Rubervânio Rubinho Lima*
Introdução
Esta pesquisa, guiada pela perspectiva ampla dos estudos
históricoculturais, procura avaliar o estado de agregação dos acontecimentos
históricos relacionados ao cangaço na Bahia, tomando como foco a cidade de
Paulo Afonso, no âmbito dos fatores que circundam a recuperação da história das
origens da cidade, através da valorização da memória. Fazendo um contraponto
entre as inúmeras manifestações históricas que aparecem na cidade, tomando como
base os indícios de que os cangaceiros, de certa forma, conseguiram com que o
progresso caminhasse no sertão e, levando em consideração que a cidade de Paulo
Afonso traz um potencial histórico que vem sendo explorado, através da temática
do cangaço. A intenção é evidenciar a parte histórica relacionada aos diversos
acontecimentos, no período em que Lampião e seus bandos percorriam pelo sertão
baiano, mais precisamente pela jovem cidade, que foi palco de inúmeras
histórias e ajudou a engrossar as fileiras do cangaço com muitos cangaceiros e
cangaceiras, a exemplo da pauloafonsina Maria Bonita, que decidiu, num ato de
amor e coragem, seguir Lampião até o fim da vida. Desse modo, há, na cidade, *
Representante territorial de cultura do Território da Cidadania Itaparica
BA/PE. Formado em Letras – Inglês e Português pela Faculdade Sete de Setembro –
FASETE, com Especialização em Estudos Literários na Universidade Estadual de
Feira de Santana - UEFS, e Especialização em Gestão Cultural pelo Serviço
Nacional do Comércio (SENAC/EAD), escritor, pesquisador e membro da SBEC –
Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço. Bolsista da UNEB Campus VIII –
OPARÁ – Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação.
E-mail: rubinholim@gmail.com Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação,
Paulo Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez. 2014 Acesse: www.uneb.br/opara |
ISSN 2317-9457 | 2317-9465 62 uma busca visível pela definição
histórico-cultural e pela identidade, para que, com isso, Paulo Afonso
descubra-se, desperte e se afirme culturalmente. Este capítulo surgiu da feliz
constatação do potencial histórico e cultural da cidade de Paulo Afonso, no
interior da Bahia, que hoje anda junto com o potencial turístico, ecológico e
energético, já tão explorados na região. Contando com 57 anos de idade,
completados no dia 28 de Julho do ano de 2015 (coincidentemente também, data em
que, no ano de 1938, é dado fim à vida de Lampião e Maria Bonita) a cidade, que
antes era um povoado bem pequeno, pertencente à antiga Santo Antonio da Glória,
hoje Glória, se destaca pelo seu potencial energético, através de uma companhia
hidroelétrica, e também pelo privilegio de estar localizada às margens do Rio
São Francisco, fazendo então divisa com os estados de Alagoas, Sergipe e
Pernambuco. Na tentativa de unir passado e presente, o trabalho trata de alguns
acontecimentos regionais em paralelo com manifestações artísticas e com
estudos, a fim de divulgar a cultura nordestina, sobretudo, procurando apontar
a cidade como berço cultural, encubando artistas e pesquisadores que utilizam a
temática do cangaço como inspiração. Com este trabalho, há uma busca pela
valorização da história local, partindo da observação da entrada de Lampião ao
estado da Bahia, na década de 20, como forma de avaliar o valor histórico da
passagem do cangaço pelas terras baianas e para favorecer espaços de fixação da
memória coletiva e promover questões culturais existentes ou em fase de
concretização, através do estudo desse fenômeno. Paulo Afonso, em detrimento de
suas belezas naturais e de sua belíssima cachoeira, a qual já serviu de
inspiração para o poeta baiano Castro Alves, possui hoje lugar de destaque no
turismo ecológico, esportes radicais e, atrelando-se a esse cenário, também o
turismo do cangaço, que atualmente tem ganhado força e despertado
pesquisadores, artistas e estudantes em geral para essa forma de
