos de sítios, na velha estrada entre Umarizal a Apodi, relembram fatos da
passagem do bando liderado por Lampião a caminho do ataque frustrado à cidade
de Mossoró
Publicado
originalmente no jornal natalense Tribuna do Norte – edição de
domingo, 20 de junho de 2010, página 7.
José Daniel
Carneiro, o Zé Daniel, ex-vaqueiro, nasceu no Sítio Língua de Vaca, no
município de Caraúbas-RN, em 14 de maio de 1922, e desde os dois anos de idade
é morador do Sítio Poço Redondo, a 32 km do centro urbano. José Sena de Lima, o
Zé Sena, ex-combatente da Segunda Guerra Mundial, nasceu em 28 de novembro de
1922, na Fazenda Sabe Muito, também em Caraúbas, onde o seu pai era vaqueiro, e
desde 1930 mora no Sítio Xique-xique, a 30 km do centro da cidade. Os dois
contam como foi a passagem aterrorizante do cangaceiro Virgulino Ferreira da
Silva, o Lampião, e seu bando, pela velha estrada de Umarizal a Apodi.
Cooptado com
Massilon Benevides Leite, potiguar da cidade de Luís Gomes, para invadir
Mossoró e se beneficiar do impressionante capital acumulado, graças a dinâmica
econômica da maior cidade da Região Oeste potiguar, em 10 de maio de 1927,
depois de ter atacado a cidade de Belém do Rio do Peixe, na Paraíba, Lampião e
cerca de 57 homens entram no Rio Grande do Norte, pela cidade de Luís Gomes,
invadem sítios, espalhando medo e terror por onde passam, destruindo tudo que
encontram à sua frente, cometendo os piores atos de violência como sequestrar,
saquear, incendiar casas, estuprar e matar.
Nos sítios
Aroeira e Bom Jardim roubam dinheiro e joias, prendem dona Maria José, de 70
anos de idade, esposa do proprietário do sítio Aroeira, exigindo resgate de 30
contos, e cangaceiro Graúna mata José Silva, um morador do sítio. No Sítio Bom
Jardim, de Cassiano Benício, o susto do cangaceiro mata Moisés Boa Água, avô
materno de Antônia Ayres Viana, a futura esposa do então menino Zé Daniel. O
seu Zé Sena conta que quando Lampião passou por aqui, ele morava no sítio
vizinho de nome A Volta do Juazeiro, e se lembra de tudo, da correria das
pessoas deixando suas casas para se esconderem nas caatingas…
De atrocidades
em atrocidades, por todos os recantos, sítios e povoados por onde passaram, os
cangaceiros chegaram a Mossoró em 13 de junho de 1927. Oito moradores da
Passagem das Oiticicas são aprisionados como reféns. Mas Lampião foi
surpreendido por cerca de trezentos bravos defensores, que atiravam de todos os
cantos da cidade; então, a partir da derrota em Mossoró, Lampião começou a
perder forças e acabou fugindo para a Bahia com poucos homens. Sua saga
completou-se em 28 de julho de 1938, em Angicos, no Estado de Sergipe.
Zé Daniel
cresceu cuidando de gado e outros animais no Sítio Poço Redondo, de Hermano
Fernandes, onde foi o principal vaqueiro. Casou-se com dona Antônia Ayres Viana
e tiveram nove filhos. Este que vos escreve é um deles. Zé Sena foi convocado
para a Segunda Guerra Mundial, em outubro de 1943, aos 21 anos de idade. Como
oficialista do Batalhão, trabalhava como sapateiro, profissão que aprendeu com
seu pai. Conta que foi a cavalo do Sítio Xique-xique até a cidade de Caraúbas,
de lá foi de trem até Mossoró e de caminhão pau-de-arara até Natal.
