Por Aleilton
Fonseca
As prédicas
nos manuscritos de Antônio Conselheiro
As prédicas e
discursos de Antônio Conselheiro constam de um caderno manuscrito que foi
encontrado em Canudos, após o fim da luta, por João de Sousa Pondé, médico que
participou da campanha como cirurgião da última e vencedora expedição militar.
Segundo constatou Ataliba Nogueira, a obra manuscrita é autêntica e do próprio
punho de Antônio Conselheiro (8). Os manuscritos foram doados por João de
Sousa Pondé ao escritor baiano Afrânio Peixoto que, por sua vez, passou-os a
Euclides da Cunha, quando Os sertões já estavam publicados. Euclides
morreu poucos meses depois e não se sabe se teve tempo de folhear os
manuscritos do Conselheiro.
Publicados por
Ataliba Nogueira, em 1974, portanto, cerca de 72 anos após o lançamento
de Os sertões, os manuscritos do líder religioso trouxeram para os
estudiosos o dever e a oportunidade de confrontá-los com a apreciação dos
escritos de Euclides da Cunha. Como descreve Ataliba Nogueira, a obra
manuscrita consta de 628 páginas, numeradas e sem margem, contendo 14 linhas
cada. Escrita em tinta preta, caligrafia boa e regular. O seu formato é de 10 x
14 cm (9).
O manuscrito
divide-se em quatro partes. Na primeira, constam "Os mistérios de
Maria", em número de 29, cada qual sendo motivo para uma prédica. Na
segunda parte, constam os "Dez Mandamentos da Lei de Deus", na forma
de comentários e pregações da doutrina. A terceira parte traz textos
selecionados dos evangelhos bíblicos, dos apóstolos do Novo Testamento, em que
os trechos citados são rigorosamente identificados, com a indicação do
apóstolo, do capítulo bíblico e do número do versículo. A quarta parte consta
de assuntos esparsos, em que estão desenvolvidas idéias de Antônio Conselheiro
acerca de símbolos, ritos e sacramentos católicos (cruz, missa, confissão,
feitos de Jesus) e, ao lado disso, seus discursos sobre seu trabalho de
edificador de igrejas e sobre a República.
A leitura dos
textos de Antônio Conselheiro traz ao leitor de Euclides da Cunha uma surpresa
instigadora. Os textos têm um nível considerável de organização, com uma
distribuição e uma seqüência lógica dos assuntos. São gramaticalmente bem
estruturados e o seu conteúdo religioso, longe de qualquer aberração, é
equilibrado e bastante próximo do texto bíblico. Sua aplicação como fundamento
para prédicas e discursos situa-se de maneira clara na observância dos valores
católicos tradicionais. É certo que em alguns fundamentos a pregação de
Conselheiro encontra-se desatualizada em relação aos cânones oficiais. Um
exemplo disso é a idéia do direito divino dos reis, raiz de sua discordância em
relação ao regime republicano, que a Igreja oficial já abolira. Mas, quanto ao
conteúdo dos ensinamentos e da moral religiosa, observa-se que não há motivo
para considerá-los "misticismo doentio", ou resultado de
"loucura coletiva". Trata-se, na verdade, de uma prática religiosa
alternativa e popular que, diante das condições socioculturais e políticas do
espaço sertanejo e do embate provocado pela intervenção militar, acabou
ganhando um relevo histórico especial.
Com efeito, os discursos que expressam os traços da personalidade e a natureza da liderança do Conselheiro ajudam a esclarecer melhor o seu perfil, em contraposição aos traços negativos estampados em Os sertões. O discurso "Sobre o recebimento da chave da Igreja de Santo Antônio" (10), padroeiro de Belo Monte, revela um líder religioso humilde, sem fanatismo, com um texto estruturado que esclarece posições e idéias de forma clara e inteligível. Nesse discurso, o beato agradece a todos que "concorreram com as suas esmolas e com os seus braços" para a edificação da igreja, prometendo-lhes a recompensa do Bom Jesus. Em seguida, explana sobre o surgimento do catolicismo, sobre o sacrifício de Cristo para a remissão do pecado original e a importância da obediência aos "Mandamentos da Lei de Deus". Posteriormente, faz observações restritivas ao Judaísmo por continuar reverenciando Moisés e não aceitar os princípios da religião cristã. Ao lado disso, critica aqueles que, no seu entendimento, "se movem pela incredulidade", "espalhando doutrinas falsas e errôneas aos ignorantes". Como exemplo, cita judeus, maçons, protestantes e republicanos, acusando os últimos de perseguir a religião do Bom Jesus. Em função disso, reafirma a importância da igreja como forma de congregação:
Portanto a
Igreja é a congregação dos fiéis que, por dever indeclinável, devem
curvar-se reverentemente diante de Deus, rendendo-lhe as devidas adorações,
invocando o seu nome com amorosa confiança, tendo por certo que Deus
lhes será propício.