ressignificação da memória da cidade. Além de todos os rumos culturais,
agregados aos Rubervânio Rubinho Lima Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e
Educação, Paulo Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez. 2014 Acesse:
www.uneb.br/opara | ISSN 2317-9457 | 2317-9465 63 trabalhadores que vieram de
vários lugares do Brasil e trouxeram de suas origens, na construção das usinas
de geração de energia, há também algumas manifestações culturais e fatores
históricos que são uma forma de alicerçar a cultura da cidade, tais como os
festejos nordestinos e a história forte do cangaço, presentes nas terras
pauloafonsinas. Com isso, esse estudo pretenderá percorrer pelos rumos da
história, através de um estudo aprofundado nos livros de pesquisadores do tema
e da busca por relatos de ex-cangaceiros ou personagens que ainda vivem e que
tiveram relação com essas parcelas da história. O cangaço, através de seu
representante mais significativo, Virgolino Ferreira da Silva, o Lampião, também
teve como cenário a cidade de Paulo Afonso, de modo que, de acordo com estudos,
podemos constatar que, a cada dia, o cangaço tem se firmado como algo capaz de
movimentar o turismo e a história dessa cidade, no interior baiano. Um Pouco da
História Situada no interior da Bahia, estando em uma região privilegiada, com
cânions, cachoeiras e belezas naturais invejáveis, Paulo Afonso tem laços
territoriais com os municípios baianos de Nova Glória, Jeremoabo e Santa
Brígida. Paulo Afonso localiza-se na margem direita do Rio São Francisco, na
porção submédia. Do outro lado do rio, carinhosamente também chamado “Velho
Chico”, estão os estados de Alagoas, Sergipe e Pernambuco. A área de Paulo
Afonso é de 1.018 km2, e sua sede dista 480km de Salvador. O município está
compreendido na Região do Semi-árido e toda sua área está incluída no polígono
das secas. A cidade de Paulo Afonso, justamente pela forma como foi originada,
através da construção das usinas da CHESF – Companhia Hidroelétrica do São
Francisco, não possui uma composição de elementos que sinalizam a cultura local
definida e isso é um dos objetivos desse estudo, o de percorrer pelas
evidencias históricas e pela memória coletiva do lugar em busca de conhecer
alguns elementos que podem dizer que a cidade esteve inserida no hall das que
serviram de cenário para o fenômeno do cangaço. O Cangaço na Bahia: A
Incidência Histórica desse Fenômeno em Paulo Afonso – Ba Opará: Etnicidades,
Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez. 2014
Acesse: www.uneb.br/opara | ISSN 2317-9457 | 2317-9465 64 Entretanto, para que
essa pesquisa possa ter uma fagulha inicial, percebe-se que há uma movimentação
muito forte, em se tratando da questão das origens de alguns dos personagens
mais marcantes no período em que, no nordeste, com a influência de vários
fatores e de acordo com o contexto social em que os sertanejos se encontravam
na época, pelo cangaço, que aponta uma certa apropriação dessa temática que é
polêmica até os dias de hoje, no que pesquisadores e artistas, de um modo
geral, se inspiram em partículas históricas e o cangaço aparece também como um
tema em que a arte e o estudo se debruçam, nos dias atuais. O marco inicial
dessa pesquisa é a travessia de Lampião e outros sicários, para o estado da
Bahia, nas águas do São Francisco, no dia 21 de agosto de 1928. Em 2015
completaram-se 87 anos que o “Rei do Cangaço”, com mais cinco cangaceiros,
vindo do estado de Pernambuco, atravessaram o Rio São Francisco e se instalaram
na Bahia, passando a atuarem, em suas ações de bandidos das caatingas nesse
estado. Contudo, esse período, que compreendem há dez anos, até a ocasião da
morte do representante maior, em 1938, também reserva muita magia, pois foi um
tempo em que as mulheres passaram a acompanharem seus companheiros cangaceiros,
as indumentárias e objetos foram ganhando retoques, detalhes, arranjos florais,
