por Salomão L. Ginsburg
Depois de uma discussão que havia se alongado por três anos, através da
imprensa diária, com as forças organizadas do sacerdócio católico em
Pernambuco; depois que todos os esforços haviam sido feitos para expulsar-me do
Brasil, especialmente do campo de Pernambuco, onde o Senhor nos abençoava, um
monge reacionário italiano, chamado Celestino, resolveu eliminar-me por
assassinato.
No norte do estado de Pernambuco havia um bando de cangaceiros à solta, cometendo todo tipo de atrocidades. Seu chefe era um dos homens mais destemidos que já apareceu no Brasil: seu nome, Antônio Silvino. Um grande número de crimes era atribuído a esse bando, e o governo havia oferecido a soma de US$10.000 – 40.000 mil réis – pela sua captura, vivo ou morto. Era muito difícil, no entanto, capturar esse homem. Ele tinha o desconcertante dom de atirar e acertar em cheio, normalmente matando aquele que havia ousado atacá-lo. Ele era também generoso com os pobres e dividia com eles grande parte do espólio que tirava dos ricos ou até mesmo do governo.
A primeira coisa que me passou pela cabeça é que ele devia estar caçando.
Foi a esse homem que o monge italiano recorreu. Ele apelou para a sua credulidade e superstição, e obteve de Silvino o consentimento de me matar pela soma de 250 mil réis (cerca de duzentos e cinqüenta dólares). Eles descobriram o dia exato em que eu deveria chegar ao vilarejo de Moganga e deixaram o homem preparado para me atacar de surpresa.
Deixei a cidade de Nazaré cerca de duas da manhã. Eu levava um companheiro comigo, o irmão Amaro, um convertido nativo que foi como meu guia. Perto das cinco da manhã vi um homem baixo e franzino, mas de aparência rija, em pé num campo próximo à estrada pela qual eu tinha de passar. Em suas mãos ele trazia uma espingarda de cano duplo, e uma longa faixa de cartuchos atravessava o seu peito. A primeira coisa que me passou pela cabeça é que ele devia estar caçando e, como é meu costume, parei o cavalo e cumprimentei o homem, desejando um bom dia e perguntando se ele havia saído para caçar. Ele não se dignou a responder, então perguntei se já tinha pegado alguma coisa naquela manhã, mas ele permaneceu calado. Assim, dando com as esporas no meu cavalo, eu estava prestes a seguir meu companheiro, que já havia seguido adiante, quando um negro pulou de uma árvore bem diante do meu cavalo, e tive que me esforçar para manter o controle das rédeas. O homem atrás de mim gritou-lhe alguma coisa que não pude compreender, mas ficou claro que o negro sim, porque saltou de imediato para fora do caminho e deixou-me prosseguir a viagem.
Logo em seguida passei por outro vilarejo, chamado Sapé, e ali encontrei Cocada, um encorpado homem branco cuja face pintada de vermelho o denunciava como membro daquele célebre bando de foras-da-lei. Esse sujeito estava sentado no chão recebendo presentes ou ofertas que lhe traziam os habitantes do lugar. Ele nem mesmo olhou para ver quem estava passando. Às oito cheguei ao vilarejo de Moganga, onde deveria passar o dia, pregando e ensinando.
Tão logo
cheguei, no entanto, pude ver a surpresa estampada no cada rosto de cada um que
encontrava. O líder político do lugar, em cuja casa eu deveria ficar durante
minha estada na cidade, recebeu-me com alegria incontida e abraçou-me
repetidamente enquanto perguntava o tempo todo: “O senhor viu o Antônio
Silvino?” Respondi que não conhecia esse homem pessoalmente, por isso não podia
dizer com certeza se havia me encontrado com ele ou não. Falei, no entanto,
sobre os que havia encontrado no caminho, e ele informou-me que o primeiro,
segurando a espingarda de cano duplo, era a pessoa em questão.
O líder político contou em seguida que tinha sido informado que esse mercenário havia recebido dinheiro para providenciar que eu fosse removido da terra dos vivos. Tão logo havia ganho conhecimento disso ele havia estado tentando entrar em contato comigo, mas como eu já havia deixado o lugar onde eles haviam esperado me encontrar, o homem havia chegado ao ponto em que não soubera mais o fazer, a não ser entregar nas mãos da Providência, como ele mesmo colocou (o homem não era crente).
Vieram lhe dizer, para sua consternação, que era Antônio Silvino e queria falar com o Sr. Salomão.
Tive um dia muito atarefado. Regozijando-me por ter escapado das mãos do mercenário, passei um dia glorioso entre os crentes. Nossa reunião pública começou às 7 da noite e durou até quase meia-noite. Tivemos cântico de hinos, pregação, oração e testemunho, bem como a aceitação de candidatos a batismo. Cansado e quase exaurido, porque não tinha dormido na noite anterior, pedi ao irmão nativo que tocasse a reunião e fui para um quartinho que ficava logo atrás da sala da frente da casa do líder político . Eu estava pronto para espalhar-me na minha rede quando ouviu-se uma batida na porta da frente. A exigência era que a porta fosse aberta imediatamente. O dono da casa foi ver quem estava perturbando a hora da meia-noite quando vieram lhe dizer, para sua consternação, que era Antônio Silvino e queria falar com o Sr. Salomão.