Tanques do 2º
BCC – Batalhão de Carros de Combate em Natal, na região onde atualmente se
localiza a Base de Lançamento de Foguetes da Barreira do Inferno – Fonte – “O
FORNOVO” – Informativo do IHGGS e da AHIMTB/SP – ANO: III (2015), JANEIRO, N.º
12
Lembra que
ainda não existia a ponte do Rio Assú, então atravessaram o pau-de-arara num
pontal de madeira, uma balsa grande, e todos empurrando. Ele ficou nove meses
no 2º Batalhão de Carros de Combate, em Natal, quando chegou o chamado para o
Rio de Janeiro. Todo o batalhão viajou de navio durante oito dias e oito noites
até Cabo Frio-RJ. Eram 10 navios de carga levando as armas e dois navios com o
batalhão inteiro de três mil soldados.
De Cabo Frio
foram de trem para o 6º RI – Regimento de Infantaria, em Caçapava, no Estado de
São Paulo, e de lá, enviados para o centro de batalha. Mas foi em Cabo Frio que
o seu Zé Sena teve muito medo de morrer, porque os alemães enviavam submarinos
na tentativa de matar a todos.
José Sena,
sentado na cajarana centenária, no pátio do sítio Xique-xique. Neste local os
cangaceiros saquearam uma mercearia – Fonte – Tribuna do Norte.
Com o fim da
segunda guerra em 1945, ele voltou para o Sítio Xique-xique, onde serve como
fonte de pesquisa para estudantes etc. Casou-se com dona Maria Auxiliadora
Praxedes, com quem teve uma filha; e em segundo casamento, com dona Eliete
Martins da Fonseca, teve oito filhos.
O Zé Daniel
que nunca fez mal a ninguém, mas por ser da família Carneiro, quase sempre que
acontece um crime na Região Oeste potiguar, a polícia bate a sua porta a
procura de possíveis criminosos, mas nunca encontra um sequer em sua casa. São
dois amigos, de 88 anos, dois homens unidos numa história: “o susto de
Lampião”, na estrada velha do Apodi.
Extraído do blog Tok de História administrado pelo historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros
Antônio
Ignácio da Silva era o cangaceiro "Moreno. Nasceu em Tacaratu, no dia 1º de
novembro de 1909 e faleceu em Belo
Horizonte, no dia 6 de setembro de 2010. Foi um cangaceiro pertencente à Empresa de Cangaceiros Lampiônica & Cia do famoso e sanguinário Lampião.
Moreno após o cangaço e como homem do bem
Após a morte deste, fugiu de Pernambuco e
adotou o pseudônimo de José Antônio Souto, fixando-se em Minas
Gerais. Foi um dos integrantes do bando com maior longevidade,
e foi um cangaceiro dos últimos a morrer.
Coronel Jesuíno Martins de Sá, pai de João Sá, detido com este, por Lampeão e
seu bando, em Sítio do Quinto. Recuperando, em Photoshop, sua imagem,
modificando a original sofrível de: A Critica, 30/12/1928.
Ten. João Gomes de Lira - fala sobre as primeiras intrigas em Nazaré, com Virgulino (Lampião) e, irmãos Ferreira. Troca de tiros, ferimento em Livino ( irmão de Lampião ).
Casamento de LICOR, prima de Lampião que, segundo se fala, ele gostava dela. Prisão de Livino, etc.
O grande escritor baiano Jorge Amado fala sobre o enterro das cabeças de Lampião e Corisco e, sobre a a amiga ex-cangaceira Dadá..
OBS: Poucos sabem disso, mas foi ele, quem doou o Jazigo Perpétuo e o caixão para que Dadá sepultasse os ossos de Corisco, seu ex-companheiro de vida no cangaço.
O Vídeo é de 1977 resgatado por Pedro Urizzi - Youtube
Pesquisa de Volta Seca publicada no Grupo Cangaço Discussão Técnica - FaceBook
// Foi um
choque a notícia da morte do jornalista Ricardo Boechat em acidente de
helicóptero, que precipitou sobre uma rodovia em São Paulo. A meu ver Boechat
cativou um enorme público pela sua opinião isenta e visivelmente apartada de
prioridades ou privilégios. Nas entrevistas era incisivo na crítica com sobejo
fundamento e pertinência. Embora polêmico, por vezes, contraditório, era enfim
admirado respeitosamente por quem havia inquirido com rigor. Deixará uma lição
do fazer jornalismo, além de espírito público manifesto em seus variados
programas nas diferentes mídias, tevê, rádio, jornal ou internet.