enfeites de ouro, moedas e jóias e a ostentação passou a ser mais eminente. É
uma retomada do cenário fantástico dos cangaceiros, repleto de riquezas, ouro,
cores, ornamentos e ostentação nas suas roupas, armas, chapéus, através da
observação de objetos e de fotos que mostram a beleza e magia desse ambiente,
através das artes e ornamentos, bem como toda a magia que circunda o fenômeno
do cangaço, na análise de muitos desses artigos, hoje encontrados em posse de
pesquisadores da região. De acordo com o pesquisador e escritor João de Sousa
Lima (LIMA, 2003, p. 16), Paulo Afonso serviu como uma das cidades que mais
forneceu cangaceiros para os grupos, tomando a coroa da cidade de Poço Redondo,
Estado de Sergipe, que ficou conhecida como a capital do cangaço, por ter visto
28 filhos da terra seguirem Lampião e seus Rubervânio Rubinho Lima Opará:
Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75,
jan./dez. 2014 Acesse: www.uneb.br/opara | ISSN 2317-9457 | 2317-9465 65
subgrupos. Em suas descobertas para a confecção do livro “Lampião em Paulo
Afonso”, João de Sousa constatou e enumerou 31 cangaceiros e cangaceiras
oriundos da cidade de Paulo Afonso. Além disso, o autor ainda traz mais 15
outros, pertencentes ao povoado chamado Brejo do Burgo, que, mesmo pertencendo
à Glória, faz divisa ainda com Paulo Afonso e sempre fez parte do arraial
conhecido como Tapera de Paulo Afonso, que somados aos trinta e um cangaceiros
pertencentes à cidade pauloafonsina, somaria um total de 46 bandidos dessa
região. A exemplo, a figura mais importante, a mulher que conquistou o coração
do Rei das caatingas, a Maria Gomes de Oliveira, que ficou imortalizada como
Maria Bonita, nasceu no povoado Malhada da Caiçara, hoje pertencente à cidade,
em 17 de janeiro 1910 (Conforme aponta o pesquisador Voldi Ribeiro, através de
sua mais nova descoberta, de um registro de batismo atribuído à personagem
nessa data, o que vai de encontro à informação de que a cangaceira teria
nascido no dia 08 de Março de 1911). Na década de 30, com a entrada de Maria
Bonita para o cangaço, muitos outros cangaceiros seguiram o exemplo de Lampião,
também passaram a ter mulheres ao seu lado, o que mudou completamente o
comportamento dos bandidos. Essa entrada de mulheres no bando teve algumas
conseqüências, como mais respeito, por parte dos homens, às famílias e a
preocupação constante com o bem estar e segurança dessas companheiras, retirando-as
da zona de combate sempre que possível (AMAURY; FERREIRA, 1999, p. 193 e 194).
As mulheres não participavam dos combates e só portavam revólveres de calibre
32. A função dessas mulheres, no cangaço, era estritamente a de companheiras,
pois todos os afazeres necessários de convívio e sobrevivência, como cozinhar,
arrumar tendas e acampamento, costurar, eram dos homens. Essas cangaceiras
ostentavam riquezas e possuíam muitas jóias, muito ouro e vestidos de seda que
eram usados em ocasiões especiais. Constatamos também que, naquela época,
diante de tais condições as que viviam os sertanejos, oprimidos pela seca,
pobreza e descaso de O Cangaço na Bahia: A Incidência Histórica desse Fenômeno
em Paulo Afonso – Ba Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo
Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez. 2014 Acesse: www.uneb.br/opara | ISSN
2317-9457 | 2317-9465 66 autoridades, a “profissão” do cangaço despertava, nas
moças, certo fetiche e fascínio, de modo que muitas desejavam seguir esses caminhos,
ao lado dos cangaceiros. Hoje, transcorridas quase 8 décadas da morte de
Lampião, constatamos um intenso movimento de apropriação e glorificação do nome
desse bandido, tanto pelos cordelistas e poetas, que aparecem como o primeiro
suporte para a mitificação de Lampião e para a construção da memória coletiva
do cangaço, como também nas cidades em que o Rei do Cangaço se fez presente,