Você pode imaginar como meu coração reagiu quando percebi que aqueles eram provavelmente meus últimos momentos. Eu havia me congratulado por ter escapado do bandido e agora aqui estava ele, na própria casa do líder político e defronte a onde ficava a delegacia de polícia. Caí de joelhos pedindo ao Senhor apenas uma coisa, a força necessária para dar um bom testemunho. O Senhor me deu o dom de não temer coisa alguma ou quem quer que seja, mas deu-me também um espírito muito sensível. Não suporto ver sangue, e toda minha coragem se esvai quando vejo alguém sofrendo. A única coisa de que eu tinha medo era demonstrar medo caso ele resolvesse me torturar, e era para isso que estava pedindo forças. Louvado seja o seu nome, ele não falhou comigo.
“Sabe porque vim até aqui?”
“Sei. Pagaram ao senhor para me matar.”
Tão logo ele sentou vieram me chamar, e eu disse a eles que iria num momento. Entrando na sala da frente, um aposento grande e espaçoso, vi o cangaceiro sentado no sofá, a cabeça baixa. O líder político estava pálido e tremendo, enquanto sua esposa e sua filha, duas mulheres esguias, apertavam nervosamente as mãos e choravam como se seus corações fossem se despedaçar.
Caminhando até o homem, senti meu coração fortalecido e disse:
– O senhor
desejava me ver; o que posso fazer pelo senhor?
– O senhor sabe quem eu sou? – ele perguntou depois de um intervalo.
– Sim, é o capitão Antônio Silvino – respondi.
– Sabe porque vim até aqui? – ele perguntou.
– Sei. Pagaram ao senhor para me matar.
– É verdade – respondeu ele.
Ali em pé diante do cangaceiro levantei mais uma oração silenciosa a meu pai do céu, pedindo que me ajudasse e tomasse conta de minha esposa e filhos. Alguns momentos se passaram sem que o homem fizesse qualquer movimento.
– Então – eu disse, – porque você não faz de uma vez o que veio fazer?
Ele, no entanto, não se moveu. Depois de alguns momentos de silêncio percebi que ele estava chorando, lágrimas escorrendo pela sua face.
– Não – ele disse, finalmente. – Não vou matar o senhor. Eu queria mesmo é matar a pessoa que me pediu pra lhe matar. Não vou matar um homem como o senhor. Hoje de manhã enquanto eu lhe esperava perto da vila de Sapé, o senhor parou o seu cavalo e falou comigo de um jeito tão gentil e bondoso que fui pego de supresa. Tinham me dito que o senhor era um sujeito perigoso, que suas doutrinas e ensinamentos eram uma maldição para o povo e para o país, e que matar o senhor seria uma benção pra muita gente. Mas o senhor falou comigo com tanta bondade que decidi descobrir mais sobre o senhor. Eu estava presente enquanto o senhor pregava e ensinava e rezava e cantava e posso lhe dizer que não vou matar de jeito nenhum um homem que está fazendo uma obra tão caridosa.
“Não vou matar um homem como o senhor.”
Passamos aquela noite juntos e ele me contou a história da sua vida, uma das mais tristes que já tive oportunidade de ouvir. Ele não era um criminoso comum. Nascido numa família muito rica e omartocática, Antônio Silvino era ele mesmo dono de uma grande e valiosa extensão de terra na Paraíba. Mas, por causa de querelas políticas, seu pai, irmãos, tios e primos haviam sido exterminados. Para escapar ao mesmo destino, ele havia decidido tornar-se cangaceiro e destruir não apenas seus inimigos políticos mas todos que ousassem se colocar no seu caminho. Até aquela ocasião ele havia assassinado sessenta e seis pessoas.
Conversamos e oramos juntos até o amanhecer. Depois desse encontro aquele cangaceiro tornou-se um ardente defensor da nossa causa naquela região. Ele não permitia qualquer perseguição contra o evangelho e contra os pregadores. Não tenho dúvidas que minha vida foi salva inúmeras vezes da destruição nas mãos de cangaceiros por causa das ordens estritas recebidas desse homem.
Algum tempo depois fui ao Tenente-Governador e ofereci-me para tirar esse cangaceiro do estado e dar a ele uma chance de regeneração, com a condição de que nem ele nem eu fossemos molestados. Sua excelência, embora um grande admirador do trabalho que estávamos fazendo, não via como conceder o que eu estava pedindo.
Logo depois
que deixei Pernambuco, Antônio Silvino foi capturado. Ele foi trazido ferido
para a capital do estado, onde foi julgado e condenado ao cárcere. Na prisão o
seu prazer era ler a Bíblia e contar às pessoas que iam visitá-lo, bem como aos
seus companheiros de prisão, o que o Senhor havia feito por ele. Silvino era
encontrado constantemente orando e com a Bíblia nas mãos. O editor de certo
jornal vespertino foi visitá-lo e voltou devidamente enojado:
“Tudo que se
consegue arrancar de Antônio Silvino”, escreveu ele, “é sobre os batistas e a
Bíblia”.
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