Por outro
lado, Boechat foi vítima de mais uma sequência de tragédias, contra as quais se
batia pela busca de respostas. No seu derradeiro programa, criticou a
impunidade que produz repetições de catástrofes que poderiam ser previstas e
evitadas.
E o
helicóptero? Afinal, é um transporte seguro, em que pese às notícias de tantos
acidentes pela mídia?
Foto do acervo da amiga Angelita de Araújo, comandante de
Boeing da GOL.
Nesse ponto,
teço breve explanação pessoal para chegar a melhor resposta à indagação
anterior. Sou formado em Letras pela Universidade de Brasília há algumas
décadas. No passado exerci o mister de controlador de voo e piloto civil, após
curso na escola de cadetes da AFA. Também exerço, além do magistério noturno, a
função de revisor profissional de textos e, nesta última década, atuei na
assessoria de revisão dos relatórios finais do CENIPA, que é o centro
investigador de acidentes aeronáuticos do governo federal, exercido pela FAB.
Após exame de
centenas de relatórios de acidente com helicópteros, adstritos a proficientes
investigadores do Cenipa, e com base nas estatísticas havidas e confrontantes
aos incidentes e acidentes, eu poderia arriscar que a resposta é sim, que voar
de helicóptero é um meio seguro de transporte de pessoas. Notadamente o tipo de
helicóptero que está na cena do infausto acidente com Boechat: o Bell Jet
Ranger, em voo há mais de quatro décadas no Brasil.
O
piloto Ronaldo Quattrucci ao lado do Bell Jet Ranger que sofreu lamentável
acidente. Veja SP.
Do acidente em
tela, em que pereceram o piloto Ronaldo Quattrucci e o âncora Boechat, nada se
pode concluir de forma terminativa, pois o processo investigador pelo Cenipa
está em curso inicial. Em um panorama geral acerca de acidentes com
helicópteros podemos tecer uma suma estatística.
Pelo site do
Cenipa, atendendo à demanda por informações, os interessados podem absorver
dados disponíveis, por meio do Sumário Estatístico de Helicópteros. Na mesma
página do órgão brasileiro de prevenção e investigação de acidentes aéreos,
lê-se resumida nota da Associação Brasileira de Pilotos de Helicópteros (Abraphe)
em que enuncia ser o Brasil um dos maiores operadores de helicópteros do mundo.
Da mesma forma
a ANAC fez divulgar esta semana (11/02/2019) que há 2119 helicópteros
registrados no Brasil, e que, em 2018, houve 21 acidentes desse tipo de
aeronave que constam dos relatórios. Dessas ocorrências, foram sete acidentes
graves com 24 mortos, sendo que a média de fatalidades relacionadas a
helicópteros para os últimos dez anos resultando na conta de 14,4 ao ano. Se
elevarmos os números estatísticos para a aviação em geral, biênio 2017/2018,
pode-se destacar a marca de 1 acidente para 1.3 milhão de voos.
Ricardo
Boechat e Veruska Seibel, no 8º Encontro Internacional do Vinho,
2005. Arquivo: Gazeta.
O modelo de
helicóptero B06, Bell 206B Jet Ranger II, monomotor à turbina, há muitos anos
considerado o helicóptero mais seguro do mundo, por pilotos e organismos de
safety, ele próprio muito utilizado em voos de salvamento de risco e até em
combate a incêndio, exatamente é o tipo de transporte que vitimou Ricardo
Boechat.
