O massacre na
Grota de Angicos em 28 de Julho de 1938 resultou na morte de Lampião e Maria
Bonita e de outros 9 cangaceiros, que em seguida tiveram suas cabeças
arrancadas e exibidas como troféus por várias cidades: Piranhas - AL,
Maceió - AL, Santana do Ipanema - AL, Aracaju - SE, Rio de Janeiro - RJ e
Salvador - BA, onde permaneceram no Museu Etnográfico e Antropológico do
Instituto Nina Rodrigues até 1969, quando enfim foram sepultadas (durante muito
tempo, as famílias de Lampião, Maria Bonita e Corisco - este morto em 1940,
lutaram para dar um enterro digno a seus parentes, mas só em 1969 os crânios
foram enterrados no cemitério Quinta dos Lázaros em Salvador). Em 2003, depois
de muitas reivindicações, os restos mortais foram finalmente entregues às famílias
dos cangaceiros (conta-se que as cabeças de Lampião e Maria Bonita foram
levadas para um jazigo da família em Aracaju).
A revista "O Cruzeiro", em 6 de Junho de 1959 publicou uma matéria
denominada "Justiça para Lampião", relatando a queixa desses parentes
e o posicionamento do diretor do museu, Dr. Estácio de Lima, em não querer
entregar as cabeças por defender que os restos mortais deveriam permanecer no
centro de pesquisa, a exemplo das múmias egípcias, maias e incas, para serem
estudadas.
Matéria de O
Cruzeiro, de 6 de Junho de 1959, por João Martins:
Em Salvador
fomos encontrar o Dr. Estácio de Lima, professor da Faculdade de Medicina e da
Faculdade de Direito e Diretor do Instituto Médico-Legal Nina Rodrigues. Não
queríamos, nesta reportagem, apresentar apenas um lado da questão. Ao
contrário, nosso objetivo era fornecer todos os dados, tôdas as razões alegadas
tanto por uma como por outra parte, pois o público, e não nós, é que deve
julgar. E para julgar precisa ter um conhecimento total do assunto. Do
contrário, faríamos apenas baixo sensacionalismo, sem finalidade construtiva.
Não nos interessa acirrar paixões cegas: a nós, interessa, apenas, que seja
feita justiça, com serenidade e consciência. Assim, a palavra do Prof. Estácio
de Lima, que é homem de grande inteligência e cultura, era absolutamente
necessária que fôsse ouvida. Afinal de contas, que razões o levariam a manter
os trágicos despojos no Museu que dirige, um Museu que é dos mais famosos, mais
conceituados e mais sérios do Mundo? Sendo a Bahia o berço da nossa
civilização, das nossas tradições cristãs, da nossa cultura, porque deveriam
exisitir lá essas cabeças decepadas? Haveria alguma razão para tal? E se
existisse, que razão seria essa? O próprio diretor do Departamento de Turismo
da Prefeitura de Salvador, o escritor Carlos Vasconcelos Maia, que tem
realizado um grande trabalho no seu setor, nos dissera que, do ponto de vista
turístico, não havia nenhum motivo para a conservação das cabeças. A Bahia, com
tantos encantos e tantas atrações, não precisava de tais troféus para mostrar
aos seus visitantes. Pelo contrário, a maior parte dos turistas que iam ver as
cabeças saíam marcados por uma impressão nauseante e desfavorável. Entretanto,
conforme frisou êle, o Museu era um excelente centro científico e não um lugar
de turismo. E se excusou de dar uma opinião específica, lembrando que a única
pessoa habilitada para tal era o Prof. Estácio de Lima, um cientista brilhante
e o responsável pelo Museu. Êste, por sua vez, não se negou a nos atender.
E declarou:
“- As cabeças
de Lampião e Maria Bonita foram ofertadas ao Museu, há vinte e um anos, pelo
Prof. Lajes Filho, catedrático da Cadeira de Medicina-Legal de Alagoas. Aqui
também estão as cabeças de Corisco, Azulão, Zabelê, Canjica e Maria, todos
cangaceiros. Compreendo perfeitamente os sentimentos da família de Lampião. Mas
precisamos, principalmente no campo científico, nos guiar pela razão, em vez de
nos deixar dominar pelo sentimento. As cabeças estão conservadas pelo método
egípcio de mumificação. Elas são documentos inestimáveis de uma época da
criminalidade brasileira. Daqui a cem anos, elas ainda demonstrarão que Lampião
não era um assassino nato, um lombrosiano. Êle era fruto de condições sociais,
políticas e econômicas. Foi uma vítima do seu tempo e do seu ambiente. Essas
cabeças são uma lição de tôdas as horas de que fenômenos, como o cangaceirismo,
não podem nem devem ser exterminados com armas, mas sim com a criação de
fatôres que não propiciem a sua eclosão. Dizem que elas não têm utilidade
científica. Então, nada do que se encontra nesse Museu tem utilidade. Temos
aqui corpos inteiros mumificados, esqueletos, fetos, monstros etc. Todos os
restos mortais que aqui estão pertenceram a gente que também tem parentes, ou
descendente. Deveríamos nesse caso enterrar tudo, não só dêste Museu, como de
todos os outros que existem no mundo, inclusive as múmias egípcias. Por outro
lado, é preciso lembrar que êste Museu é um centro científico. As cabeças não
estão expostas em público, nem sofrem qualquer desrespeito. Em janeiro do ano
passado estiveram aqui tôdos os professôres de Medicina-Legal e Antropologia do
Brasil, reunidos em Congresso Nacional. Examinaram as cabeças e nenhum foi
contra a sua conservação. Elas são peças científicas, como o são, por exemplo,
os cérebros de Einstein e de Lenin, também conservados. As próprias religiões
conservam os corpos dos seus santos. Entretanto, dizem que essas cabeças são
como um estigma para a família de Lampião. Estigma, por quê? Se existisse algum
estigma, êste não seria dado pelas cabeças mumificadas mas, sim, pelos atos de
Lampião. E a lembrança deles não se apagará com o sepultamento dos despojos.
