Por Leonencio
Nossa “O Estado de S. Paulo” edição de 21/10/2001
“Negro” que era policial naquela época, garante que
Maria Bonita já estava morta"
OROCÓ (PE) – Ele ajudou a cortar a cabeça de Maria Bonita com faca tão afiada
quanto a própria memória. Depois de trocar tiros e punhaladas com cangaceiros
na juventude, Augusto Gomes de Menezes, um policial aposentado que acaba de
completar 85 anos, virou contador de histórias do cangaço e de Orocó, cidade
sertaneja a 620 quilômetros do Recife, às margens do rio São Francisco.
Um lugar violento e pobre, com 10 mil moradores, onde mais de 5% das crianças
morrem nos primeiros dias de vida.
'Negro', como
era chamado pelos colegas de polícia participou de um capítulo decisivo da
história do Sertão. O cenário é a fazenda Angico, em Flor da Mata, atual Poço
Redondo (AL), na manhã de 28 de julho de 1938. O bandido Virgulino Ferreira da
Silva, o Lampião, escondia-se no local com seus homens. “Morreram nove
cangaceiros e duas cangaceiras, Enedina e Maria Bonita”, inicia a prosa.
“Maria Bonita morreu pertinho dele, Lampião, assim como daqui ali naquela
parede”.
Sentado numa cadeira de plástico, na sala da casa de estuque, onde mora com
duas filhas, Negro não reivindica papel de destaque na ação que resultou na
decapitação do bando de Lampião. “Quando eu cortei a cabeça dela (Maria
Bonita), não estava mais viva, não”, diz. “Num combate anterior, eu gritei
pra ele (Lampião): ‘Traz tua mãe, filho da peste, pra tirar raça de homem
valente!’ Ele gritava pra gente também: ‘Taca espora na tua mãe, aquela égua”, exclamou.
Pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, do Recife, Frederico Pernambucano de
Mello afirma que Negro é personagem desconhecido pela história, talvez por ter
sido soldado raso da campanha contra Lampião.
Pesquisador Frederico Pernambucano de Melo
Na avaliação de Mello o depoimento do aposentado ao “Estado” não apresenta
contradições, especialmente na descrição do massacre de Angico, e preenche
lacunas, como por exemplo, a morte do cangaceiro Mané Velho, em 1937. O
pesquisador planeja uma viagem a Orocó para conhecê-lo.
Hormônios – O aposentado mostra uma foto da época. “Este aqui sou eu”, aponta
para um dos retratados. “Já este aqui é o cabo Terror, que tinha esse
apelido porque era um terror mesmo.”Negro desafia o crepúsculo de Orocó. Entre
um cigarro de palha e outro, vai construindo imagens mais vivas que o presente,
feitas de duelos e sangue.
“Só de bornal nas costas eu tenho cinco anos”, fala numa alusão ao período em
que ficou isolado na caatinga. “Desses cinco anos, só descansei oito dias”.
Negro ri do fato de o povo de Orocó ter pensado que ele deu o primeiro tiro em
Lampião. O aposentado esclarece que não foi bem assim.
“Muita gente ainda jura que ele morreu por mim, não sabe?” Negro deixa claro
que só quem viveu o período é capaz de acreditar nos feitos atribuídos a
Lampião.
“Numa fazenda em Simão Dias, [Sergipe] mataram dois rapazes,
defloraram uma moça e cortaram a língua de uma velha”, diz. “A gente
perguntou a ela o que acontece, e ela: ahhh... Não disse nada. Coitada, não
tinha culpa, pois não tinha língua.”
Homens valentes e mulheres decididas não fizeram sozinhos a história do
cangaço. Muitos integrantes do bando de Lampião viviam a explosão dos
hormônios. Menores também foram usados na repressão aos bandidos. Negro era um
deles. Nascido na cidade baiana de Curaçá, em 1916, foi recrutado ainda menino
pelo governo. Não tinha completado 22 anos quando participou do combate de
Angicos.
“Com 14 anos peguei na espingarda para perseguir gente ruim e só saí quando
acabou o derradeiro, em 1941”, afirma, numa referência ao fim do cangaço. E era
na caatinga, longe das vilas e cidades que os meninos descobriam a sexualidade.
A caça aos cangaceiros levava os jovens das volantes a ficarem meses afastados
de mulheres. O jeito era se virar com animais ou, se tivessem sorte,
cangaceiras capturadas.
Para pegar bandido na Caatinga, só se for a pé
Policial aposentado discorda dos meios usados pela polícia e pelo Exército.
Um dos últimos sobreviventes do combate de Angicos, o policial aposentado
Augusto Gomes de Menezes, o Negro, discorda das ações atuais das polícias e do
Exército contra assaltantes de caminhões e traficantes de drogas em Pernambuco.
Ele releva o fato de os fuzis e as metralhadoras terem substituído os punhais
no sertão. “Eu não posso informar nada da polícia de hoje, mas o que eu
acho é que carro com sirene não é modo de perseguir gente ruim”, afirma. “Na
caatinga não dá para entrar de carro.”