com seus bandos, através de grupos ativos de pesquisadores que propõem o
cangaço, não só com a tão batida indagação sobre bandido ou heróis, mas como um
novo sentido, privando pelas questões históricas, pela identidade e pelo
caráter cultural do cangaço. Ainda, relacionado à história do cangaço, surgem
os museus do cangaço, espalhados por vários lugares onde o cangaço teve algum
indício, cujas finalidades são o subsídio para pesquisadores e turistas que se
interessam por essa temática, sendo uma ferramenta para aqueles que pretendem
pesquisar, conhecer a fundo e coletar, registrar e colher elementos para
reconstrução desse período e fenômeno em questão. Além disso, esses espaços
apontam uma visível preocupação com o conhecimento e divulgação da história da
cidade em que há indícios da passagem de cangaceiros, em busca de promoverem
debate sobre a história e sobre a memória do cangaço. Maria Bonita, como ficou
conhecida logo após sua morte, deixou seu nome gravado, desde seu nascimento no
município de Paulo Afonso, Malhada da Caiçara, passando por sua decisão de
seguir seu amor verdadeiro, o Rei do cangaço, na década de 30, até ao seu fim
trágico, no ano de 1938, na fazenda Grota do Angico, quando, juntamente com
Lampião e mais nove cangaceiros, foi morta. Mas como sabemos, a sua fama se
expandiu, rumou para inúmeros lados do mundo, fazendoa, mesmo após tantos anos
de sua morte, uma das figuras brasileiras mais lembrada e pesquisada, junto ao
seu amor eterno, o bandido-herói Virgolino Lampião. Rubervânio Rubinho Lima
Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 2, n. 3, p.
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Além das manifestações relacionadas ao cangaço na cidade, há uma outra rota
cultural que é a visita a então restaurada Casa de Maria Bonita, onde, a partir
da iniciativa de pesquisadores como João de Sousa Lima, Luiz Rubem e Juracy
Marques, e com o apoio da prefeitura da cidade, foi reerguida, sendo construída
conforme era no passado, no tempo em que a cangaceira nasceu e vivia na
companhia de seus pais, passando a ser hoje um museu natural. Nessa casa
restaurada, podemos encontrar alguns objetos que retratam o viver daqueles
tempos e também algumas fotos dos cangaceiros. A reforma e estruturação desse
museu natural, além de ativar o turismo do cangaço e propor novas opções de
subsistência para os moradores do povoado Malhada da Caiçara, alguns até
parentes diretos da Rainha do Cangaço, ainda motivou a construção de uma
cartilha e de um documentário sobre a antiga morada de Maria do Capitão, antes
de entrar para o cangaço. Com relação a os aspectos históricos, a cidade de
Paulo Afonso, nos últimos tempos, tem sido palco de eventos cuja temática é
Lampião, cangaceiros da região e, mais recentemente, a cangaceira Maria Bonita,
que foi tema de três seminários consecutivos, a partir do ano de 2009 ao ano
2011 sobre o centenário de seu nascimento. A partir do primeiro evento, que
aconteceu no mês de março de 2009 e contou com participantes de vários lugares,
sendo seqüenciado pelos dois anos seguintes, contabilizando três eventos com a
mesma temática. Esses eventos, além de movimentarem estudiosos e interessados
pelo tema, ainda possibilitou a firmação da cidade como mais um espaço que
compõe a história do cangaço. O mais recente, acontecido em março de 2011,
contou com a presença de pesquisadores e historiadores relacionados ao tema e
teve resultados que superaram o esperado, tendo as três noites do evento, em
que aconteciam as palestras, todas com público vasto, além de promover mesas de
debates pertinentes à vida da cangaceira mais famosa e receber visitas de
alunos de escolas públicas e privadas para a exposição com fotos e objetos do
cangaço e também para a apreciação de vídeos sobre o tema. O Cangaço na Bahia:
A Incidência Histórica desse Fenômeno em Paulo Afonso – Ba Opará: Etnicidades,
Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez.