Como já disse, porém, não há nenhum motivo de estigmatização, pois, hoje
Lampião é visto e julgado não como assassino vulgar, mas como um produto do
estado de coisas na sua época e no seu meio. Sabemos que os cangaceiros eram,
não só recuperáveis, como um valioso material humano. E que fizeram os que hoje
gritam pelas cabeças em prol dos cangaceiros que sobreviveram, aquêles que
foram irmãos de luta e de sofrimento de Lampião? Nada. No entanto, eu fiz.
Escrevi relatórios pedindo o indulto para todos ao Presidente da República.
Rebelei-me contra o julgamento que queriam fazer em Volta Sêca, um julgamento de
adulto, provando que êle era menor e depois lhe conseguindo a liberdade
condicional. Trabalhei pela recuperação de todos e pela sua integração na
sociedade. Continuo em contato com êles, ajudando-os nos seus problemas. Aí
estão, vivos, trabalhando decentemente, com famílias constituídas, Labareda,
Saracura, Cacheado, Velocidade, Deus Te Guie e muitos outros. Sabem quem são os
guardas do Museu, os homens responsáveis inclusive pelas cabeças de Lampião e
Maria Bonita? Labareda e Saracura, seus antigos companheiros, adimitidos por
mim como funcionários de tôda a confiança. Nenhum dos antigos cangaceiros
protesta, nenhum vê qualquer desrespeito pelo seu antigo chefe, todos
compreendem o que aqui está. Os cangaceiros, meus amigos, são homens
excepcionais, corretos, leais, sem o menor perigo de reincidência no crime, pois
não são anormais. Foram presos exemplares e agora são cidadãos exemplares. As
cabeças que aqui estão demonstrarão uma realidade social através dos tempos.
Como poderemos, agora, por sentimentalismo, perder êsses documentos de uma
época? Êste Museu, criado em fins do século XIX por Nina Rodrigues, tinha em
seu poder as cabeças do famoso bandoleiro Lucas da Feira e de Antônio
Conselheiro. Ambas se perderam no grande incêndio de 1905, que destruiu a
Faculdade de Medicina e o Museu. Hoje, todos lamentam essa perda. Que dirão, no
futuro, se destruirmos essas peças de tão alto valor para a ciência e a
história? Sou humano e compreendo o que está ocorrendo. Mas, como já disse, não
podemos nos deixar dominar pelo sentimentalismo, e sim pela razão. Êsse é o
dever dos cientistas. E peço que também compreendam êste lado da questão”.
Aí têm os
leitores as razões apresentadas pelas duas partes interessadas no caso das
cabeças mumificadas de lampião e Maria Bonita. O público é que deve julgar.
Ambos os lados alinham motivos e considerações dignas de respeito. A questão
deve ser decidida num plano alto. De qualquer maneira, enterrada ou não, a
cabeça de Lampião permanecerá na história da nossa evolução social. Lampião foi
incontestàvelmente um líder, um homem de grandes qualidades de chefia, um
rebelado contra um sistema de coisas que imperava (e ainda não desapareceu de
todo) no sertão nordestino. Dêle disse o Major Optato Gueiros, que o combateu:
“- Lampião foi
um gênio militar perdido. Um grande homem que o meio e as circunstâncias
tornaram bandido”.
A verdade é
que as fôrças policiais que o perseguiam, as famigeradas volantes, eram tão ou
mais sanguinárias que os cangaceiros. Para muitos sertanejos, a Lei e as
autoridades que a executavam não passavam de opressores. Lampião, para muitos,
foi um libertador, um vingador. E o dever de todos é trabalhar para que, nas
caatingas nordestinas, desapareçam todos os fatôres que no passado criaram os
cangaceiros e que hoje ainda fabricam bandidos. O cangaceirismo, tal como era
no tempo de Virgulino, não pode ressurgir em virtude das estradas, da
facilidade de comunicações pelo rádio, da aviação, das armas automáticas. Mas,
infelizmente, só êsses elementos materiais é que impedem que, no Nordeste,
surja outro Lampião. As condições sociais e econômicas, que ainda lá existem,
permanecem como fábrica de injustiças, de miséria, de revolta e de desespêro.