Do acervo do pesquisador Raul Meneleu Mascarenhas
Para se
proteger de qualquer malefício, o cangaceiro, "legítimo sertanejo", estruturava
sua vida cercado de tabus e superstições. Nós nordestinos sabemos desde
pequenos as palavras conjuntas "faz-mal" que é uma forma de tabu, uma
proibição bastante estrita que é preciso respeitar sob pena de provocar
problemas físicos, como por exemplo chupar manga e beber leite, mas
também as palavras conjuntas "faz-mal" tinham o poder de
"cutucar" as forças do mal.
A renúncia
de fazer algo "tabu" e a obediência aos "faz mal" a
certos hábitos, a certos gestos cotidianos tem por finalidade atrair para si as
forças benéficas. Dentre os "faz mal" instituídos por Lampião no seio
do seu grupo, encontramos diversas referências em livros que dizem:
Cangaceiros
não comiam tapioca.
- Não sentavam
numa pedra que serviu para amolar facas.
- Só passavam
por baixo de uma árvore no seu lado direito.
- Não saltavam
por cima de muro, não passavam pelas barreiras de frente e sim de lado,
levantando primeiro a perna direita.
- Deviam sempre
passar por cima de um muro como se passassem por cima do corpo de seu
inimigo.
- Não passavam
por cima das barreiras e dos muros, e quando eram obrigados a fazê-lo tiravam
antes o chapéu.
- O cangaceiro
nunca passava debaixo de uma rede nem debaixo da corda de um animal
amarrado.
- Os cangaceiros
não trocavam de roupa, evitavam tomar banho (conta-se que as "orações
fortes", orações mágicas que Lampião trazia consigo, perderam seu efeito
no dia de sua morte porque ele estabelecera seu acampamento no leito seco de um
riacho e porque chovia: "Oração forte não pega dentro d'água").
- Não bebiam
água de bruços, nem no côncavo das mãos. Quando não tinham cabaça ou recipiente
para beber água, era o chapéu que fazia as vezes de recipiente.
- Quando bebiam
água, sempre jogavam um pouco nas costas.
- Limpavam
cuidadosamente os anéis que roubavam e depois assopravam neles para atrair
sorte e dinheiro.
- Quando
carregavam seus fuzis, tomavam o cuidado de só introduzir um número ímpar de
balas (nove), e no momento dos combates contam os tiros para que haja sempre um
número ímpar no fuzil.
- Quando eram
atacados de surpresa, cortavam as cordas das redes e levavam consigo ao fugir.
Deixar uma rede suspensa é prenúncio de morte.
- Quando estavam
reunidos numa casa, instalavam suas redes de maneira que ficassem na mesma
direção que as vigas.
- Não dormiam
com os pés voltados para uma igreja. - Não utilizavam objetos que tinham
relação com o mar, nem os confeccionados com chifres de animais. - Havia dias
da semana durante os quais não tinham direito de combater e outros que não são
propícios às longas caminhadas ou a uma mudança.
- Nunca se
barbeavam na sexta-feira, a segunda-feira é consagrada às almas e a terça-feira
era fonte de perigo.
- Quando
deixavam o seu acampamento, os cangaceiros nunca se esqueciam de depositar uma
pequena quantidade de sal no solo para evitar perseguições.
- Os tabus
ligados ao sexo feminino, fonte de perigo, eram extremamente estritos. Não
montavam em égua prenhe. Antes de subirem na sela, verificavam se esta não
escondia roupas de mulheres.
- Achavam, com
efeito, que uma camisa, uma calça ou uma combinação de mulher, introduzidas sob
a sela, as deixariam expostas a uma morte certa e imediata.
- Às vésperas de
uma mudança evitam relações sexuais.
- Depois de
manter uma relação sexual não devem viajar durante três dias.
Bem antes da
entrada das mulheres no cangaço, o próprio Lampião impunha aos seus
companheiros todo um ritual cheio de proibições sexuais. Assim, era perigoso
ter relações sexuais nas sextas-feiras, "dia da morte de Jesus", e na
véspera de combates quem tivesse cometido o "pecado da carne" devia
imergir nas águas purificadoras do São Francisco, depois das dez horas da
noite, com a cabeça protegida por um chapéu de palha. A introdução das mulheres
no grupo foi considerada por muitos cangaceiros como a origem da fragilização
de Lampião e que deveria levá-lo inexoravelmente à morte.
Os cangaceiros
estruturam suas vidas em torno de rituais mágico-religiosos específicos, mas se
protegiam igualmente com inúmeros amuletos, como as figas, os patuás e,
principalmente, as "orações fortes", orações faladas ou escritas em
pedaços de papel que se colocam em saquinhos. As orações fortes mais antigas
são a Oração Preciosa, a Oração Poderosa e a Oração Reservada, que permitem,
graças aos segredos que encerram, vencer a adversidade e defender-se contra as
forças do mal. Mas existem várias outras: a Oração do Rio Jordão, a Oração de
Santa Catarina, a Oração de São Jorge, a Oração do Anjo Custódio ou Oração das
Doze Palavras Ditas e Retornadas, o Creio-em-Cruz, a Força-do-Credo, o
Credo às Avessas, o Rosário de Santa Rita, a Oração da Cabra Preta, a Oração da
Pedra Cristalina, a Oração das Estrelas, a Oração do Sonho de Santa Helena
etc.