2014 Acesse: www.uneb.br/opara | ISSN 2317-9457 | 2317-9465 68 São presenças
constantes, nesses eventos, personalidades que fizeram parte desse contexto,
como o caso da ex-cangaceira Aristéia, que residia nas proximidades de Paulo
Afonso, falecida recentemente com 98 anos e os filhos dos excangaceiros
Durvinha e Moreno, que foram descobertos há poucos anos, residindo em Minas,
pelo pesquisador João de Souza, que escreveu um livro sobre o casal,
considerados os últimos cangaceiros do grupo de Lampião. Ambos, Moreno e
Durvinha já faleceram, mas deixaram ricos relatos dos acontecimentos da época
em que o cangaço era eminente e também protagonizaram um documentário que tem
sido projetado no Brasil e no mundo. Vale salientar que a falecida
ex-cangaceira Durvalina Gomes, a Durvinha, como era conhecida no cangaço, é
mais uma das que compõem a lista das mulheres que saíram das terras
pauloafonsinas para se juntarem aos cangaceiros que percorriam os sertões da
Bahia. A cultura que se estabelece com a exploração histórica do lugar, também
tem lugar nas diversas expressões artísticas possíveis, tais como as
apresentações da APDTAssociação Pauloafonsina de Dança e Teatro, companhia
artística da cidade que, em diversas apresentações, traz como tema Lampião,
Maria Bonita, o cangaço e o sertão. Essa companhia teatral, conforme relatos da
diretora Dolores Moreira, fez um estudo aprofundado, não só nas falas e cenas
do cangaço, mas também nos objetos e indumentárias dos cangaceiros, que, em
suas peças, retratam perfeitamente todos os detalhes das roupas, utensílios e o
falar, usados pelos cangaceiros. Estão na lista das apresentações desse grupo
de teatro e dança, espetáculos ligados à temática do cangaço, como “O sertão é
lindo”, “Alpercata de couro cru”, “Noite cabreira de Angico”, “Xaxado”, dentre
outros. Também, na cidade, podemos destacar um grupo folclórico tradicional,
chamado de “Cangaceiros de Paulo Afonso”, que, desde 1956, percorrem as ruas da
cidade encenando as batalhas com a volante e a morte de Lampião e seus
cangaceiros, sempre nos dias de carnaval. Esse grupo, que apresenta a sua
própria memória do cangaço, já é figura timbrada nos carnavais da Rubervânio
Rubinho Lima Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso,
v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez. 2014 Acesse: www.uneb.br/opara | ISSN 2317-9457
| 2317-9465 69 cidade e vão passando essa tradição de pai para filho. Cangaço e
Identidade Desde a colonização do Vale do São Francisco, no século XVI,
passando pelo latifúndio da região da Casa da Torre, onde, a hoje, Paulo Afonso
localizava-se pertencente à Garcia D’Ávila, doada posteriormente para o
sertanista Paulo de Viveiros Afonso, tornou-se um pequeno núcleo de pouso de
boiadas chamado “Curral dos Bois”, seguindo-se à “Tapera de Paulo Afonso”,
pertencendo a Santo Antônio da Glória, Bahia. A cachoeira de Paulo Afonso, que
foi visitada pelo Imperador D. Pedro II, em 1859, foi utilizada pelo pioneiro
industrial do Nordeste, Delmiro Gouveia, construindo uma pequena usina para
fomentar energia para sua fábrica de linhas e fios de algodão. Foi em 1945 que
a CHESFCompanhia Hidroelétrica do São Francisco, em projeto de utilizar as
águas da cachoeira para gerar energia, movimentou trabalhadores de vários
lugares do Brasil, dando início ao que se tornaria, depois, em 1958, na já
emancipada e desvinculada de Glória, cidade de Paulo Afonso. Para se percorrer
o caminho da busca pela identidade, esse texto buscará subsídios teóricos em
autores que trabalham com esse conceito, como podemos observar em Martinell,
que trata das identidades culturais locais. Algo cada vez mais importante no
mundo globalizado é que as políticas culturais locais fomentam a recuperação
das identidades culturais locais e territoriais. É preciso desenvolver em cada
população a auto-estima, a valorização daquilo de que dispõem em termos de
cultura. (MARTINELL, 2003, pag. 98.) Ainda para fonte de busca, Stuart Hall
também nos dá uma visão da importância de se perceber a identidade local como
legitimação para que estes indivíduos independendo de raça, classe e gênero, se
encontrem como importantes, colocando-os como unificados numa única identidade
cultural. (HALL, 2001, pg. 28) Para Hall, como forma de percebermos o que
acontece com as apropriações e aglutinações da cultura local para a global, a
identidade cultural moderna que é O Cangaço na Bahia: A Incidência Histórica
desse Fenômeno em Paulo Afonso – Ba Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e
Educação, Paulo Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez. 2014 Acesse:
www.uneb.br/opara | ISSN 2317-9457 | 2317-9465 70 formada através do
pertencimento a uma cultura 'nacional' e como os processos de mudança que
efetua um deslocamento, que compreende o conceito de "globalização".
