Por Maria Thereza
e Aristides Camargo
Cel. Izaias
Arruda
O Cariri, região sul do Estado do Ceará, celeiro de coronéis do
sertão, aqueles que fizeram história na região, nas décadas de 1920 e
1930. Rota de saída de produtos do Ceará e de estados vizinhos, Cariri era,
também, porta de entrada e saída dos bandoleiros, liderados por Lampião e
considerada a menor distância entre os sertões do Pajeu e do Cariri. Esse
espaço geográfico foi local de acontecimentos que movimentaram a
sociedade política nordestina, diante da manutenção do oligopólio dos
“coronéis”, envolvendo em suas estratégias logísticas, a obtenção de
sucesso em suas intensões (Correio de Aracajú de 23 de maio de
1930). Coronel Isaias Arruda, filho da cidade de Aurora e dono de
Ipueiras, foi o coronel que se destacou no episódio de Mossoró.
A cidade de Aurora é uma dessas portas de entrada e saída dentro do estado do
Ceará, terra de padre Cícero, conselheiro dos muitos que fizeram a história do
Nordeste ser polêmica, tanto, devido à ousadia dos coronéis como dos
cangaceiros. Cariri, onde a base da alimentação é o xerém e carne de bode
e para adoçar café usam rapadura, pois o açúcar branco é só para
“mainha”. Onde, seis chuvas por ano, já se chama inverno e onde, para
todos os efeitos, o rifle substituía a lei, nos tempos de cangaço. Cariri,
por onde Lampião, o rei do cangaço, e seu bando, se embrenhavam, deixando ali,
as maras de sua passagem, teria dito, quando entrevistado pelo Sr. Alves
Feitosa, ao pé da serra do Araripe: “Não sou cangaceiro por maldade minha, mas
pela maldade dos outros” (O Povo, de 4 de junho de 1928).
Região do
Cariri cearense, sul do estado do Ceará
A caatinga de Ipueiras, como as outras tantas, pelo nordeste a fora, sem
dúvida, imagina-se ter sido partilhada por toda sorte de sertanejo que, desde
tempos passados, ali procuraram viver, sobretudo, os cangaceiros em sua vida
errante, ora fugindo de seus perseguidores, ora buscando abrigo seguro.
Mas, a caatinga do tempo do cangaço, nos anos 20 e 30, do século XX,
deixou para a história, tristes lembranças, por exemplo, quando da execução de
certos planos para o extermínio dos grupos de cangaceiros, os alvos eram os
coiteiros, aqueles que escondiam os bandos, irritando os poderosos coronéis e
políticos daquele começo do século XX.
(...) Aqueles que não colaboravam com a polícia eram eliminados
sumariamente. O efeito foi devastador: inocentes foram enterrados na
caatinga, outros passaram anos presos sem processo e alguns ingressaram nas
volantes, com medo da represália policial. (...) Naqueles anos 20 e 30 o
povo se encontrava dividido. Quem morava na cidade, temia e odiava os
cangaceiros. Os camponeses ou vaqueiros moradores de vilarejos ou de casas
isoladas na caatinga, que dependiam de suas roças para sobreviver, admiravam a
coragem dos cangaceiros. Eles apontavam os melhores esconderijos e
despistavam as volantes (...) (Diário de Pernambuco, 7/7/1997, p.4 e 7,
respectivamente)
Local onde era
a sede da fazenda Ipueira em Aurora
A catinga de Ipueiras, outrora turbulenta, com seu chão poeirento e pedregoso,
parece estar ali, numa linguagem muda, mostrando ao sertanejo a arte da
sobrevivência. Convivendo com os prolongados períodos de seca, esta
caatinga e as outras que se espalham pelo nordeste, faz com que parte de sua
vegetação perca as folhas, transformando-se numa floresta esbranquiçada.
Esta, todavia, uma das extraordinárias estratégias da natureza a fim de manter
a caatinga sempre viva, visto que o cair das folhas, logo no início do período
de seca, significa menos perdas hídricas, armazenando água em diferentes partes
da planta, até a chegada das chuvas hibernais. E, ainda, favorecidas pelo
clima, as folhas que caem passam por um processo de fenação, tornando-se
alimento para os animais (Rizzini & Mors, 1976).