Essas orações
só deviam ser pronunciadas em momentos de grande desespero ou perigos. Elas
então conferiam proteção ao corpo e à alma dos que as formulavam. Em sua obra
Crendices do Nordeste, Gonçalves Fernandes transcreveu as orações fortes que
vaqueiros do sertão lhe transmitiram. Dentre elas contam-se: a Oração de Santa
Catarina, que permitia à pessoa defender-se de seus inimigos; a Oração de São
Jorge, que facultava fortificar-se, proteger-se, sem, contudo, "fechar o
corpo" de uma pessoa que previamente não tivesse "sido
trancado".
A maioria
dessas orações devia ser dita segundo um ritual específico; algumas deviam ser
pronunciadas com os olhos fechados, outras não podiam ser interrompidas, pois a
interrupção lhes subtrairia toda a força. Duas orações muito apreciadas no
sertão são o Credo e o Salve Rainha, que nunca podem ser recitadas de forma
fragmentada. É uma obrigação recomeçá-las em caso de erro de pronúncia. Porém
existe uma exceção. Às vezes, com efeito, a pessoa se detém em certos trechos
de frases ou em certas palavras quando essas orações são pronunciadas no
contexto de uma consulta mágica ou quando constituem uma defesa mágica, como é
o caso de "nos mostrai" no Salve Rainha ou de "jaz morto,
sepultado" no Credo.
Algumas
orações, como a da Cabra Preta ou a do Credo às Avessas, deviam ser recitadas
sem interrupção e sem se enganar, com o pé direito sobre o pé esquerdo. Os
mestres do Catimbó explicam que nessa posição, com os braços estendidos na
horizontal, o homem dá a imagem de um pássaro, uma impressão de voo, de
elevação. Apoiando-se somente a uma perna, ele se torna mais leve e dá mais
força à sua prece. Essas orações são um tipo de pacto.
A Oração
das Estrelas, por exemplo, só terá poder se for recitada deitado, com o olhar
dirigido para as estrelas, longe de testemunhas que possam interromper o laço
invisível que se estabelece entre o indivíduo e as forças sobrenaturais.
O Creio-em-Cruz
pronuncia-se benzendo-se continuamente. É uma fórmula mágica contra os
fantasmas para se obter proteção e apoio. A Força-do-Credo é uma oração para os
momentos de desespero. Ela abala até os anjos do Paraíso. O Credo às Avessas é
uma oração perigosa, recurso supremo nas situações trágicas. Tanto mais eficaz
quanto mais raramente utilizada.
Dentre essas
orações defensivas e protetoras que são as "orações fortes",
destacam-se fórmulas de encantamento escritas em papel ou em pergaminho,
geralmente reservadas para uma única pessoa, que se encarrega de trazê-las
sempre consigo, sob a pena de ver escapar o seu poder. Escondidas debaixo da
roupa, elas permitem repelir as agressões dos inimigos e protegem contra
efeitos diabólicos pela simples ação "catalítica" de sua presença,
segundo Luís da Câmara Cascudo". Recomenda-se evitar a exposição dessas
fórmulas a olhos estranhos; elas perdem o seu poder pela mera força do olhar de
outrem.
Essas
"orações fortes" pertencem à categoria das orações ocultas. São
orações escritas que não se pronunciam. Na verdade, somente o ato de
escrevê-las é que lhes confere o poder sobrenatural de "fechar o
corpo". As "orações fortes" deviam ser copiadas pelo próprio
cangaceiro ou por um dos seus próximos. Algumas das que Lampião trazia consigo
tinham sido previamente oferecidas ao seu irmão Livino, como a Oração do
Salvador do Mundo e a Oração das Treze Palavras Ditas e Retornadas.
Na Oração de
Santo Agostinho o nome de Livino figura cinco vezes, assim como o de Sebastião
Lopes Bezerra, que provavelmente a oferecera a Livino. A Oração da Beata
Catarina teria sido oferecida por Livino a Lampião. Parece que com a morte de
seu irmão, em 1926, Lampião teria conservado suas "orações fortes",
levando-as consigo até o fim.
Luís da Câmara
Cascudo faz referência à Oração do Rio Jordão e à Oração de Fiança dos
ex-cangaceiros. Alguns dizem que, se Rio Preto e Antônio Silvino foram
capturados e se Jesuíno Brilhante e Lampião morreram, foi porque perderam o
saquinho que continha essas orações infalíveis que, desde a primeira década do
século XIX, os cangaceiros e os bandidos do sertão, assim como os cantadores do
Nordeste, levavam consigo, era, segundo o autor, um talismã.