Lembro-me de
um dileto amigo, o comte. Antônio Nascimento, da antiga Votec, que fez o famoso
voo dentro do túnel do Pasmado, no Rio, no conhecido filme Roberto Carlos em
Ritmo de Aventura, de 1968, faleceu recentemente, já idoso, após 15 mil horas
de voo, boa parte em asas rotativas.
Para concluir,
pode-se afirmar que voar de helicóptero é bastante seguro. Já há tempos no meio
da aviação se diz que dos veículos aéreos o helicóptero só fica atrás do avião.
Que o helicóptero só rivaliza em termos gerais em qualidade de segurança com os
elevadores, que vivem em monótono sobe e desce, e com o metrô; no entanto, voar
é bem mais fascinante e divertido do que estes.
No mais,
lastimam-se os admiradores de Boechat, pois ficou a marca inconfundível de um
inegável profissional da opinião, deixando verdadeiras aulas de humor e
cidadania, que a todos contagiava. E certamente já deixando saudades nas manhãs
da telinha mágica!
Luiz Serra,
acadêmico do IHGDF e autor do ensaio histórico "O Sertão Anárquico de
Lampião".
Maria Gomes de Oliveira segunda filha do casal José Gomes de Oliveira, José Felipe e de dona Maria Joaquina Conceição de Oliveira, Maria Déa, como toda moça no desvirginar da adolescência, sonha em casar e ter seu ‘príncipe encantado’ ao seu lado por toda a vida.
Nos sertões nordestinos esses sonhos eram, na maioria das vezes, uma maneira de fugir, escapar, do modo, maneira, ao qual eram tratadas as meninas pelos pais.
A criação não era nada fácil para um casal de agricultores, vivendo exclusivamente do que a roça lhes oferecia. O maior temor de um pai, ou uma mãe de família, naquela época era ter sua filha vendendo seu corpo nos cabarés das cidades. Principalmente a mãe, pois o machismo reinante faziam-na exclusivamente culpada. Com esse receio, em vez de educar, mostrando o fato, como a coisa se dava, e assim ela própria teria tempo para construir uma forte ‘muralha’ como defesa, os pais faziam eram manter suas filhas como escravas, ensinando, quando ensinavam, como ser obedientes em tudo ao marido. Logicamente, como em toda regra tem exceção, nessa também teve a sua.
O Casório…
Como em toda adolescência faz-se os grupinhos de moças e rapazes, com particulares e ‘segredos’ entre eles, naquele tempo, também tinha. Nos anos que se seguiram, Maria foi ‘ganhando’ uma ruma de irmãos, e fazendo amizades com algumas primas e primos. Logicamente todo mundo teve sua, ou seu, confidente, e Maria Gomes, Maria de Déa, tinha sua prima Maria Rodrigues de Sá como tal. Nas festividades, sambas e forrós que tinham na região, nas cidades de Santa Brígida, Santo Antônio da Glória e Jeremoabo, todas no Estado baiano, as quais ficavam mais perto de seu lugarejo, Malhada da Caiçara, pelos cálculos da época, como suas primas e amigas, Maria de Déa arrumou namoricos com um ou outro rapaz.
Quis o destino que Maria se apaixona pela primeira vez por um de seus primos chamado José Miguel da Silva, por todos conhecido como Zé de Neném, da mesma localidade em que nascera, na Malhada da Caiçara, tendo uma espécie de ‘atelier’, ou um quarto de trabalho, um local para trabalhar, em Santa Brígida, onde exercia sua profissão de sapateiro.
Zé de Neném
"(…) Zé de Neném era filho de Pedro Miguel da Silva conhecido por todos na região pela alcunha de Pedro Brabo e Maria Conceição Oliveira, apelidada de Neném. O parentesco do sapateiro com Maria de 'Déa' vinha por parte da sua avó, Generosa Maria da Conceição, uma senhora que era conhecida pelo apelido de Juriti e que era irmã de Zé Felipe, pai de Maria (…).” (“A trajetória guerreira de Maria Bonita – A Rainha do Cangaço” –LIMA, João de Sousa. 2ª Edição. Paulo Afonso, BA, 2011).