(pag. 42) Para fins de estudo, essa produção também se alimentou das colocações
relacionadas à identidade, as quais Zigmunt Bauman nos aponta como processo de
libertação e valorização das classes. Objetivando estudar os elementos dessa
identidade a ser construída e mutável e dos mecanismos de formação cultural e
étnico, o projeto percorrerá por caminhos de descoberta, a fim de conhecer e
afirmar ações culturais, para definir a cultura local dessa cidade, em
crescente potencial cultural e em momento de achados culturais. Nesse aspecto,
nos apropriamos do pensamento de Canclini, quando argumenta que o adentramento
do popular nas novas tendências, através do conhecimento e utilização de
expressões culturais, através das revivências e tradições, serve, não apenas
para formar nações modernas, mas também para libertar os oprimidos e resolver
as lutas entre as classes. (CANCLINI, 2000, p. 209) O processo de construção da
identidade cultural, em linhas gerais, se estabelece, acima de tudo, pela busca
do reconhecimento. Trata-se de determinar um patrimônio comum e difundi-lo.
(FIGUEIREDO; NORONHA, 2005, p. 200) Assim, numa tentativa de apontar bases para
entender as manifestações culturais locais que buscam algo tradicional como
forma de movimentar o contemporâneo, podemos apontar através da fala de Rubim
(2003, p. 100), que demonstra a antiga predominância da cultura escrita tendo
começado a ser impactada pela cultura da era da imagem, em um trânsito
fundamental do antigo e do tradicional para uma dimensão simbólica instalada
culturalmente entre o moderno e o contemporâneo. Cangaço e sertão são
indissociáveis. O sertão desértico, magro, das secas e dos sofrimentos. Região
de uma gente de grande fé, índole pacífica, humana e piedosa. E também de um
povo orgulhoso, forte e temível diante de reveses e provocações. Muito embora
na concepção acadêmica de alguns Rubervânio Rubinho Lima Opará: Etnicidades,
Movimentos Sociais e Educação, Paulo Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez.
2014 Acesse: www.uneb.br/opara | ISSN 2317-9457 | 2317-9465 71 autores modernos,
o banditismo rural no Nordeste seja diagnosticado como uma regressão ao
primitivismo de uma subcultura ainda arcaica é incontestável que a injustiça
social, fruto da ausência de um estado de direito e de um sistema arbitrário
dominado pela lei do mais forte, coronéis e potentados da terra, concorreu para
o surgimento e proliferação da figura do cangaceiro. O médico e professor
Estácio de Lima costumava enfatizar que nenhum cangaceiro nasceu bandido ou com
vocação nata para o banditismo. Todos tiveram os seus impulsos e motivos.