Quando morreu,
Lampião trazia ao redor do pescoço sete "orações fortes" encerradas
em saquinhos: a Oração do Salvador do Mundo, a Oração das Treze Palavras Ditas
e Retornadas, a Oração de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Oração da Virgem
das Virgens Prodigiosas, a Oração da Beata Catarina, a Oração de Santo
Agostinho e a Oração da Pedra Cristalina.
Sob seu pé
direito, que tinha sido ferido, Lampião usava uma palmilha
"pé-de-anjo" que permitia anular magicamente os efeitos negativos de
sua ferida, considerada talvez uma "abertura" de seu corpo. A esse
respeito o sertanejo Chiquinho Rodrigues, proprietário de uma loja em Serra
Talhada, entrevistado em 1981, afirmou que o corpo de Lampião se abriu em
Angico porque ele não teve tempo de se calçar. Lampião, que era crente, trazia
no pescoço o crucifixo que roubara da baronesa de Água Branca em 1922. O
cangaceiro que traz amuletos consigo estaria imunizado contra males
exteriores.
No entanto,
aquele que não está de acordo com as boas disposições mágicas, que está em
estado de impureza porque não observou os tabus estabelecidos por Lampião ou,
mais amplamente, pela tradição, poderia ter o corpo "ruim",
"aberto", apesar da presença dos amuletos. Além das "orações
fortes" ou outras proteções mágicas que o cangaceiro trouxesse consigo,
outras deveriam penetrar o corpo, como é o caso das hóstias consagradas. Os
cangaceiros pagavam as mulheres que frequentavam as igrejas para que roubassem
hóstias consagradas e lhes entregassem. Conta-se que as "bruxas",
durante cerimônias mágicas, tinham o poder de tornar os cangaceiros imortais e
de imunizá-los contra as facadas ou as balas de fuzil quando benzem um
caixão.
Encerrada a
cerimônia, ela fazia rasgar a peça de pano por uma coruja, por cima da cabeça
do cangaceiro. Diz-se que o célebre cangaceiro Pinto Madeira tinha uma hóstia
consagrada na parte esquerda do tronco e que só se conseguiu matá-lo quando ela
foi retirada. Contam que o cangaceiro Balão também tinha uma hóstia consagrada
debaixo da pele. Quando ele estava morrendo, sua família teve de retirar a
hóstia do corpo para que ele pudesse se "livrar", pois caso contrário
ficaria agonizando sem morrer nunca — foi, pelo menos, o que teriam afirmado os
membros da família de Balão.
Segundo Aglae
Lima de Oliveira, Lampião colocou uma hóstia consagrada impregnada de seu
sangue em um dos saquinhos que continham "orações fortes", mas não a
teria introduzido em seu corpo". Na entrevista que concedeu ao jornal O
Ceará em 23 de março de 1926, Lampião declarou que nenhuma força policial lhe
"abriria o corpo": "Tenho conseguido escapar à perseguição que
me movem os governos, brigando como louco e correndo como veado quando vejo que
não posso resistir disto sou muito vigilante e confio sempre desconfiado de
modo que, dificilmente me pegarão de corpo aberto".
O "corpo
fechado" é o resultado de um processo mágico de imunização total do corpo
contra toda forma de agressão: o corpo torna-se impenetrável às facadas ou às
balas, como uma couraça, escapa ao perigo das águas estagnadas ou em
movimento, ao fogo e também às maldições e aos malefícios. A crença no corpo
fechado permeia toda a cultura do sertão.
O fechamento
do corpo era, antigamente, uma das razões principais do recurso à magia em todo
o Nordeste do Brasil e em particular no Catimbó. Ele só pode ser feito por um
feiticeiro, quer se trate do mestre no Catimbó do litoral do Nordeste ou do
curandeiro, ou bruxo, do sertão. O curandeiro ou bruxo pode, ao mesmo tempo,
curar os males, fechar o corpo, praticar a magia negra, elaborar ataques
mágicos contra um indivíduo, tornando-o surdo, mudo ou cego graças ao preparo à
base de ervas ou de plantas, transferir o mal para objetos... Todo esse
processo mágico funciona segundo um esquema de malefício à distância.
Superstições
são, por definição, não fundamentadas em verificação de qualquer espécie. Elas
podem estar baseadas em tradições populares, normalmente relacionadas com o
pensamento mágico. Os cangaceiros assim como parte da população do sertão
nordestino à época, supersticiosos acreditavam que certas ações (voluntárias ou
não) tais como rezas, curas, conjuros, feitiços, maldições ou outros rituais,
poderiam influenciar de maneira transcendental as suas vidas. Até hoje,
encontramos pessoas assim.
MATERIAL DA
PESQUISA: Forte repetição ipsis litteris do livro Lampião, senhor do
sertão : vidas e mortes de um cangaceiro Por Elise
Grunspan-Jasmin e diversos outros livros de autores da literatura do
cangaço.
http://meneleu.blogspot.com.br/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com