Foto da casa dos pais de Maria Bonita.
Como a família de Maria Gomes, a família de Zé de Neném era bastante grande. Naquela época não havia os meios contraceptivos atuais e, com toda certeza, fazer, fecundar, filho era como se fosse um investimento para o futuro, erroneamente pensavam assim os catingueiros. No futuro eles iriam ajudar os pais nas lidas diárias das fazendas, essa, e simplesmente essa, era a razão. Dentre as irmãs do sapateiro, destacamos Mariquinha Miguel da Silva, que, em determinada época, deixa seu marido, Elizeu, que era proprietário da fazenda Ingazeira onde moravam, e dana-se no mundo sombrio e incerto do cangaço com o bandoleiro Ângelo Roque, chefe de um dos subgrupos do bando de Lampião, que tinha a alcunha de ‘Labareda’. Maria e José casam-se.
Não demoraria muito para que se começassem as incompatibilidades.
A Separação…Maria era por demais ciumenta e seu esposo, Zé de Neném, um verdadeiro ‘pé de forró, não saindo dos sambas.
Certa feita, estando Zé em um dos vários botecos, bebendo com alguns conhecidos, chega Maria e arma o maior escarcéu. Zé se defendia das acusações de Maria até quando pode, porém, a baiana encontra em um de seus bolsos uma lembrança de uma ‘amiga’, um pente com o nome da mesma. Nisso o pau quebrou pra valer. E a já conturbada vida a dois entre Zée Maria, pelo fato de Maria não engravidar, desmorona-se de vez.
“(…) Maria encontrou um pente em um dos bolsos do marido, com o nome de uma moça gravado no objeto (…). Este tipo de discussão e separação tornou-se uma constante e marcou significativamente o relacionamento dos dois (…). O casal não chegou a ter filhos. Alguns amigos confirmam a esterilidade do sapateiro Zé de Neném, que não chegou a engravidar nenhuma das mulheres com quem viveu (…).” (Ob. Ct.)
Pois bem, nessa, como em tantas outras ‘separações’, Maria Gomes correia a procura dos braços acalorados e protetores de seus familiares, apesar de seu pai, Zé Felipe, não concordar com tais separações, ela assim procedeu por várias vezes.
E Chega Lampião!!!
Em uma dessas separações, já se indo alguns dias, mais ou menos quinze dias de Maria estar na casa de Déa, sua mãe, ela, por um acaso conhece o “Rei dos Cangaceiros”. Achamos, particularmente, que num ímpeto, Maria deixa aflorar seu ego, e permitiu que se falasse o cupido. Tanto Maria, quanto Lampião sente alguma coisa dentro deles de cara. A atração foi dupla e contagiante. Lampião, que tanto fez arapuca, tanta emboscada aprontou, caiu de quatro pela armadilha que o destino lhe fez. A morena da Malhada da Caiçara acabou de domar uma fera nascida e criada na região pernambucana do Pajeú das Flores. Não podendo mais esconder sua paixão, Lampião inventa de inventar uma encomenda, vários bordados em lenços de seda, simplesmente para ter a desculpa, de vindo ver se tinha algum lenço pronto, vir mesmo era Maria. Sabedora dos planos de Virgolino, Maria, logicamente aceita a encomenda e trata de, também, curtir aqueles raros momentos.
“(…) Era uma sexta-feira, Lampião pisou o batente da casa de Zé Felipe e Maria Déa. Odilon Café apresentou ao cangaceiro uma das filhas daquele casal, que no momento se encontrava ali, por estar separada do marido. Novos sentimentos renasceram naqueles minutos seguintes. Depois de uma rápida conversa, lampião pergunta a Maria: – Você sabe bordar? – Sei! – Vou deixa uns lenços pra você bordar e volto daqui a duas semanas pra buscar! Este foi o primeiro diálogo realizado entre Lampião e aquela que seria a sua grande companheira e eterna paixão, até o fim da vida (…).” (Ob. Ct.)