Ilustra que Ângelo Roque, ao ter sua irmã desvirginada por um soldado de
polícia, procurou o juiz de direito da cidade e este o aconselhou que fizesse o
mesmo com uma moça da família do sedutor. No dia seguinte, um tiro de rifle transformou
o alegre rapaz no sombrio facínora Labareda† . O episódio evidencia o que
simboliza o cangaço, na sua mais rude definição. Atuavam no Nordeste os
cangaceiros profissionais, ou sejam os bandoleiros nômades que cruzavam os
sertões em todas as † Documentário Memória do Cangaço. Paulo Gil Soares, São
Paulo, 1965 direções, verdadeiras feras das caatingas; os cangaceiros
policiais, que acobertados pela legalidade, vestiam-se como os bandidos,
praticavam os mesmos delitos e eram impulsionados pelos mesmos sentimentos de
ódio e paixão e os cangaceiros de colarinho branco, representados pelos
coronéis e chefes políticos da época, como ainda hoje, os mais danosos: agiam
na surdina, se arvoravam em mandatários da justiça, articulavam crimes
monstruosos e sempre ficavam impunes. Ultimamente, alguns livros
contemporâneos, em caráter mais requintado, tentam desmistificar a tradicional
imagem de herói sertanejo de Lampião. É o caso de “Guerreiros do Sol: Violência
e Banditismo no Nordeste do Brasil” escrito pelo historiador Frederico
Pernambucano de Mello. O pesquisador defende a tese do “escudo ético”, que
mostra como o “rei do cangaço” e muitos outros cangaceiros utilizavam o
argumento da vingança para exercer a bandidagem. Aponta que o cangaço não
passava de um negócio. A O Cangaço na Bahia: A Incidência Histórica desse
Fenômeno em Paulo Afonso – Ba Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e
Educação, Paulo Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez. 2014 Acesse:
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decorrer dos tempos, foi sendo abandonada, dando lugar ao banditismo. Lampião e
seus cabras sempre manifestaram o gosto pela ostentação. Com a observação nas
várias fotos, tiradas principalmente pelo sírio-libanês Benjamin Abraão Botto, que
ousadamente percorreu os sertões em busca do cangaceiro mais temido, Virgolino
Lampião e conseguiu filmá-lo e fotografá-lo, juntamente com seus grupos, no seu
ambiente natural: a caatinga, podese perceber que essa manifestação de
guerrilha e hostilidade, reserva também muita beleza, arte, cultura e poesia.
Para tanto, pensou-se na apresentação do modo de vida dos cangaceiros e
cangaceiras que percorriam pelos sertões, numa vida nômade, repleta de fugas,
lutas contra a volante, que eram agrupamentos policiais que os perseguiam, mas
também com momentos de divertimentos diversos, como festas, poesia, música,
bailes, o que mostra que esse pedaço da história, muito além de só representar
o banditismo, também está submergido por cultura e pelas artes. Vestiam-se com
trajes cheios de ornamentos e adereços, nos quais sobressaiam as cores vivas,
chapéus imensos com enfeites de medalhas, muito ouro e prata em meio a variados
signos. O chefe marqueteiro também se preocupava com a sua imagem e
publicidade, deixando-se fotografar e filmar pelo libanês Benjamin Abrahão, o
que colaborou para que permanecesse na memória nacional e na construção de seu
próprio mito. Algumas fotografias causaram sensação, como as em que Lampião
aparece lendo livros ou revistas, em afagos com Maria Bonita e celebrando o
ofício religioso para a cabroeira ajoelhada, dançando, festejando, simulando
combates. Do filme original apreendido pelas autoridades, restaram apenas 15
minutos de fita. O pequeno documentário mostra cenas do cotidiano dos cangaceiros
em seu ambiente natural, mas acaba sendo um vídeo que aponta o divertimento dos
cangaceiros com o fato de estarem sendo filmados e fotografados. Fugindo das
paixões e dos clichês clássicos, com conteúdo mais refinado e acadêmico,
algumas Rubervânio Rubinho Lima Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e
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www.uneb.br/opara | ISSN 2317-9457 | 2317-9465 73 publicações recentes procuram
melhor reavaliar o real papel de Lampião e do cangaço. A historiadora francesa
Elise Jasmin, em sua obra iconográfica “Cangaceiros”, ilustra que Lampião e
seus bandoleiros, para uma parte do Brasil, encarnaram a violência de uma