Negro lembra que para caçar cangaceiros o jeito era andar a pé, sem mula ou
viatura. Vida na caatinga era à base de carne, farinha e rapadura. A farinha
ficava no bornal. O jeito era meter a mão no bornal. “A gente não tinha tempo
de assar carne, comia crua mesmo, tirava a dente”, conta. A escassez de água
levava o grupo a apelar para a rapadura. “A gente passava até sete dias
sem beber”, dramatiza. “Isso escureceu a vista de todo mundo.”
O policial aposentado se casou e enviuvou duas vezes. Da primeira união, com
Ocília Barbosa, em 1940, nasceram dez filhos. A mulher morreu 33 anos depois,
quando os dois já estavam separados.
“Ela caiu de repente e morreu”, lembra. Quem também morreu por nada, há oito
anos, foi Antônia Maria do Nascimento, com quem teve mais oito crianças. Dos 18
filhos de Negro, restaram dez. Amigos não faltam; de solidão, reclama pouco. O
maior problema, segundo ele, é o salário mínimo que recebe da Previdência
Social.
A casa de Negro não tem televisão nem guarda-roupas. Também faltam baús.
Segredos e histórias de uma polícia violenta e criminosa estão na memória do
homem que após participar das volantes foi chamado para lutar na Segunda Guerra
Mundial – chegou a se apresentar em Salvador, mas a guerra acabou uma semana
antes.
Negro colaborou com o Exército na repressão aos integralistas da Bahia, durante
o Estado Novo de Vargas, e no auge do regime militar, nos anos 60. Sobre essa
época, pouco revela. Desconfia-se que passava informações sobre a geografia da
região. “Depois de sair da volante, eu trabalhei nesse negócio de pistolagem”,
diz sem ir adiante. Em 1965, no governo do marechal Castelo Branco, gente do
Exército andou prometendo “coisa” para o policial aposentado. (L.N.).
Partilha de bens do Cangaço gerava discórdia entre policiais
Tenente teria ficado com maior parte do tesouro do bando de Lampião
Os macacos, como os policiais eram chamados pelos cangaceiros, travaram duelo
particular pela divisão do tesouro do bando de Lampião. Um dos integrantes da
volante que massacrou os criminosos, em 1938, Augusto Gomes de Menezes, o
Negro, revela que o chefe, o tenente João Bezerra, morto nos anos 70, ficou com
a maior parte da fortuna, cerca de $1.200 contos de réis e cinco quilos de
ouro. O prêmio máximo da Loteria Federal valia, à época, 200 contos de réis.
“A gente tinha ordem do presidente que quem matasse cangaceiro ia ficar com os
objetos dos mortos”, diz.
Negro afirma que o tenente não repartiu a fortuna e dá a lista dos nomes dos
colegas de farda que teriam sucumbido numa suposta operação travada por João
Bezerra para evitar a partilha. “Zé Gomes foi morto por um pistoleiro e Mané
Velho conseguiu escapulir.”
Mais de 60 anos depois da maior façanha da volante, Negro ainda tem raiva do
tenente. “Eu não fui perseguido pelo João Bezerra, mas ao mesmo tempo
posso dizer que fui; eu trabalhei demais”, diz resignado. “eles prometeram
um negócio para mim e nunca saiu.” Ele jura que não ficou com nenhum pertence
dos cangaceiros.
“Eu peguei dez contos de réis de um, mas um colega me traiu.”
O pesquisador Frederico Pernambucano de Mello desconhece as perseguições, mas
confirma a revolta dos soldados e a promessa de partilha. Há 40 anos estudando
o cangaço, Mello diz que Mané Velho era homem violento e que causava medo entre
os colegas. Após o massacre de Angicos, Mané Velho cortou as mãos do cangaceiro
Luís Pedro para ficar com os anéis de ouro.
Fotos das revistas da época mostram as cabeças dos onze cangaceiros expostas na
escadaria da prefeitura de Piranhas, em Alagoas. O crânio de Lampião aparece no
centro. A mórbida cena é atenuada pelos chapéus com pedaços de ouro e signos de
Salomão e pelos bornais. “A estética do cangaço é uma arte nascida em
circunstância de conflito; seus símbolos não são apenas estéticos, mas possui
funções místicas”, avalia Mello, um dos curadores da Mostra do Redescobrimento.
“Numa comparação universal, o traje do cangaceiro só se compara ao do samurai
japonês.” Nas andanças pelo sertão, Mello encontrou pessoas que afirmaram que a
cena de maior impacto na vida foi ver o bando de Lampião. “Tinha-se a impressão
de que o grupo, ao chegar às cidades, estava trajado como se fosse pular
carnaval”, diz. “Era uma mistura de pavor e êxtase; um êxtase estético,
épico e viril.” (L.N.)
Matéria
transcrita pelo amigo Antônio Corrêa Sobrinho
http://lampiaoaceso.blogspot.com/2018/06/afinal-quem-decapitou-maria-bonita.html
http://blogdomendesemendes.blogspot.com