A partir de determinado tempo, ou de um dos encontros entre eles, não teve mais volta. O pai de Maria Gomes, Zé Felipe, não aprovava o namora entre ela e Lampião. Já por outro lado, sua mãe, Maria Déa, parece que até ‘cortar jaca’, cortou, para que eles se encontrassem.
Violência Policial contra a Família de Maria Bonita
Naquele tempo, a casa que recebesse com maior constância visita de cangaceiro, com toda certeza, logo, logo receberia a visita de alguma das volantes que caçavam os grupos. Então, rastejando os vestígios dos cangaceiros, as volantes terminaram fazendo, também, várias ‘visitas’ a casa da fazenda do pai de Maria Gomes, Zé Felipe. Com o aperto que deram no velho patriarca, cacete nele e sua família, até Zé de Neném foi pra debaixo da madeira, Zé Felipe resolve mandar sua filha para casa de um parente na fazenda Malhada, nas Alagoas. Para que assim, as volantes os deixassem em paz. Ao saber disso Lampião vai e dá um ultimato para Zé Felipe, ou ele manda buscar sua Filha em terras alagoanas ou ele destrói a fazenda com tudo que nela existia. Sem ter, novamente, uma saída, Zé Felipe manda alguém buscar Maria, sua filha.
Ao retornar, Maria Gomes percebe o quanto sua família estava envolvida numa encrenca desgraçada por seu romance com o ‘Rei do Cangaço’. Nesse momento, ela toma uma decisão importante que mudaria a vida de muita gente, principalmente a do pernambucano fora-da-Lei, para que a Força Publica deixasse seus familiares em paz. Quanto da localidade de onde Maria Gomes resolvera seguir com Lampião, não fora na fazenda onde nascera, a Malhada da Caiçara, e sim, numa outra localidade, onde cuidava de sua avó materna, Ana Maria, que estava enferma, denominada Rio do Sal.
Ao contrário do que pensou, planejou Maria de Déa, a Força Pública não se afastou da casa de seus familiares, pelo contrário, as visitas tornaram-se mais constantes e violentas, tendo como alvo principal o velho Zé Felipe, seu pai.
Estando já a não aguentar mais tanta pressão e cacete, Zé Felipe recebe a visita de um dos soldados da volante, que era seu amigo Antônio Calunga, dizendo-lhe que o comandante da volante recebera ordens superioras de acabar totalmente com a fazenda Malhada da Caiçara, matando todos que naquela ribeira moravam.
Zé Felipe agradece ao amigo, junta sua família, desce rumo às águas do “Velho Chico” aluga uma embarcação, coloca todos dentro e passa para o solo alagoano. Vai montar residência no sítio chamado ‘Salgado’, no município de Água Branca. Porém, sua estada nele é curta. Pega suas trouxas novamente, levanta acampamento, junta seus familiares e parte rumo ao local denominado ‘Salomé’, o qual, hoje é a cidade de São Sebastião. Nessa agonia, tendo de deixar suas terras por serem perseguidos e maltratados, constantemente, pela volante, um de seus filhos, conhecido como Zé de Déa, resolve juntar-se ao cunhado, Lampião. Lá estando, conta por tudo que seu pai, sua mãe, seus irmãos e irmãs passam. Lampião ordena que se façam as vestes, bornais, cartucheiras, em fim, toda a tralha de um cangaceiro para seu ‘cunhado’, e separar-se, também, as armas para o mesmo usar. No entanto, Maria sua irmã, não permiti que ele use armas. Mesmo estando por mais ou menos oito dias no acampamento, Zé de Déa e sempre aconselhado pela irmã para não fazer parte daquela vida em que ela metera-se. Termina o irmão por ceder aos conselhos da irmã.
O “Rei dos Cangaceiros”, através da sua malha de informantes, sabe da fuga do sogro e sua família, assim como tem o conhecimento da ordem e do nome do policial comandante incumbido da tarefa de matar toda a família de Maria, sua amada, que seria o tenente Liberato de Carvalho.
