Material do
acervo do pesquisador Antonio Corrêa Sobrinho
FORNECENDO A PISTA DEFINITIVA
- Aí eu perguntei: “Os cangaceiros estão por aqui?” Ele,
antes de proferir qualquer frase, olhou para o irmão, que o encorajou: “Diga
tudo, meu irmão, senão nós vamos se acabar!” Ele virou-se, então, para mim e se
abriu: “Estão, sim, seu tenente. Os cangaceiros estão lá”. E eu: “Como é que
você sabe que estão lá?” E ele, rápido: “Porque eu estive lá, na boquinha da
noite, para ver uma máquina de costura que o capitão (Lampião) me prometeu, mas
dona Maria (Maria Bonita) estava cosendo e ele me disse que eu fosse buscá-la
bem cedinho, devendo eu, então, procurá-la no pé da pedra, debaixo das
macambiras, onde ele, se não estivesse mais lá, deixaria o aparelho escondido”.
Sorri: “Então vamos ver logo, senão você perde a sua máquina”. E o cabra,
tremendo: “Ave Maria! Nesse caso, eu preferia perder!” Fiquei, por motivos
óbvios, com esse coiteiro, entregando seu irmão ao aspirante. Sentenciei, logo
depois: “A camisa é branca; se correr, é um bom alvo”.
PREPARANDO A TROPA PARA O COMBATE
Perguntamos ao coronel João Bezerra qual era o seu estado de
espírito, naquele momento. Ele nos olha de lado: “Nenhum nervosismo. Eu tinha a
tranquilidade de quem vai para um batizado de cabra que acaba de nascer”.
Reintegra-se na história:
- Voltamos para junto da tropa: clareando-os com uma pilha
elétrica, acordei os praças que já dormiam: “Vamos embora”. Subimos a margem do
São Francisco, num lugar muito íngreme, pelo lado, justamente, em que não esperavam
a tropa, pois me julgavam já em Moxotó. Na chegada, esperei todo o contingente,
que vinha em coluna por um, e, após reuni-lo, em círculo, 3h30m da madrugada,
dei-lhes ciência de que, se Deus ajudasse, dentro de mais trinta minutos, se
decidiria a parada entre a força e os cangaceiros. Grande parte dos presentes
respondeu, de uma só vez: “Já andamos desesperançados de brigar; essas pestes
são encantadas”. E num segundo tempo: “E porventura qual é o grupo a que o
senhor se refere?” E eu, lacônico: “O de Lampião”. Ao que eles se admiraram: “É
o cego?” Confirmei: “Ele mesmo”.
EM MARCHA RASTEJANTE
- O coronel João Bezerra poderia mencionar o número de homens
que tinha a seu dispor, naquela noite? – indagamos.
- Eu tinha 45 homens.
E adivinhando o nosso quesito seguinte:
- Lampião tinha 48 homens. A minha tropa, eu a dividi em
quatro grupos: três de 10 homens e um de 15, sendo este o meu, pois dele
partiria o ataque. Assim foi que ao grupo capitaneado por Ferreira de Melo eu
ordenei que seguisse com o coiteiro Pedro de Cândida, que conhecia toda a
disposição do adversário, e rumasse em direção ao riacho, onde se achava o sentinela,
colocando-se entre o mesmo e o grupo. Em sequência, seguiria ainda riacho
acima, em marcha rastejante, até avistar os cangaceiros, que dormiam ao ar
livre. Ali deveriam aguardar o aviso da minha metralhadora.
CANGACEIROS EM PILHÉRIAS
- Segui margeando o riacho pela direita – chovia ainda
torrencialmente e, meia centena de metros adiante, mandei descer outro grupo de
10, para ficar à direita de Ferreira de Melo, aguardando as mesmas ordens. Segui
com 25 homens, realizando prodígios de equilíbrio, pelos bicos das pedras, e
abaixando-me pelos matos. Aí eu já batia com a testa em celas dos cangaceiros,
as quais, juntamente com as dos coiteiros que com eles foram ter, estavam
dependuradas. Lembro-me que um cavalo, que se achava apeado e tinha um grande
chocalho ao pescoço, espantou-se com a tropa e deu um formidável sopro pelas
narinas. Tive que recuar quase uns trinta metros para que o animal não
corresse, espavorido, balançando o chocalho. Os cangaceiros já estavam
acordados, pilheriando uns com os outros, falando em trocar o bornal e
reclamavam contra o café, que estava frio. O ataque de surpresa já iria
desencadear-se.
