Padre
Cícero Romão Batista:
um intelectual orgânico?
Por Joarez Virgolino Aires
Em tese de
doutorado, o Prof. Luitgade Olveira, em seu livro A Terra da Mãe de Deus, pela
Editora Francisco Alves, identifica o movimento dos beatos e conselheiros do
Brasil, a partir da matriz ideológica do padre Mestre Ibiapina. Aplicando a
teoria de Antônio Gramsci, entende que estes líderes religiosos plasmaram e
influenciaram um grupo social e, por isto, mesmo que analfabetos, entram na
categoria de intelectuais orgânicos.
Depois de São
Francisco de Sales, Padre Mestre Ibiapina foi o grande modelo na vida do padre
Cícero como de todos os conselheiros e beatos da época.
Enquanto não
recebe uma paróquia, o Padre Cícero colabora como professor de Latim no Colégio Venerável Ibiapina, fundado e dirigido por José Marrocos e celebra nas capelas
da região.
Infância do
Padre Cícero
Os biógrafos
do Padre Cícero são unânimes em retratá-lo, nessa fase, como uma criança e um
adolescente já tocados pelo fervor religioso do mundo sertanejo de sua época. O
ambiente familiar de profundo respeito ao Padre Ibiapina, a leitura da vida de
santos, a assiduidade à Igreja, a vivência das missões, formam o clima de
religiosidade de sua vida. Mas, principalmente a leitura da vida de São
Francisco de Sales determinará, como ele próprio deixará escrito em testamento,
sua decisão de se dedicar ao sacerdócio.
Mais velho do
que Cícero e acossado pelas desditas centenárias de sua família, vagueia pelo
Cariri Antônio Vicente Mendes Maciel. Enquanto Cícero, jovem, aspira ao
sacerdócio tendo Ibiapina por modelo, Antônio Vicente veste o hábito dos
beatos, põe a cruz às costas e parte para sua missão na terra.
Após a morte
do pai, Cícero fica ameaçado de não poder continuar os estudos. Em socorro de
seu ideal vem o padrinho, o rico comerciante Antonio Luiz Alves Pequeno, que se oferece para financiar os estudos do afilhado até sua ordenação.
Próximo à
ordenação, o reitor do Seminário levanta dúvida sobre a conveniência de sua
ordenação, alegando sua ausência do confessionário por um espaço muito longo de
tempo.
Cícero Romão,
ordenado Padre
Em 1870,
quando Cícero se torna padre, já Ibiapina está afastado do Ceará, onde a
presença da autoridade eclesiástica tolhera-lhe todos os passos. Em 1872 D.
Luiz parece ter-se apossado de todo o rebanho submetido a sua autoridade, com a
despedida definitiva de Ibiapina das Terras do Cariri.
Em janeiro de
1871, ordenado aos 26 anos, chega ao Crato o Padre Cícero Romão Baptista.
Desfruta da amizade, da confiança e da consideração do Bispo D. Luiz que, em
29 de dezembro já lhe concedera licença para pregar e celebrar, pelo prazo de
1 ano. Enquanto não recebe uma paróquia, o Padre Cícero colabora como professor
de Latim no Colégio Venerável Ibiapina, fundado e dirigido por José Marrocos e
celebra nas capelas da região.
Os
historiadores do Juazeiro descrevem o povoado constituído de pequenas casas em
torno do pátio da capela e ao longo da margem do rio Salgadinho. Os habitantes não primavam pela repetição em suas práxis de vida, dos ensinamentos dos
capelães. Cultivavam os hábitos de samba e cachaçada nas horas de lazer e
viviam em promiscuidade. Juazeiro era mais uma pousada para os viandantes que
se dirigiam de Barbalha, Milagres e outras paragens, para o Crato. Os
comboieiros se dessedentam à sombra dos frondosos juazeiros. Mas o povoado já
tinha escola e era aí que o Padre Cícero pernoitava quando vinha aos domingos
celebrar missa, função que desempenhou a partir daquela noite de Natal, a
pedido do professor Simeão Macedo e os fazendeiros da vizinhança que, embora
residindo em suas fazendas, tinham casas construídas no arruado. Poucas eram as
famílias de posses que residiam na rua.
Padre Cícero
não era um bronco. O acervo de conhecimentos do Padre Cícero entusiasmou o
botânico alemão Philipp V que, a serviço da Inspetoria Federal de Obras Contra
as Secas – do Ministério da Viação e Obras Públicas, passou no Juazeiro em
1921.
De sua viagem
publicou o livro “Estudo Botânico do Nordeste”, publicação daquele Ministério,
em 1923. Na página 59 deste livro, se lê: “Naturalmente, para mim, se tornou de
capital importância conhecer e falar com o Padre Cícero e tive o prazer de, à
minha chegada, ser recebido e ter animada palestra com o mesmo. Este velho, de
real prestígio popular, deixou-me gratas recordações. Tratou-me com delicadeza
e amabilidade. De facto, trata-se de um homem que dispõe de instrução e saber
invulgares: aborda com egual facilidade a política e a história brasileira; tem
conhecimentos profundos de história universal, ciência naturaes, especialmente
quanto à agricultura. (…)
Episódio
prodigioso. Padre Bulhões, questionado um dia por uma paroquiana por que não
falava do púlpito condenando o Padre Cícero, respondeu: “Comadre, eu não sei
quem é o Padre Cícero! Não conheço os desígnios de Deus para esse sacerdote.
Além do mais, não sabendo de nenhum crime desse homem, prefiro não duvidar dos
poderes de Deus.” E contou a história de um padre seu amigo, vigário numa
cidade da beira do S. Francisco, centenas de léguas distante do Juazeiro. Esse
padre acorda um dia com o sino da igreja chamando para a missa. Como ainda
estava escuro, pensou que o sacristão se enganara no horário e correu a
adverti-lo. Chegando lá, encontra a igreja iluminada, cheia de gente, e um
padre de costas celebrando a missa. Espantado com o fato, ele se aproxima do
altar para ajudar o padre que estava sem sacristão. E constata, cheio de
assombro, ser o Padre Cícero. Este ainda era vivo, muito velhinho, no Juazeiro.
Terminada a missa onde comungaram muitas pessoas, todas desconhecidas do
vigário, este se dirige ao Padre Cícero: Como o Sr. está aqui, suspenso de
ordem, tão distante do Juazeiro, quando chegou? O Padre Cícero lhe sorri
respondendo: Meu amiguinho, você dorme demais!
Fala isto e
desaparece da vista do vigário, juntamente com todos os assistentes da missa.
A igreja fica às escuras e o vigário tomado de terror tenta fugir aos gritos.
Na carreira cai e fratura uma perna ficando ali, até à hora em que o sacristão
o encontra deitado, sem coragem de se mover. Esse padre, que ficou defeituoso
da perna, relatou pessoalmente o caso ao Padre Bulhões, quando este o foi
visitar. Concluindo, afirmava Padre Bulhões: “Compreendeu, comadre? Era o Padre
Cícero, em espírito, celebrando missa para as almas do purgatório, fora do
Juazeiro!”
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