sociedade arcaica e a face negativa da modernidade. Já para outra parte do sertão,
representaram valores como a bravura, o heroísmo e o senso de honra. O que não
se pode negar, qualquer que seja a proposição defendida, é que a violência dos
cangaceiros tinha ligação intrínseca com o meio inóspito, abandonado e injusto
em que viviam. Lampião, afora as atrocidades e a rede de clientelismo corrupto,
ao longo de um reinado de 20 anos, combateu as forças policiais conjuntas de
sete estados, derrotando-as em vários confrontos, intimidou coronéis, zombou de
autoridades e governantes e desafiou o próprio poder central do Brasil,
gerando, assim, o fascínio, o mito e a lenda do herói invencível, destemido e
ousado. O exótico cangaceiro criado por Lampião, com seu traje vistoso cheio de
adereços, códigos próprios, ares de imponência e liberdade, passou a exercer
forte identidade cultural no Nordeste, tanto no folclore, literatura popular,
poesia de cordel, canção de gesta, dança, música, além de outros segmentos
artísticos. O cangaço se transformou no gênero nacional do cinema e no épico
brasileiro por excelência. Hoje, Lampião e cangaço são sinônimos de turismo no
Nordeste. Nunca o seu nome e sua imagem estiveram em tanta evidência em eventos
festivos e culturais, roteiros turísticos, conferências e debates, novelas,
séries de TV, embalagens de produtos, decorações de cenários de lojas e
shoppings, etc. A cada ano, a sua vasta biografia é enriquecida com obras cada
vez mais requintadas que procuram trazer novas luzes e respostas para a sua
personalidade complexa e ambivalente. Como acontece anualmente, no dia 28 de
julho, na grota do Angico, celebra-se uma missa de ação de graças em memória de
Lampião. Por ironia, no local em que ele tombou com Maria Bonita e outros
companheiros, foi erguido um lúgubre marco de ferro pelo seu carrasco, o
Tenente João Bezerra. O Cangaço na Bahia: A Incidência Histórica desse Fenômeno
em Paulo Afonso – Ba Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação, Paulo
Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez. 2014 Acesse: www.uneb.br/opara | ISSN
2317-9457 | 2317-9465 74 Aquele mesmo oficial que consentiu ou mandou decepar a
sua cabeça, deixou o seu corpo insepulto para os urubus e rapinou o seu
espólio. Todavia, assim como outros personagens intrigantes da história, o
espectro do “rei do cangaço” permanece vagueando pelas caatingas e muito bem
vivo na mente do nordestino, especialmente do sertanejo. REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE JUNIOR, Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São
Paulo: Cortez, 1999. ARAÚJO, Antonio Amaury Corrêa de. Gente de Lampião: Dadá e
Corisco. São Paulo: Traço Editora. 2003. ARAÚJO, Antônio Amaury Corrêa de;
FERREIRA, Vera. De Virgolino a Lampião. Idéia Visual, São Paulo, 1999. BAUMAN,
Zygmunt. Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. BHABHA, Homi K. O local
da cultura. Trad. Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renata Gonçalves,
Myriam Ávila. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005 CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas
Híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução de Ana Regina
Lessa e Heloísa Pezza Cintrão. 3. ed. São Paulo: Edusp, 2000 CHANDLER, Billy
Jaynes. Lampião, o rei dos cangaceiros. Tradução de Sarita Linhares Barsted.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980. FIGUEIREDO, Eurídice; NORONHA, Jovita Maria
Gerheim. Identidade nacional e identidade cultural. In: FIGUEIREDO, Eurídice (org).
Juz de Fora: UFJF, 2005. HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações
culturais. Tradução; Adelaine La Guardia Resende... [et all]. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2003. ____. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução de
Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 10. ed. Rio de Janeiro: Editora
DP&A, 2005. JASMIN, Élise. Cangaceiros. São Paulo. Terceiro Nome, 2006.
LIMA, João de Souza. Lampião em Paulo Afonso. Edição do Autor. Paulo Afonso -
BA, 2003. Rubervânio Rubinho Lima Opará: Etnicidades, Movimentos Sociais e
Educação, Paulo Afonso, v. 2, n. 3, p. 61-75, jan./dez. 2014 Acesse:
www.uneb.br/opara | ISSN 2317-9457 | 2317-9465
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