DEFLAGRA-SE O COMBATE
O coronel João Bezerra chega ao ponto culminante da
entrevista:
- Disposta toda a tropa, quando eu me preparava para transpor
uma pedra comprida, da altura de 1 metro, ouvi diversos disparos pelo lado em
que colocara a tropa do aspirante e outros tentos para o nosso lado. Recebi,
nesse momento, uma pancada na perna e outra na mão: vi o sangue descer, o que
provava que eu tinha recebido umas balinhas. Porem, quando me levantei, fazendo
força na perna, constatei que o osso estava íntegro. Olhando para a direita, vi
sair fogo de quatorze fuzis, cadenciadamente, na altura de metro abaixo.
Gritei, então: “Avancem!” Cinco minutos depois, notei, com satisfação, que a
tropa se misturava com os cangaceiros, que, desse modo, tiveram que passar a
lutar em várias frentes.
PISANDO SOBRE CADÁVERES
O coronel Joao Bezerra ainda alisa a lâmina da faca, mas tem
os olhos postados sobre as notas do repórter. Acompanhemo-lo:
- Fui passando, então, por cima dos cangaceiros mortos, cujas
vestes estavam ensopadas de sangue e de água de chuva. Lembro, também, que um
soldado meu, de nome Adriano, exclamou: “Estou baleado, tenente!” E, antes que
eu pudesse auxiliá-lo, ele estava com a barba serenada.
- Que significa barba serenada, coronel?
- Morto. Logo a seguir, outro soldado, Antônio Jacó, me
preveniu: “Seu tenente, o cabra lhe mata!” E, de fato, o cabra atirou, mas,
como o mosquetão estava descalibrado, a bala foi alojar-se num toco de
catingueira, ao meu lado. Apontei a metralhadora para ele, mas logo o vi caindo
por cima das macambiras, pois Antônio Jacó – cuja pontaria parecia uma olhada
de machado – já o havia alvejado.
O GRITO DE VITÓRIA: “O CEGO MORREU!”
O chão e as macambiras cobriam-se de sangue. Luiz Pedro,
cabra valente pra danar, vinha ao nosso encontro, sem nos ver. Fui, de dentro
do riacho, enquadrando-o na mira da metralhadora, até 10 metros. Quando me
preparava para matá-lo, vi, com tristeza, que um soldado atirou primeiro. Com
mais vinte metros, vimos quatro cangaceiros caídos. Junto a eles, um soldado
gritava: “O cego morreu!” Eu respondi que o cego (Lampião) não morreria assim.
E ele, convicto: “Se este não for Lampião, quero ser cabra da peste, pois eu
fui coiteiro dele durante dois anos”. E eu, ainda desconfiado: “Verifiquei se o
olho direito dele é cego”. Ao que ratificou o praça: “É cego, sim, tenente”.
Mandei trazer o cangaceiro, no caso Lampião, mas o praça trouxe a cabeça. Alguns
cabras, entrementes, conseguiam escafeder-se, enquanto as cabeças de seus
comparsas rolavam pelo barro.
MEDIDA ACERTADA
O coronel João Bezerra observa que a lembrança do degolamento
de Lampião e de seus sequazes ainda constitui um impacto. Elucida, por isso:
- O degolamento se enquadrou perfeitamente num processo
antigo. Demais disso, não poderíamos trazer todas as cabeças. Quando os meus
subordinados cortaram as cabeças, não protestei também por um outro motivo: uma
falange de dedos amputada não modificaria uma fisionomia. Determinei fosse
feito o reconhecimento dos cadáveres, mandando respeitar os mortos.
E repisou o entrevistado:
- O degolamento foi uma medida acertada. Se não tivesse
ocorrido, muita gente, até hoje, não acreditaria na morte de Lampião.