Outra surpreendente estratégia de sobrevivência dos vegetais nas caatingas está
em sua extraordinária capacidade de adaptação ao meio ambiente, ao desenvolver
compostos químicos com a função de estabelecer condições para a continuidade
das espécies dentro do ecossistema. São os meios de proteger as plantas
das radiações solares e de predadores, desenvolvendo recursos mecânicos de
defesa, como espinhos e acúleos, assim como viscosidade em folhas repelindo insetos
predadores e, sobretudo, criando atrativos para os polinizadores, a partir de
substâncias com odor, representadas pelos óleos essenciais voláteis e
substâncias com cor em flores, frutos ou outras partes das plantas,
desenvolvendo, ainda, os flavonoides de múltiplas atividades farmacológicas –
anti-inflamatórias, anti-infecciosas, antissépticas, antioxidantes,
antipiréticas, cicatrizante, antinociceptivo, muitas vezes concentradas numa
mesma planta, comumente em casas. Enfim, substâncias essenciais para o
homem que vive ali, fornecendo-lhes alimentos, sobretudo, em frutos e
tubérculos, além de remédios para diferentes males. Plantas que já nos
idos de 1910, já foram tratadas pelo botânico cearense, Francisco Dias da
Rocha, cujos dados bibliográficos encontram-se no final.
Vegetação
típica da Caatinga
Com a chegada
das chuvas, como num processo mágico, todo aquele emaranhado da galharia,
aparentemente seca, transforma-se num manto verde matizado por uma cobertura
florística multicolorida, cumprindo seu papel de atrair os polinizadores para a
tarefa da reprodução das espécies nativas, não permitindo que a caatinga
pereça. (Braga, 1976; Salatino, 2012; Carvalho et al, 2001)
Em meio àquele ambiente de caatinga, hoje transparecendo tranquilo, bem
diferente daqueles agitados anos vinte do século passado, quando, ali
fervilharam tramas dantescas, envolvendo coronéis, coiteiros, volantes,
jagunços e cangaceiros. Gente brava!
Hoje, Ipueiras, parece viver “clima ameno” entre aqueles que ali vivem.Durante
nossa peregrinação pelos sítios históricos do período do cangaço, durante o
Cariri Cangaço 4, ao nos determos, logo à entrada do caminho que nos levaria à
sede da antiga fazenda Ipueiras, estava, ali, postada, à frente de sua casa,
uma senhora, parecendo nos aguardar. O seu semblante sereno e ligeiro sorriso
nos lábios, ali, em plena caatinga sob um sol ardente, foram suficientes para
nos determos, a ponto de não prosseguirmos na caminhada e, então, ficarmos a
conversar com ela, seu marido e filho, este, aparentemente com algum distúrbio
mental, se não nos enganamos.Junto à entrada de sua habitação, um casebre de
pau-a-pique, já bastante desgastado pelo tempo, com dois cômodos e o mínimo de
pertences em seu interior, nos fez, logo, perceber a extrema pobreza em que
vive aquela família.
Maria Thereza
e Mario Camargo em uma das visitas Cariri Cangaço 2014.
Mas, sempre
com aquele semblante sereno e sorriso nos lábios, ia a senhora trocando conosco
um descontraído diálogo, nos contando como era a vida vivida naquele canto do
mundo. Perguntada como resolvia os problemas de saúde, morando distante
da cidade, contou-nos sobre as plantas medicinais que tinha por perto e com as
quais, preparava os remédios, destacando o poder das rezas reforçando o poder
de cura.
Afinal, a senhora é uma benzedeira. Com uma singeleza ímpar, falou-nos
sobre o poder da fé, fato que nos encantou. Benzeu-nos, é claro. Falou-nos
sobre os remédios que obtém à sua volta, citando as cascas de árvores que são
remédio, destacando o juazeiro, ao dizer tratar de árvore sagrada, visto ter
sido esta árvore sob a qual Padre Cícero descansou, quando saiu do Crato, em
direção a Juazeiro.
Sobre o que nos disse respeito ao poder da fé, logo mais tarde, encontramos
testemunhas, quando, ao entardecer, em Aurora, enquanto passeávamos pela
cidade, em dado momento, nos deparamos com uma estátua de padre Cícero, bem ao
centro de uma praça. Já era noitinha, quando circulavam por ali moradores
da cidade, os quais se detinham diante da imagem, a fim de, acendendo velas aos
seus pés, lhe rendendo homenagens. Era dia 20 de setembro, aniversário da
morte daquele que representava a salvação das aflições daquele povo cheio de
fé. Dia de luto, quando as pessoas mais velhas se vestem de preto, como
contou-nos uma moradora da cidade. Não tardou para que, logo, as inúmeras
velas acesas, iluminassem a silhueta daquele que o povo elegeu como seu santo
protetor, proporcionando-nos uma visão mágica, naquela noite, em Aurora.
Continua..
Maria Thereza Camargo, Etnofarmacobotânica, especialista em plantas
medicinais na medicina popular no Brasil.
Aristides Camargo, Arquivista, especialista em patrimônio cultural
brasileiro.
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