Recado de Capitão para Capitão…
Certo dia chega a casa onde moravam Zé Felipe e sua família, uma volante policial. Começam a destruir as coisas, matam alguns animais que estavam soltos, mas, próximos a casa. Sem ninguém da família na casa para saciar a ira dos volantes, sobra para um morador das redondezas, que seria, segundo indicaram, um coiteiro, o qual é colocado debaixo de cacete e depois assassinado pela tropa.
“(…) Uma volante visitou a casa de Zé Felipe e não encontrando ninguém, quebraram as madeiras dos currais, destelharam e quebraram parte do telhado da residência, matando alguns animais. Menos sorte teve o coiteiro Manuel Pereira, conhecido como Manuel Tabó, que por não ter fugido acabou sendo espancado e morto pelos soldados (…).” (Ob. Ct.)
Lampião, sempre ardiloso, sabia que partir para enfrentar de cara a volante, indo a desforra, pelo que fizera nas terras da Malhada da Caiçara, usa de outra artimanha. Ordena a um de seus ‘cabras’’ que vá em determinado lugar, e peça a determinada pessoa para vir vê-lo. Essa pessoa já havia, em outras oportunidades, feito o mesmo que ele o enviaria para que fizesse.
Essa pessoa era conhecida pelo apelido de Tonico, e era irmão de Zé de Neném, ex marido de sua companheira Maria de Déa.
Lampião escreveu uma missiva e determina que o jovem a leve ao Capitão João Miguel, em Jeremoabo, BA. Assim, o jovem após dar voltas e ter a certeza de não estar sendo seguido, parte rumo ao destino determinado. Lá chegando, procura o oficial no QG.
“(…) Tonico seguiu em direção ao quartel, sendo recebido por um sargento que fazia a guarnição e lhe perguntou: -O sinhô qué fala cum quem? -Com o Capitão João Miguel! -Eu posso resolver? -Não, tem que ser com o Capitão! O sargento foi até a sala do capitão, retornou alguns minutos depois e pediu para que Tonico o seguisse até a sala do oficial (…).” (Ob. Ct.)
Tonico era frio, Lampião sabia escolher a pessoa certa para cada missão específica. E essa era bem difícil de ser cumprida, pois tinha que o colaborador entrar em um quartel militar. Chegando diante do capitão, esse dispensa o sargento e recebe o papel que lhe é entregue pelo portador.
“(…) O Capitão João Miguel, depois que leu o bilhete, falou: “Se você está numa missa dessa, não é preciso pedir segredo, pois você deve ser da confiança de Lampião”.
Os dois conversaram secretamente, trancados dentro da saleta. O Capitão João Miguel mandou a resposta: diga ao Capitão que pode mandar o sogro dele voltar, pois a partir de hoje não passará mais nenhum soldado na sua porta. Na manhã seguinte, ao despertar, Tonico regressou da sua missão, trazendo consigo, a promessa positiva de que nenhuma volante iria mais importunar aquele pedaço de chão e sua gente V…).” (Ob. Ct.)
Vejam que Virgolino não só sabia manejar as alavancas das armas que usou, mas, também, com tinta, pena e papel, fazia suas defesas diante de uma guerra particular, imposta por ele mesmo, contra seus inimigos.
Uma das coisas que mais ocorreu no cangaço foi à traição, tanto do lado dos cangaceiros e coiteiros, como mesmo do lado daqueles que os davam combates. E essas atitudes, tomadas por dinheiro ou ‘favores’, foram mais um motivo para que Lampião prolongasse por quase vinte longos anos, seu reinado de sangue, lágrimas e mortes nas entranhas do sertão nordestino.
Fonte “A trajetória guerreira de Maria Bonita – A Rainha do Cangaço” – LIMA, João de Sousa. 2ª Edição. Paulo Afonso, BA, 2011. Foto Ob. Ct. Benjamin Abrahão.