VERSÕES QUE DIVERGEM
O nosso entrevistado vai além.
- Um dos ex-combatentes da época, coronel Manuel Neto, da
Polícia de Pernambuco, e ex-prefeito de Irajá, escreveu, levantando dúvidas
quanto às reais circunstâncias que rodearam o fim de Lampião. Forçou, com isto,
os meus colegas das Alagoas a censurá-lo e levou-me igualmente, a lhe escrever
uma carta, que dizia, a certa altura, mais ou menos o seguinte: “Deixe, meu bom
colega, que os paisanos venham em cima de nós, militares, com seu despeito, sua
inveja, não um velho militar, nas suas condições, que, muitas vezes,
imitando-me ou tentando imitar-me, se amparou no seu mosquetão, aguardando o
pronunciamento da Justiça. Você sabe bem, está bem lembrado, de quando lhe
telegrafei, chamando-o, e que você, em lugar de comparecer, para me ajudar,
mandou o sargento Davi Surubeba (que ainda hoje é vivo e está lembrado), que
chegou retardado, encontrando-me nas mãos de dois médicos, que me pensavam dos
ferimentos recebidos no combate meia hora antes. E Davi Surubeba e o sargento
Odilon Flores, de saudosa memória, pegaram as cabeças dos cangaceiros, tendo o
primeiro, ao erguer a de Lampião, asseverado, chorando: “Queria que fosse eu
que tivesse morto Lampião. Mas foi o meu amigo, tenente João Bezerra, quem o
matou”.
MEMÓRIAS EM TERCEIRA EDIÇÃO
Perguntamos ao coronel Joao Bezerra sobre Volta Seca,
atualmente no Rio de Janeiro, onde até se iniciou como cantor. A resposta é
áspera: “É um cachorro!” Narra-nos, então, um episódio, impublicável, marcado
pela maior brutalidade, cujo protagonista principal foi aquele ex-integrante do
grupo de Lampião. E arremata o entrevistado, após acentuar que a fita “O
Cangaceiro”, de Lima Barreto, foi uma pantomima, sem guardar qualquer relação
com a verdade histórica, e que pretende figurar, em breve, como ator, num filme
sobre a vida e a morte de Lampião, produzido pelo seu amigo, deputado, Tenório
Cavalcanti.
- Dessa forma é que vou publicar a terceira edição do livro
sob o título “Como dei cabo de Lampião”, com capítulos interessantes para o
momento, inclusive o desmentido a algumas notas escritas irrefletidamente por
pessoas inescrupulosas.
Terminara a entrevista, quatro horas e dez minutos após se
haver iniciado. Conduzimos o entrevistado até à porta do hotel. “Não lhe ficou,
portanto, qualquer remorso da liquidação de Lampião e seu bando?” –
reinquirimos. E o coronel João Bezerra, firme:
- Nenhum remorso. O degolamento enquadrou-se, como já disse,
num processo histórico. Depois, era mais cômodo trazer as cabeças que os
corpos, dada a distância em que nos encontrávamos. Trazer os corpos seria
impraticável.
O coronel João Bezerra pede que lhe enviemos exemplares do
número de O GLOBO em que foi publicada a entrevista. Quando apertava a mão do
repórter, um hóspede do hotel, identificando-o, comentou com o companheiro:
- Olhe o degolador de Lampião...
E o coronel João Bezerra, já ganhando a calçada:
- Aí começa a lenda. A verdade termina no que
lhe contei. Foram feitas as despedidas e o coronel João Bezerra afastou-se,
tranquilo, como se estivesse na santa paz dos céus, sem que lhe angustiassem o
espírito aquelas cabeças que rolaram, um dia, pelo chão calcinado dos sertões,
há quase duas décadas. Certamente os espectros não transpõem a porteira da sua
fazenda, onde se erguem as sombras dos cafezais e dos canaviais e onde o gado
muge as suas mágoas – as únicas existentes na queda
“O GLOBO” – 26/06/1957
Fonte: facebook
Página: Antonio
Corrêa Sobrinho
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