Por: Rangel Alves da Costa
SAGRADA TERRA DE HOMENS VALENTES
Por mais que os governantes pretendam desqualificar os sertanejos, impingindo-lhes desde algum tempo a mendicância, a ociosidade e o desapego às formas de luta pela sobrevivência, certamente que essas esmolas oficiais degradantes não conseguirão apagar a história daqueles que viveram e ainda vivem na sagrada terra de homens valentes.
Talvez, num falso romantismo bucólico-jeca-taturesco, continuem achando que o sertão e o sertanejo se bastam na sua insignificância de ser e existir. Manifestas atitudes de discriminações e preconceitos. Nada mais do que isso, porém sem esquecer do mais grave: o sertão tem que continuar existindo assim para justificar as esmolas eleitoreiras tão necessárias para a manutenção do poder.
Esse outro Brasil que pensa o sertão não é, verdadeiramente, o Brasil do qual o faz parte e reconhece seu valor, sua história, a dignidade e honradez dos seus homens. Basta virar um balaio de corruptos, ladrões da coisa pública, quadrilheiros e uma leva do que não presta, para ver se dele saem mais engravatados, políticos com ou sem mandato, ou sertanejos. Ainda assim querem que tudo de ruim esteja configurado na terra sertaneja.
A História, por mais manipulada que possa ser, ainda assim terá muitos resquícios de verdade. E é nos seus anais que constam as façanhas, revoltas e guerras nordestinas em nome de sua libertação, do jugo imperialista e da prepotência dos Coronéis. Antônio Conselheiro, Zumbi dos Palmares, Paulo Freire, Joaquim Nabuco, Luiz Gonzaga, Lampião, Jorge Amado, Câmara Cascudo, Chico Anísio, Graciliano Ramos, Gilberto Freire, Ariano Suassuna, Irmã Dulce, Padre Cícero, só para citar alguns, são nordestinos.
Mas é noutra classe de nordestinos que reside a maior força de valorização da raça sertaneja. Falo do homem matuto, do homem do campo, daquele caipira, ser do mato e do tempo, filho da terra esturricada e caminhante nas veredas de sol maior. Digo sobre aquele que a caneta Euclidiana tão corajosamente reconheceu como sendo um forte. E cito também aqueles beiradeiros que Donald Pierson encontrou às margens do Velho Chico para entender e descrever a sociologia de um povo que se confunde com a luta pela sobrevivência.
Tendo como cenário e paisagem o contraste que a criação permitiu, no mesmo céu que voa a jaçanã e a sabiá há o azul sem nuvem e sem esperança de chuva; na mesma mataria onde se esconde o preá e o teiú há a feiúra das árvores mortas, das folhagens acinzentadas, dos troncos fragilizados, dos galhos retorcidos; debaixo da mesma luz do luar tão bonito se ouve o choro da criança faminta, o aperreio do pai que não sabe mais o que fazer. Mas também se ouve o grito silencioso da oração, da prece, da fé inabalável de um povo que faz de cada tapera um templo divino.
Nesses sertões que se espalham em quadrante, tantas vezes tristes demais de compartilhar e doloridos demais de se viver, estão os caminhos dos vaqueiros, dos aboiadores, dos pequenos agricultores, dos comboeiros, das lavadeiras, das fateiras, dos feirantes, das parteiras, dos plantadores de sonhos e coletores de esperanças. Tudo em meio às secas, esturricamentos da terra, suores cortantes na pele, horizontes abrasados que se avolumam em quentura a cada dia que passa sem chuva. E tudo é sentido, dolorosamente sofrido, mas jamais dito que amanhã não será um dia melhor.
Lá, nesse sertão de meu Deus, o povo pobre muitas vezes se alimenta da dignidade. Não se farta de caviar comprado com dinheiro público, não come a lagosta da licitação fraudada, não bebe o uísque da verba desviada, não se empanturra de vinho importado adquirido de lobistas. Muitas vezes não há nada cozinhando no fogão de lenha, as panelas estão vazias, falta até água para beber. Falta tudo, mas sobra honradez, caráter, decência, seriedade.
E só mesmo numa sagrada terra de homens valentes para a vida ser vivida em plenitude, em meio à alegria e ao sofrimento, para que o sertanejo conheça suas fronteiras e seus limites e não mais se assuste ou se espante com aquilo que para outros seria igual à morte.
Rangel Alves da Costa*
Poeta e cronista
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