Enfim, o beato
termina o seu discurso contando a parábola do semeador, a propósito do trabalho
de evangelização e seus diferentes graus de recepção. Observa-se, enfim, no
texto, que fica clara a compreensão do Conselheiro acerca do catolicismo, suas
origens e fundamentos bíblicos. Observa-se também que as citações bíblicas são
pertinentes e lógicas, sendo encaixadas de forma aceitável no discurso, com um
tom persuasivo e evangelizador.
No discurso
"Sobre a República" (11), estão expostas as idéias de Antônio
Conselheiro em que se pode observar um conteúdo mais político, embora sempre
determinado pela religião. A premissa fundamental do texto é a de que a
República deseja acabar com a religião e por isso é nociva ao povo sertanejo. A
República é criticada como "assunto que tem sido o assombro e o abalo dos
fiéis". Vista como grande mal para o Brasil, sua implantação é debitada à
"incredulidade do homem". Na ótica do Conselheiro, a deposição do
monarca contrariava a vontade divina, pois: "Todo poder legítimo é
emanação da Onipotência eterna de Deus". Assim, afirma:
É evidente que
a república permanece sobre um princípio falso e dele não se pode tirar
conseqüência legítima: sustentar o contrário seria absurdo, espantoso e singularíssimo;
porque, ainda que ela trouxesse o bem para o país, por si é má, porque vai de
encontro à vontade de Deus, com manifesta ofensa de sua divina lei. (12)
Tratava-se,
portanto, de uma questão de princípio sustentada por um dogma religioso que
fundamentava sua posição contrária ao regime republicano. Em função disso, ele
acredita que a República, o novo regime, não triunfará por ser "filha da
incredulidade", defende o direito da família real que considera
"legitimamente constituída para governar o Brasil", critica a
instituição do casamento civil pelos republicanos, comenta aspectos do regime
escravocrata e exalta a abolição como um feito da Princesa Isabel em obediência
à determinação divina (13). O beato conclui pedindo desculpas aos ouvintes
por proferir "palavras excessivamente rígidas, combatendo a maldita
república":
Sim, o desejo
que tenho da vossa salvação (que fala mais alto do que tudo quanto eu pudesse
aqui deduzir) me forçou a proceder daquela maneira. Se porém se acham
ressentidos de mim, peço-vos que me perdoeis pelo amor de Deus. (14)
Em seguida,
despede-se manifestando o desejo de que os ouvintes correspondam "com
aquela conversão sincera", ou seja, com a adesão à causa religiosa e
colocando-se contra a ordem republicana. Observa-se, desse modo, que as razões
do pregador eram puramente religiosas. Para ele, combater a República era
defender a religião. Sem dúvida, sua compreensão do processo histórico é
limitada e politicamente equivocada, porquanto somente o analisa do ponto de
vista de sua crença religiosa. Contudo, conservador a seu modo, o discurso
conselheirista tem uma argumentação explicativa e persuasiva, sem nenhum traço
ou tom impositivo. Trata-se de um discurso embasado em idéias passíveis de
discordância, de rejeição e de crítica. No entanto, é forçoso reconhecer a sua
boa estruturação gramatical e a seqüência lógica de sua cadeia argumentativa,
como texto organizado por uma mente sadia. As prédicas e os discursos, longe de
denunciarem-no como "heresiarca", "insano" ou "fanático",
acabam apresentando-o como líder religioso humilde, sóbrio e consciente da
importância congregadora da religião para os sertanejos.
CONTINUA...
Enviado pelo
escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com